quinta-feira, 16 de março de 2017

Brasil entre ficção e realidade: o país da pós-verdade

Brasil entre ficção e realidade: o país da pós-verdade
     Foto: Paulo Pinto/AGPT

André Muniz Cavalcanti e Tiago Muniz Cavalcanti
http://justificando.cartacapital.com.br/

Na sociedade criada por George Orwell em sua notável obra 1984 – traduzida para diversos idiomas e transformada em filme –, o Estado, além de ditar as regras de conduta, preocupava-se em manipular os fatos com o fito de impedir interpretações que não a oficial. Qualquer modo de traduzir a realidade que não se coadunasse com o estatal deveria ser delatado e sumariamente punido.

Apesar de fictício, pode-se vislumbrar ínsita relação do enredo – no que diz respeito à manipulação dos fatos pelas fontes oficiais – com o Brasil hodierno, em que a repulsiva conjuntura política não tem sido capaz de comover a opinião pública.

A atual indiferença em relação à verdade traz alguns fortes elementos de Orwell. Embora a “pós-verdade” descarte o autoritarismo típico das ditaduras militares e dos estados totalitários, é severamente marcada pelo desarranjo entre a realidade dos fatos e aquilo que vem a substituí-la: a propaganda. Nesse sentido, em se tratando da proposição das reformas e dos projetos de seu interesse, o governo se favorece de “verdades” oficiais desconectadas da realidade. Analisem-se as reformas trabalhista e previdenciária e as propostas de massivos cortes nos gastos estatais. Prefere-se o boato ao fato; o tecnicismo à franqueza; a emoção à razão.

A reforma da legislação trabalhista, anunciada pelo governo federal como um “belíssimo presente de Natal”, promete modernizar as leis laborais e, com isso, proporcionar condições vantajosas para a geração de empregos. Todavia, além de não estimular a elevação do nível de empregabilidade, o plano governista, ao tornar prevalecente o negociado sobre o legislado, corrói direitos históricos e dissolve a proteção trabalhista característica da legislação estatal. Permitir a livre negociação em detrimento da lei esconde uma verdade secular: disputas entre Davi e Golias tendem a produzir resultados opostos ao milagre bíblico.

O “rombo” da Previdência é mais um caso de “pós-verdade” axiomática a qual alicerça as pretensões governistas. O slogan oficial dela se aproveita: “é preciso reformar para manter“. Trata-se de uma suposta verdade, oriunda de fontes oficiais, mas contestada até mesmo por órgãos e entidades conectadas ao governo: a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP) afirma que a Previdência não é deficitária; pelo contrário, opera em condição superavitária, conforme estudo publicado anualmente (Análise da Seguridade Social 2016/2017). Ademais, a reforma, nos moldes aventados, apresenta-se de todo injusta para os mais pobres. Afinal, a Previdência – notório instrumento de distribuição de renda e de controle das desigualdades sociais – será transformada num imposto sobre a vida: paga-se enquanto se respirar. 

Não custa lembrar que até mesmo a nomenclatura das repartições estatais é paradoxal: assim como na ficção de 1984, onde o Ministério da Paz concebe a guerra, e o da Verdade, a censura, no Brasil de 2017 o Ministério do Trabalho deteriora a proteção laboral, e a Secretaria da Previdência, a aposentação.

A “pós-verdade” não para por aí. A imposição de limites rígidos aos gastos públicos soa bastante audível à opinião pública, sobretudo em tempos de recessão e reverberação midiática de corrupção sistemática no setor público. Essa meia-verdade serviu de pretexto para a aprovação da Emenda Constitucional nº 95, cuja política de redução de despesas e investimentos por duas décadas vai de encontro à rejeição mundial ao regime de arrocho fiscal, comprovadamente uma das maiores causas da estagnação econômica. Trata-se de uma restrição severa que acomete direitos sociais, atrofia o Estado e sacrifica os mais pobres.

Claro está, portanto, que o governo federal vem capitulando o desmonte do estado social por meio de um processo de desconstitucionalização de direitos fundamentais estatuídos a duras penas na Constituição de 88. O que surpreende, porém, é a facilidade com que os fatos são manipulados e falsamente propagados pelos veículos oficiais, bem como pela grande mídia, principal advogada da ideia de que pobres devem suportar o ônus da crise econômica. Talvez Orwell não tenha imaginado que, em 2017, a coerção e o açoite seriam desnecessários.

André Muniz Cavalcanti é Servidor Público Federal e Tiago Muniz Cavalcanti é Procurador do Trabalho. 

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