sábado, 25 de fevereiro de 2017

As ruínas da velha injustiça colonial paulista, por Fábio de Oliveira Ribeiro

sp_bandeira.jpg

Por Fábio de Oliveira Ribeiro
http://jornalggn.com.br/

01 de abril de 2148. Faz 130 anos que a guerra civil finalmente havia devastado as instituições da antiga capitania hereditária que existiam sob um verniz republicano. Levei meu netinho para ver as ruínas do antigo Tribunal de Justiça que durante muito tempo havia legitimado tanto a corrupção desenfreada do Palácio dos Bandeirantes quanto a odiosa brutalidade da extinta Polícia Militar.

As ruínas eram imponentes. Uma das portas de entrada do prédio ainda estava em pé, parcialmente derretida pelo incêndio. Junto a ela uma pequena seção da parede que a sustentava apresentava marcas dos tiros de canhão que havia recebido. Aquele havia sido um dia glorioso. O dia zero do ano zero.

Os livros contam a história em detalhes. Todos os desembargadores e juízes que se recusaram a aceitar a nova ordem foram presos no edifício do antigo Tribunal. Eles foram fazer companhias aos outros detentos que estavam no edifício: coronéis da PM, políticos desonestos, fiscais da receita estadual que haviam enriquecido de maneira duvidosa, a cúpula do Ministério Público e diversos deputados estaduais. As portas e janelas do prédio foram lacradas por fora.

Exatamente às 12 horas de 01 de abril de 2018 as quatro peças de artilharia fixa posicionadas na Praça da Sé começaram a despejar suas granadas explosivas e incendiárias no prédio. Tímido, o incêndio logo se espalhou pelo prédio à medida que as granadas continuavam a explodir e alimentar o fogo.

Os lamentos dos barões da antiga ordem nem mesmo podiam ser ouvidos. O crepitar do fogo e o ribombar dos canhões eram a única música que a população ouvia enquanto dançava e aplaudia a destruição da última instituição colonial que ainda estava intacta. Em algumas horas o prédio todo estava em chamas e logo começou a ruir. Primeiro o teto, depois uma parede lateral.

As equipes dos bombeiros trabalharam muito aquele dia para confinar o fogo ao odioso prédio que espalhava injustiça por todo Estado e que tinha abrigado centenas de desembargadores arrogantes. À medida que o telhado do prédio desabava a população ria lembrando que tinha sido vítima de uma casta que ganhava salários acima do teto. Às 20 horas os canhões silenciaram, mas o fogo continuou a crepitar e o prédio seguiu rachando e ruindo.

No dia seguinte os canhões voltaram a rugir. Centenas de novas granadas incendiárias e explosivas finalizaram a demolição das seções internas do prédio que haviam conseguido resistir ao dia anterior. Nenhum som humano podia ser ouvido nos escombros. Uma chuva torrencial se encarregou de apagar os fogo e lavar a demolição e os demolidores. Todos os beneficiários do antigo regime foram despedaçados ou incinerados. Os que se esconderam nos porões do Tribunal certamente haviam morrido soterrados, asfixiados ou afogados

Não se faz omelete sem quebrar ovos, nem revolução sem destruir os símbolos e os instrumentos humanos de um antigo regime. As ruínas do antigo Tribunal de Injustiça tinham um valor histórico importante. Por isto, elas foram preservadas. Nada foi construído no local. Uma única providência foi tomada para evitar que o sítio fosse colonizado por ervas tão daninhas quanto as que vomitaram decisões indecentes, injustas e ilógicas naquelas Câmaras de tortura do Direito. As ruínas foram salgadas. Desde então a cada cinco anos uma nova camada de sal é espalhada sobre os escombros.

Os restos daquele prédio tão imponente quanto infame foram preservados para a posteridade para que os novos paulistas pudessem se lembrar que eles haviam destruído o que os antigos paulistas mais amavam: o prédio onde alguns Acórdãos eram copiados e colados de outros e decisões eram vendidas sob encomenda aos donos do mercado e aos políticos corrompidos. Naquele Tribunal a justiça havia sido sacrificada toda vez que um policial assassino tinha sido premiado com uma absolvição absurda, duvidosa ou injusta. Naquele mesmo prédio centenas de milhares de processos das pessoas mais pobres e menos influentes eram menosprezados e julgados sem qualquer rigor.

Na placa comemorativa dos 100 anos da destruição do prédio odioso estava escrito em letras góticas: “Aqui jaz aquela bosta chamada Tribunal de Justiça de São Paulo, cuspa nas ruínas aquele que por aqui passar.” Meu netinho rapidamente foi pular os escombros da velha ordem. Ele estava feliz da vida. E eu o deixei fazer aquilo que as crianças fazem bem. Algum tempo depois ele retornou e me perguntou o que eram aquelas pessoas imóveis e retorcidas que se encontravam num pequeno pátio que havia sido cuidadosamente limpo no centro do antigo Tribunal.

-São apenas alguns cadáveres carbonizados que foram encontrados durante a escavação do porão que ocorreu há 50 anos. Seu avô participou da equipe de arqueólogos que realizou aquele trabalho memorável.

-Você vai me contar a história vovô?

-É claro meu neto. Por volta de 2090 o povo começou a perder o interesse nas ruínas e um partido político começou a defender a construção de um novo prédio público neste local. O novo povo paulista deveria sempre recordar como era odiosa, viciada, nojenta e parcial a justiça que saia do prédio destruído. Foi então que a decidimos fazer a escavação para renovar a vontade da população de conservar as ruínas como elas estavam.

-Conta mais vovô…

-Bem. Nós não queríamos colocar em risco o monumento. Então seu avô, que era um jovem arqueólogo, teve uma idéia: escavar o subterrâneo das ruínas construindo um túnel de acesso saindo da praça em frente do monumento.

-O que aconteceu então vovô?

-O projeto levou algum tempo para ser aprovado, mas foi rapidamente concluído. Quando finalmente chegamos ao local onde havia sido a garagem do prédio encontramos os restos de alguns cadáveres. Objetos pessoais também foram recolhidos no local. Então alguém teve a idéia de, a partir dos restos encontrados construir modelos computadorizados em 3 D dos cadáveres nas posições em que eles foram encontrados. Estes modelos foram depois transformados em estátuas por artistas da Lapa. E as estátuas foram colocadas onde você as viu.

-Vamos lá ver mais vovô?

-Vá você meu neto. Eu estou velho e cansado. Ficarei aqui sentado esperando você. Qualquer dia destes o seu pai vai levar você para ver as ruínas da Igreja Nova lá em Sobradinho e do STF lá em Brasília. E então você poderá comparar estas ruínas com duas outras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário