sábado, 18 de março de 2017

ROGER COHEN | COLUNISTA DO NEW YORK TIMES - “Misturar o verdadeiro e o falso é típico das ditaduras”

Jornalista converteu-se em correspondente em seu próprio país, observador atônito da ‘era Trump’

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Nas páginas do The New York Times, Roger Cohen (Londres, 1955), é um dos colunistas mais influentes dos Estados Unidos. Em suas memórias, The Girl from Human Street (A garota de Human street), conta a história de sua família, que começa na Lituânia. Todos os que não fugiram foram assassinados pelos nazistas. Sua história passa pela África do Sul e pelo Reino Unido e é marcada pela tolerância e pela ideia de que somente a generosidade de outros países que abriram suas fronteiras permitiu sua existência. Uma frase do historiador britânico Simon Schama, que citou em uma de suas últimas colunas, resume seu pensamento sobre a presidência de Donald Trump: “A indiferença para com a verdade e a mentira é uma das condições prévias do fascismo. Quando a verdade morre, também cai a liberdade”. Cohen visitou Madri recentemente, convidado pela Fundação Rafael del Pino, onde deu uma conferência.

Pergunta. Seus familiares conseguiram sobreviver porque puderam se tornar refugiados. O que o senhor sente diante da política de imigração de Donald Trump?

Resposta. Venho de uma família que teve de emigrar a cada geração, da Lituânia, da África do Sul... Estou indignado, é desnecessário. Não há nenhuma evidência de que algum cidadão dos países vetados tenha cometido um ato terrorista com perda de vidas nos EUA nos últimos anos. Durante toda a campanha, vimos que Donald Trump, com Steve Bannon por trás, é antimuçulmano. Vimos isso com essa medida, estimulada por preconceitos. A forma como foi adotada provocou caos e justa indignação não só entre aqueles que não puderam entrar nos EUA, apesar de terem visto, mas em todo o mundo. É injustificável.

P. Podemos entender a história do século XX, e inclusive a do século XIX, sem a imigração em massa de milhões de pessoas em todo o mundo?

R. Os Estados Unidos são uma ideia, e uma parte importante dessa ideia é que é um país de imigrantes. Trump é um retrógrado. Todo movimento populista precisa de um mito do passado (“que a América volte a ser grande de novo”), e um inimigo, que para Trump são os mexicanos e os muçulmanos. Ele está tomando um caminho muito perigoso, o do medo. Dito isso, ele ganhou e foi capaz de intuir algo está acontecendo, captar o medo, a ansiedade em relação à precariedade econômica, o ressentimento, o sentimento de que as elites agiram com total impunidade no crash de 2008. E, como no caso do Brexit, baseou-se em mentiras, não há outra palavra para isso. Existe uma percepção de que a democracia não protege todos...

P. O senhor fez uma reportagem sobre os campos em que estão confinados os refugiados que tentam chegar à Austrália, lugares terríveis. Acredita que na crítica às medidas de Trump há alguma hipocrisia, muitos países fazem o mesmo sem o dizer?

R. Estamos diante de um problema real: vivemos o momento com mais refugiados desde 1945 e a capacidade das democracias ocidentais para absorver centenas de milhares de pessoas é limitada. A Alemanha não foi hipócrita, acolheu quase um milhão de refugiados. É necessário que as pessoas sejam tratadas com justiça e humanidade, de acordo com a Convenção sobre os Refugiados. No caso da Austrália, não é assim em absoluto. Há mais de três anos, milhares de pessoas, seres humanos, estão apodrecendo em duas ilhas remotas. Muitas delas estão doentes, outras estão traumatizadas, é algo terrível. Nos EUA, o fato de que o presidente use esse tipo de preconceito contra os muçulmanos, uma população total de 1,1 bilhão de pessoas no mundo, pode ter consequências muito graves.

P. Qual é a diferença entre a pós-verdade e as mentiras que dizem muitos presidentes e políticos de todo o mundo como, por exemplo, as mentiras de George W. Bush que deram a base para a invasão do Iraque?

R. Existe uma diferença. Trump diz coisas, como o ataque fictício na Suécia, que por um lado são ridículas, mas por outro são perigosas. A palavra do presidente dos EUA é algo que durante 75 anos ajudou a manter a segurança global, era crível, mas não é mais. É verdade que a invasão do Iraque foi baseada em mentiras. Mas agora o presidente norte-americano acusa o The New York Times e o The Washington Post, dois pilares da República, de divulgar notícias falsas, estamos entrando num mundo onde dois mais dois são cinco. Misturar o verdadeiro e o falso é um problema muito sério porque é uma característica fundamental das ditaduras. No final, a única verdade é a voz do líder, que é o que Trump se considera. Devemos ter muito cuidado com os paralelismos históricos, mas, ao mesmo tempo, não podemos ignorar o que aconteceu nos anos trinta. Temos Steve Bannon, o homem da sombra, dizendo que “a imprensa deveria fechar a boca”. Acho que os meios de comunicação têm de fazer seu trabalho: responsabilizar o poder e testemunhar os acontecimentos. Isso é mais sério, porque há um ataque premeditado e total contra a verdade. Está sendo criado um ambiente em que a verdade e a mentira são intercambiáveis.

P. Em seu livro, o senhor escreve: “As verdades são muitas e em todas as guerras se luta pela memória”. Podemos chegar a esse estado? Mesmo que não haja guerra, o senhor acredita que estamos, na Europa e nos EUA, diante de partes em conflito com memórias diferentes?

R. Cobri guerras no Líbano, na Bósnia e cada lado tem sua verdade e sua memória, que é sempre fluida e manipulável pelos líderes nacionalistas. François Mitterrand costumava dizer que “o nacionalismo é a guerra”. O nacionalismo levado a certo ponto representa sempre a guerra e esse é o triunfo da UE. Uma das coisas que mais me alarmam nos dias de hoje é como a grande criação política da segunda metade do século XX, a UE, é atacada pelo presidente Trump, foi corroída pelo Brexit e está sofrendo uma extraordinária amnésia sobre suas realizações.

P. A imprensa pode ser suficiente para conter Trump?

R. Não é apenas a imprensa, também temos os tribunais. É extraordinário ver como a Constituição dos Estados Unidos, tantas décadas depois, continua a fornecer instrumentos para responsabilizar as autoridades. Há um grande problema nos EUA: é um país dividido e os seguidores de Trump não se importam com o que o The New York Times diz. Como superar essa ruptura? É uma pergunta muito importante.

P. Os populismos sempre oferecem soluções simples para problemas complexos, seja Trump, Marine Le Pen na França ou Geert Wilders na Holanda. Dizem que é suficiente tomar medidas contra os estrangeiros para que tudo se resolva. Como podemos lidar com isso?

R. A realidade irá colocá-los em seu lugar, veremos se Trump tem um coelho na cartola, se pode recuperar os postos de trabalho nas fábricas na era da robótica. A classe média norte-americana comprovará os resultados. Não vamos mudar a natureza humana, o fato de que as pessoas se sintam atraídas por um personagem autoritário como Trump, que usa o medo, que é cheio de ira, que promete soluções milagrosas. Também temos de reconhecer que fez algo extraordinário, incrível.

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