QUANDO JAYNE CHEGOU a Berks, em 19 de setembro, a advogada Carol Anne Donohoe rapidamente se apossou do caso. Enquanto isso, sua colega Karen Hoffman — uma ex-jornalista e ativista social que fala português — começou conversar com a jovem mãe sobre a sua vida no Brasil. As conversas foram transformadas em documentos apensados ao processo de deportação.
A equipe jurídica em Berks também anexou ao processo o relatório médico feito quando Jayne e o seu ex-marido foram apedrejados. As fotos impactantes mostram um corte largo no nariz quebrado da jovem e a cabeça de seu ex-marido aberta. Também foi anexado ao processo o Boletim de Ocorrência da agressão, em que o delegado relata o desacato. A única diferença em relação às falas de Jayne em sua entrevista foi que ela errou a data do ocorrido por alguns meses, todo o resto tinha provas mais do que fundamentadas.
Nas conversas com os advogados, Vilas Novas explicou que os homens por trás do ataque eram traficantes de drogas. “Não foi apenas uma briga de bar, foi um traficante”, defende Donohoe: “Trata-se de alguém que o governo não consegue controlar”. Juntos, os documentos e as conversas explicam as medidas desesperadas que Vilas Novas tomou para manter a sua filha segura.
A omissão das autoridades brasileiras é uma constante na vida da jovem. Fernandes Tourinho, a cidade natal de Jayne, é um município mineiro de apenas 3300 habitantes, incrustado numa região conhecida por ser atravessada pela rota do tráfico. Registros da impunidade dos criminosos da região, como seguidas notícias de invasões e roubos a delegacias, ressoam ao que se encontra no boletim de ocorrência oferecido pela jovem.
Desde o motivo de sua saída do país às explicações para o prolongamento de sua estadia no centro de detenção americano, a ausência de suporte do governo brasileiro é uma constante. Questionado por The Intercept Brasil sobre o caso da jovem, a primeira resposta do Ministério de Relações Exteriores, enviada pelo email de sua assessoria de imprensa no dia 22 de novembro, foi:
“Informamos não haver aparentemente registro nos consulados brasileiros nos EUA sobre o caso mencionado.”
Já havia quinze dias que Jayne estava no centro de detenção americano.
Foi necessário que a reportagem de The Intercept Brasil informasse ao Itamaraty sobre o fato de que uma brasileira de 19 anos e sua filha de dois anos estavam presas em centros de imigração americanos, também foi necessário que a reportagem informasse o nome completo de Jayne para que o ministério entrasse em contato com ela — apenas para confirmar a idade de sua filha. Tratando-se de um país que tem uma intensa relação diplomática com o Brasil, é surpreendente que autoridades das duas nações não tenham se comunicado sobre o caso antes.
WASHINGTON, DC - MARCH 19:  U.S. Immigration and Customs Enforcement Director Sarah Saldana testifies before the House Oversight and Government Reform Committee about the Department of Homeland Securities policies regarding apprehension, detention and release of illegal immigrants in the Rayburn House Office Building on Capitol Hill March 19, 2015 in Washington, DC. During her first appearance before the committee after being sworn in almost three months ago, Saldana faced aggressive questioning about her agencies policy of discretion in releasing people convicted of misdemeanors and felonies.  (Photo by Chip Somodevilla/Getty Images)
A diretora do departamento americano de imigração, Sarah Saldana, fala no Comitê de Supervisão 
e Reforma do Governo, no Congresso americano; ela foi dar explicações sobre as políticas adotadas
em relação a apreensão, detenção e liberação de imigrantes ilegais em março de 2015, em Washington.
Foto: Chip Somodevilla/Getty Images

AS CONVERSAS COM a equipe de advogados e conselheiros também revelaram algo que Vilas Novas não havia contado em suas entrevistas: anos de violência doméstica e perseguição por parte de um ex-namorado. Aos 14 anos, começou um relacionamento com um homem dez anos mais velho. Ela contou para os advogados como, em poucas semanas de namoro, ele começou a agredi-la regularmente, uma vez esfaqueando-a na perna em um surto de ciúmes no meio de uma festa.

Embora Jayne tenha terminado a relação depois de seis meses, ela conta que o ex fez de tudo para permanecer em sua vida. Quando o pai de sua filha a deixou, o ex-namorado começou a espalhar pela pequena cidade que queria voltar com ela e pediu que diferentes pessoas entregassem o recado.

Jayne chegara a um ponto em que não conseguia sair de casa, com medo do ex-parceiro que a seguia. Contudo, quando o oficial de imigração perguntou se ela se sentia perseguida por pertencer a um grupo social específico, ela disse que não. Não perceber a violência doméstica como uma ameaça, segundo a advogada Donohoe, é uma constante entre as mulheres detidas em centros de imigrantes. Ainda de acordo com a advogada, muitas mulheres que sofrem agressões de seus maridos não consideram que são perseguidas por pertencerem a um “grupo social” específico, tal qual Jayne.

O pertencimento a um grupo social perseguido é um dos critérios avaliados nas entrevistas para pedido de asilo. Ao ignorarem o fato de sofrerem por serem mulheres, mais do que demonstrarem não entender que se trata de uma questão de gênero, essas vítimas sem querer advogam contra si mesmas. Já a condução da entrevista, no entanto, não é despropositada. As mães devem responder às perguntas na presença de seus filhos, o que dificulta ainda mais uma conversa. Já é complicado expor detalhes tão sórdidos de suas vidas um completo estranho — que em geral é homem — ainda mais contar sobre os traumas familiares em que, muitas vezes, os algozes são os pais das crianças que estão na sala.

Em sua entrevista, Jayne afirma não ter falado sobre os abusos sofridos pelo ex-namorado por dois motivos. O primeiro: ela foi orientada pelo oficial da imigração a dar “respostas curtas” que se limitassem a responder o que era perguntado. O segundo: ela temia que suas declarações sobre o ex gerassem registros policiais contra ele, que poderia descobrir de alguma forma e ir atrás dela. “Eu não sei o que ele poderia fazer comigo e, principalmente, não sei o que ele poderia fazer com a minha filha, que é de outro homem”, desabafa Jayne.

Pessoas próximas à jovem, em Minas Gerais, deram entrevista ao The Intercept Brasil e confirmaram que o homem segue perguntando por ela. “Depois que ela viajou, ele chegou a espancar o pai dela com um chicote de bater em cavalo enquanto perguntava por ela”, disse um conhecido, que pediu para não ser identificado. Jayne confirma a agressão, que aconteceu porque seu pai não quis dizer para onde ela tinha ido. Com os olhos cheios de lágrimas, ela encontra dificuldade para falar e lembra que a agressão a seu pai foi um dos motivo que a levou a se automutilar: “Esse é o homem que me fez sofrer desde que eu tinha 14 anos. Eu precisei sair de casa, do meu país, por causa dele. Todas essas coisas passam na minha cabeça e foi por isso que eu quis morrer”.


Mães e crianças imigrantes saltam de ônibus em San Antonio, Texas, após serem liberadas dos centros de detenção familiar municipais de Karnes e Dilley, no mesmo estado. Courtesy of RAICES
PROVA DA ARBITRARIEDADE dos critérios de credibilidade das entrevistas é que o pedido de asilo do irmão de Jayne foi aceito nos Estados Unidos pouco após do dela. “Contei que tive uma briga com um vizinho que me ameaçou de morte”, afirma Geraldo Vilas Novas: “Outro motivo de eu ter fugido foi por esse problema com o ex-namorado da minha irmã. Ele bateu nela várias vezes, perseguiu ela, depois que ela foi embora, ele espancou meu pai. Eu não ia esperar pela minha vez. Mas não contei isso na entrevista, só falei do vizinho. Eles não me perguntaram nada sobre minha irmã, então eu não falei nada sobre ela”.

No dia 12 de outubro, o grupo de juristas que tomou o caso incluiu no pedido de asilo os motivos “ameaças por organizações de narcotraficantes” e, “mais importante, violência cometida pelo antigo parceiro, que a agrediu brutalmente desde os 14 anos”. Também foram descritos os traumas psicológicos passados no centro de detenção e as barreiras linguísticas. “Este caso tem todas as facetas de violações aos direitos civis encontradas na detenção familiar”, afirma Donohoe no documento. A equipe ainda agendou uma sessão com uma psicóloga voluntária que irá ajudá-la na preparação para a próxima entrevista.
No entanto, até agora a posição do governo americano é de negativa, com o contador marcando menos de duas semanas para que os advogados possam contornar o caso. A única coisa que previne mãe e filha de serem deportadas é a investigação sobre violação direitos civis que o Departamento de Segurança Nacional está realizando. Quando a investigação for concluída, no entanto, o futuro de Jayne se tornará ainda mais tenebroso.
No dia 22 de novembro o Itamaraty retornou mais questionamentos da reportagem com uma curta e inconclusiva resposta:
“De acordo com informações do Consulado Geral do Brasil em Nova York, a Sra. Jayne Alves Vilas Novas estava no Berks County Residential Center acompanhada por sua filha menor. Ainda segundo o Consulado, a deportação das duas deverá ser suspensa pelas autoridades norte-americanas”.
Questionado sobre quando mãe e filha devem ser liberadas, o ministério não se manifestou até o momento desta publicação. Um dia depois do email, no entanto, o segundo pedido de entrevista de Jayne foi negado.
Perguntado sobre o caso específico de Vilas Novas e sobre os traumas que ela passou no centro de detenção, o departamento de imigração americano se limitou a dizer que “se mantém comprometido em providenciar um ambiente seguro e humano para todos os que são abrigados pela agência” e que não há possibilidade de retaliação:
“O ICE não retalia de forma alguma os indivíduos que registram queixas contra as condições de suas instalações ou funcionários. Em consistência com a política da agência, os residentes de Berks têm a oportunidade de expressar de maneira privada as suas preocupações sobre as instalações. Esses documentos passam por muitos níveis de pesquisas minuciosas feitas pela agência para garantir que as preocupações dos moradores sejam rapidamente e adequadamente tratadas”.
Sobre as negações aos pedidos de novas entrevistas, o ICE indicou que a reportagem perguntasse diretamente ao Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA (USCIS) e ao Gabinete Executivo para a Revisão de Imigração. Nenhuma das duas pastas respondeu aos questionamentos enviados. A conselheira Hoffman se diz perplexa com as respostas taxativas do governo americano:
“Todos os advogados que trabalharam nesse caso, no Texas e na Pensilvânia, comentam que esse é um caso muito forte e que não conseguem entender por que o pedido segue sendo negado. Temos tantos documentos provando os abusos e as ameaças… O lado positivo é que temos a investigação que a mantém aqui, o que ainda é melhor que voltar para o Brasil, mas sua vida na detenção é miserável”.
Com a eleição de Donald Trump, leva-se ao poder uma plataforma de retórica anti-imigrante. O presidente eleito prometeu deportar no mínimo 3 milhões de imigrantes não documentados e implementar leis de imigração o mais agressivas possível. Trump também prometeu um congelamento de contratações federais que, segundo as previsões dos defensores, levará os já sobrecarregados tribunais a uma parada brusca. Tudo isso, os advogados afirmam, causará o enraizamento dos problemas inerentes ao atual sistema de detenção familiar.
A preocupação se ilustra perfeitamente na fala da defensora Donohoe:
“Durante o ano passado, todo mundo estava dizendo: ‘Oh, Deus, o que Trump faria com os imigrantes? O que Trump faria?’ Se você se preocupa com o que Trump faria com os imigrantes, olha o que Obama está fazendo. Ele está abrindo caminho para tudo o que Trump diz que fará. É o departamento de justiça de Obama que argumentou que as mães não merecem um dia no tribunal. Então, se você tem medo de Donald Trump, diga isso a Obama. Tudo está nas mãos de Obama. Ele pode acabar com isso. Ele pode fechar os centros”.
Nas mãos de Obama e do governo brasileiro, que poderia elaborar uma saída diplomática para o assunto. O ponto mais aterrorizante, segundo Donohoe, é que “se, para o departamento de imigração pode significar apenas uma cama ou um número, para Jayne e sua filha é a diferença entre estarem salvas ou serem aterrorizadas, ou até mesmo mortas”.