sexta-feira, 19 de maio de 2017

Por quem um juiz garantista chora?

Por quem um juiz garantista chora?


É noite de sexta, o frio da serra neste inverno está intenso, provavelmente haverá geada no amanhecer de sábado. O expediente terminou faz algum tempo. Estou sozinho no gabinete. Desligo computador. A música que me auxilia a trabalhar também se cala. Sento-me no sofá. Observo a sala na quietude, a mesa em ordem a mostrar o dever cumprido, a cadeira em frente tantas vezes usada por advogados a pleitear os direitos de seus clientes, a cafeteira com cápsulas vazias, que incontáveis cafés serviu, os quadros na parede a lembrar os grandes escritores do século XX, uma foto da turma do concurso da magistratura emoldurada, selando meus ideais, os livros, belos livros, alinhados nas prateleiras. Um silêncio vazio, frio, insensível toma o Fórum. 

Olho para mim mesmo, volto-me para meu ser, sinto-me cansado, respiro. Então uma dor me toma o peito e um sentimento que não identifico, talvez de angústia, percorre meu corpo. Sem mais começo a chorar. Surpreendo-me porque não lembro quando foi a última vez que chorei, talvez quando meu pai faleceu, mas isso já se vão muitos anos. Os cotovelos apoiados nas pernas, as palmas das mãos fechando meus olhos. É um choro contido, baixo, interno. Pensamentos vários povoam minha mente e acentuam mais o choro.

Choro pelo pai que perdeu seu filho para a violência.

Choro pela mãe que segura nos braços aquele que para ela sempre será uma criança, que o embala e o acaricia, que com o amor materno consegue fazer o filho esquecer que está num pátio inóspito, sujo, áspero, cercado por muralhas e grades, que consegue fazer por um breve tempo o mundo de espinhos e sofrimento ser aplacado pelo perfume das flores e pelo mel das abelhas, numa primavera de cores e renascimento.

Choro pelos filhos que, presos, arrependem-se do caminho tomado, sem volta, e que se revoltam pelo destino impiedoso, jovens cuja idade eu já tive mas que fatalmente, desgraçadamente, é muito provável não terão a minha.

Choro pelas vítimas que jamais superarão a perda e que se fecham em sua solidão, numa dor lancinante, sem perspectivar de cura.

Choro pelos que trabalham num sistema prisional precário e que todos os dias sustentam-se numa corda bamba, sem saber se retornarão para seus lares íntegros.

Choro pelas pessoas que não compreendem o meu trabalho e investem de maneira cruel contra aquilo que represento, numa irracional espécie de cruzada, pessoas que veem o mundo com maniqueísmo e não se dão conta da insignificância de um cargo frente à complexidade do mundo e à fragilidade do homem.

Choro pela equipe que me assessora, apoia e me defende, que se confunde com as paredes do corredor das causas por onde caminho e às quais pertenço, que sofre quando sofro.

Choro pela dúvida, pela fraqueza, pelo fracasso.

Choro porque não sei até quando conseguirei seguir adiante na luta pelos direitos humanos e porque sei que seguirei adiante, até cair e não mais poder levantar, num suspiro e num lamento finais.

Choro pela energia e vontade de mudar o mundo, mas que fica contida no meu ser, porque a liberdade não mais me pertence, porque muitos de mim dependem e em mim confiam, porque não posso saltar no precipício da inconseqüência.

Choro porque o reconhecimento da luta que luto virá muito tarde, porque não terei a felicidade de ver esse mundo sem o flagelo da miséria, porque no dia em que prisões não mais existirem e que todos saibam do fracasso da pena para a humanidade eu não mais estarei aqui, não verei o fascismo levado pelo vento.

Choro porque não presenciarei a história mostrando a catástrofe das políticas de segurança pública, os medos e tragédias sociais criados para fortalecer um estado policial, que enquadra o Poder Judiciário, diminui a liberdade e fragiliza inclusive a segurança.

Choro porque quem esteve no inferno não fala sobre isso. Sentado no sofá, na solidão de meu gabinete, choro sem saber se já estive no inferno, sem saber se o flagelo humano a que sou confrontado todos os dias é o mais perverso retrato do mal.

Choro porque está difícil ser juiz, porque garantir o respeito aos direitos fundamentais tem um preço, porque no Brasil não se pratica o garantismo constitucional impunemente.

Choro porque a luta dói, porque não tenho direito de chorar, porque tenho vergonha em sentir tristeza uma vez que não conheço a verdadeira fome, o verdadeiro sofrimento, a verdadeira miséria. 

Choro pelos meus amigos, pela minha família, por tantos que me querem bem mas que não imaginam a guerra que estou travando.

Choro porque estou só e sozinho, porque não compartilho esse choro. Todos já tem o suficiente para si mesmos, não precisam de outros sofrimentos.

Choro porque ainda acredito que posso fazer algo na busca de dias melhores para todos e que afinal de contas é o amor que prevalecerá.

Choro porque tenho esperança.

Choro por mim.
*O artigo foi escrito por um magistrado que preferiu não se identificar.

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