domingo, 22 de janeiro de 2017

"Contaminado pela corrupção, Brasil pode ser pioneiro em se livrar dela"

Sarah Chayes [Reprodução/Youtube]

Entrevista concedida pela jornalista Sarah Chayes, autora do livro Thieves of State (Ladrões do Estado), ao jornalista Luis Fernando Silva Pinto, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).
Ela estava no Afeganistão quando percebeu a dimensão real de algo que afeta quase todos nós, bilhões de pessoas no planeta todo, e que nós acabamos considerando uma coisa inevitável, a corrupção. A diferença é que Sarah Chayes em vez de ter a reação comum de ficar resignada com essa realidade, se revoltou e escreveu um livro chamado Ladrões de Estado, que descreve como lideranças corruptas destroem a riqueza de países inteiros e podem produzir violência ou até revoluções. Sarah Chayes é uma idealista, mas de um tipo raro. Uma idealista competente que revela problemas que parecem ser intratáveis, mas que às vezes podem até ter solução.

Luis Fernando Silva Pinto — Você foi para o Afeganistão em 2001 como jornalista, mas você imergiu na sociedade. Por quê?
Sarah Chayes — Porque me parecia ser a hora de calar a boca e agir, sabe? Como jornalistas, nós muitas vezes ganhamos a vida com os dramas de outras pessoas sem nenhuma responsabilidade sobre o resultado. Eu achei que era hora de mudar isso, e aquele era o momento certo, um divisor de águas histórico. Dava para sentir que o mundo iria em uma ou outra direção, e era hora de apoiar uma trajetória melhor.

Luis Fernando Silva Pinto — Você viu os efeitos da corrupção em Kandahar, onde estava, no seu dia a dia.
Sarah Chayes — Quase imediatamente. Eu não pretendia me dedicar à questão da corrupção. Nós estávamos envolvidos em projetos de reconstrução. O primeiro projeto que decidimos lançar foi simplesmente reconstruir um vilarejo que tinha sido destruído num bombardeio americano. Nós achávamos que, se a guerra era contra a Al Qaeda e não contra o povo afegão, o mínimo que os americanos deviam fazer era reparar os danos às casas da população causados por nós. Então eu arrecadei dinheiro com amigos e vizinhos nos EUA, de cidades próximas à minha na região nordeste do país, e nós fomos reconstruir um vilarejo de casas de tijolos de barro que tinha sido destruído. E era no sul do Afeganistão, onde há duas coisas de sobra: luz solar e pedras. Mas nós descobrimos que até uma casa simples precisa de fundações de pedra, senão ela se deteriora rápido. E não achamos que isso seria um problema até que tentamos comprar pedras para a fundação das casas e não conseguimos, porque o governador da província tinha concedido a si mesmo o monopólio das pedras, que ele transformava em brita para vender aos americanos que estavam estabelecendo sua base militar no aeroporto. E foi uma batalha inacreditável para conseguirmos simplesmente comprar pedras para substituir as moradias muito simples dos eleitores dele. E esse foi meu primeiro contato flagrante com os efeitos terríveis desse tipo de corrupção.

Luis Fernando Silva Pinto — Você teve uma dimensão maior da corrupção no Afeganistão quando conheceu melhor o governo em Cabul, especificamente a família do ex-presidente Hamid Karzai. O que foi que você viu?
Sarah Chayes — Eu passei a entender claramente a natureza sistêmica da corrupção. No Afeganistão, não era uma questão de um governador desviando um pouquinho aqui e ali monopolizando o mercado de pedras e outras transações comerciais com os militares americanos. Na verdade, estávamos diante de uma estrutura vertical na qual até mesmo desvios menores, como extorsões cometidas por policiais nas estradas.

Luis Fernando Silva Pinto — “Você só passa se pagar.”
Sarah Chayes — Exatamente. Esse dinheiro não vai para o bolso do policial. Ele faz parte de uma integração vertical, porque o policial dá parte dele para seu superior. Isso vai até o Ministério do Interior, e o que é dado em retorno é a proteção contra repercussões legais. E só depois que eu vi o presidente Karzai se jogar debaixo do trem, digamos assim, depois de ver o presidente gastar uma energia imensa para impedir qualquer esforço anticorrupção que nós implementamos entre 2009 e 2010 em nome de pessoas com nível de importância bem baixo que eu entendi que havia uma estrutura mafiosa ali: em retribuição à grande quantidade de dinheiro que sobe, na forma de compra de cargos — havia policiais que compravam seu cargo, apesar do baixo salário —, na forma de propinas, de presentes, etc... Em retribuição a esse dinheiro que subia havia uma garantia bem clara de proteção para os escalões mais baixos, assim como acontece em muitas organizações criminosas.

Luis Fernando Silva Pinto — A certa altura, ficou claro para você que não se tratava apenas de um esquema criminoso, mas de uma ameaça à segurança nacional do país. Como você uniu os pontos?
Sarah Chayes — Eu morava no centro de Kandahar, que era território do Talibã. Eu não tinha nenhuma proteção, nem arame farpado nem sacos de areia. Então eu era a americana mais acessível aos cidadãos afegãos comuns. Eu recebia muitas visitas de idosos e tal, e sempre ouvia da população local: “Se vocês não se concentrarem na corrupção do nosso governo, podem trazer um milhão de soldados para cá que não haverá segurança.” Isso queria dizer que o povo estava tão indignado com o governo que estava se unindo ao Talibã por raiva. Eles diziam que, se não combatêssemos a corrupção no governo, mesmo com um milhão de soldados não haveria segurança porque a indignação com o governo tinha crescido a ponto de o povo ficar suscetível à propaganda talibã. Vamos pegar o exemplo de um policial que te extorque na rua. Ele não pede seu dinheiro com educação, certo?

Luis Fernando Silva Pinto — Certo.
Sarah Chayes — Não é bem assim. Então existe um ataque e uma violação de sua dignidade humana que está presente nesse roubo que os ocidentais tendem a subestimar. Se você é um jovem afegão e recebe um tapa na cara porque não paga um suborno, vai acabar se revoltando.

Luis Fernando Silva Pinto — E vai pegar uma AK-47 e mandar tudo para o inferno.
Sarah Chayes — Exatamente. Além disso, existe um movimento, bem ali entre os seus vizinhos, que diz: “Nós vamos ajudá-lo a matar o policial.” Mas eles também dão o argumento. É muito importante entender isso. Eles dizem o seguinte: “O policial está te maltratando dessa forma porque ele não obedece a Deus, e se o nosso governo fosse organizado de acordo com a lei divina, esse tipo de coisa não aconteceria.”

Luis Fernando Silva Pinto — Mas isso serviria em outros lugares, para justificar qualquer coisa. “Ele não está sendo fiel ao partido, à igreja”, ao que seja.
Sarah Chayes — Pois é. E, atualmente, a ideologia que está servindo a esse papel é com muito mais frequência uma ideologia religiosa do que era há algumas décadas, quando as ideologias eram mais de esquerda. Esse é o argumento deles. Mas o mais interessante é que isso acontece não só hoje e entre muçulmanos. Eu acabei pesquisando sobre essa combinação e me vi no meio da Reforma Protestante lendo Martinho Lutero, e descobri que a maior queixa de Martinho Lutero era quanto à corrupção da Igreja Católica. Então a tendência de se apelar para a militância puritana, para uma religião puritana, num período de corrupção pública exacerbada é historicamente frequente.

Luis Fernando Silva Pinto — Você foi ao Pentágono discutir essa ameaça à segurança nacional do Afeganistão com o almirante Mullen, além de generais e comandantes das forças americanas. Como foi recebida? Eles a receberam, o que já foi uma vitória.
Sarah Chayes — Por incrível que pareça! Foi muito interessante. Não tenho formação militar. Eu escolhi me envolver com os militares no Afeganistão porque eles eram os atores mais importantes. Se eu quisesse influenciar a interação dos EUA com essa situação, tinha de falar com os militares, e fiquei muito impressionada com a receptividade deles a uma mensagem que não era completamente positiva sobre o gerenciamento das operações deles. Descobri que o tempo que passei lá me deu alguma credibilidade. Eu fiz o que nenhum militar fazia, que era viver em meio a afegãos comuns em Kandahar. Isso me deu alguma credibilidade, e os militares entenderam a relação que eu estava tentando estabelecer melhor do que qualquer outro grupo de líderes americanos, em parte porque eles vivenciaram aquilo. Particularmente no nível das tropas, no qual os comandantes interagiam com políticos locais, eles viam efeitos devastadores da corrupção.

Luis Fernando Silva Pinto — As forças armadas americanas usam um conceito interessante: a corrupção é uma força exponencial para o inimigo. Como concluíram isso?
Sarah Chayes — Acho que eu tive certa participação nisso. Nós passamos muito tempo defendendo esse argumento com um grupo de pessoas no QG de Cabul. Depois passei a trabalhar para o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. As forças armadas também são uma instituição organizada verticalmente, então isso deu um certo peso à minha palavra. E o chefe, o almirante Mullen, concordou comigo e levou a questão aos líderes do alto escalão, e o curioso foi a resistência dos líderes civis a esse argumento.

Luis Fernando Silva Pinto — Porque os EUA não queriam contrariar o presidente Karzai.
Sarah Chayes — Pois é. E isso acontecer no geral, não só no Afeganistão. O que se vê é: se pegarmos alguns dos lugares mais perigosos do mundo, inclusive Iraque, Síria, Iêmen e outros, e analisarmos a quem os EUA se aliam em seus esforços antiterrorismo, o país se alia a alguns dos governos mais corruptos e abusivos da região. Então o governo ainda não fez essa ligação. O mesmo problema que encontramos no Afeganistão persiste na política externa e de segurança dos EUA.

Luis Fernando Silva Pinto — No seu livro você mostra vários exemplos: corrupção no Egito, corrupção na Tunísia, na Igreja Católica há 500 anos... Existe um traço comum, uma dinâmica comum nesses esquemas de corrupção em grande escala?
Sarah Chayes — Notei algumas coisas. Primeiro, no mundo contemporâneo, acho que as coisas saíram dos trilhos em diversos países num período semelhante. Parece até que líderes de alto escalão não roubam menos de US$ 1 bilhão mais. A quantidade de dinheiro é muito significativa. A relação essencial tem a ver com a globalização por um lado, que facilita o fluxo financeiro para fora dos países, enquanto que em sistemas antigos o dinheiro ficava preso num círculo fechado, então havia uma distribuição obrigatória de alguns desses recursos. Hoje você os tira do país e põe em Dubai, na Suíça ou nas Ilhas Virgens Britânicas. Segundo, acho que é uma questão de princípio que tem a ver com o colapso do sistema socialista. Não estou dizendo que o sistema socialista não era corrupto ou abusivo, no entanto, em termos de acúmulo privado de riqueza, ele colocava um limite e exigia que uma quantidade mínima de bens públicos fosse oferecida à população. Quando isso acaba e é substituído pela política de Ronald Reagan e Margaret Thatcher de acúmulo privado de dinheiro, de exaltação à ganância, isso leva a uma série de mudanças éticas, na verdade.

Luis Fernando Silva Pinto — Para alguns, “ser ganancioso é bom” não é só uma expressão.
Sarah Chayes — Pois é. Exatamente. Então eu suspeito que a raiz da crise financeira mundial de 2008 e 2009 esteja ligada à raiz dessa epidemia de corrupção que estamos presenciando. Acho que são fenômenos intimamente ligados que surgiram na mesma época.

Luis Fernando Silva Pinto — Num país como o Brasil, onde, no último ano, testemunhamos a revelação de uma série de abusos, qual é a consequência? A exposição da corrupção é algo positivo ou isso pode levar ao mesmo tipo de desestabilização que você mencionou?
Sarah Chayes — O sistema brasileiro se enquadra entre aqueles que estou estudando. Ele é estruturado, é muito sofisticado, atende muito bem aos membros da rede e produziu um impacto devastador na população brasileira. As taxas de desigualdade do Brasil estão entre as maiores do mundo, o que é, por definição, o tipo de situação que costuma levar a algum tipo de caos violento. A população brasileira tem lidado com esse problema de uma forma muito construtiva, através de protestos pacíficos, tentando forçar tanto a responsabilização dos envolvidos quanto reformas. O que vai acontecer no Brasil vai depender do nível de sofisticação da coalizão reformista no país. Acho que o primeiro passo foi a revelação dos problemas, que deixou o povo com raiva, aí a questão é como canalizar essa raiva da forma mais construtiva possível. É preciso responsabilizar alguns dos principais criminosos do governo para que a necessidade de justiça seja saciada. Mas isso não será suficiente para o Brasil superar as dificuldades. Será necessário um programa de reformas sério para reequipar muitos dos elementos do governo que eram reféns da rede de corrupção.

Luis Fernando Silva Pinto — Para um país do tamanho do Brasil, com a história democrática recente do Brasil, a revelação de tanta corrupção é única no mundo. É possível, depois dessas revelações, construir um país menos contaminado pela corrupção?
Sarah Chayes — Acredito piamente que sim, de verdade. Acho que o Brasil é um lugar incrivelmente sofisticado, equilibrado e dinâmico. Seu capital humano é extraordinário, e acho que o nível de indignação e raiva com o que foi revelado é alto, então a pergunta é: quem são os líderes alternativos, quem são os agentes de mudança que podem capitalizar o clamor público por uma forma diferente de fazer as coisas, que podem capitalizar a aversão do país à violência e dizer que a melhor forma de evitar o tipo de desastre que se abateu sobre lugares como Egito ou Nigéria é aproveitar da melhor forma a oportunidade que foi apresentada pelo poder judiciário?

Luis Fernando Silva Pinto — Você acredita que sociedades que foram contaminadas pela corrupção podem se livrar dela?
Sarah Chayes — Não existem muitas histórias de sucesso. Em parte porque acho que esse nível de corrupção, esse fenômeno, é relativamente novo, e acho que o verdadeiro alcance dele ainda não foi compreendido. O Peru, mais perto do Brasil, certamente ainda não é um modelo, mas é bem diferente do que era no governo Fujimori. Eu acredito na capacidade humana de exigir níveis básicos de justiça em relação à forma como nossos interesses públicos são administrados. Portanto, sim, eu acredito que o Brasil pode ser total pioneiro nesse sentido, e o resto do mundo precisa que vocês sejam.

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