sábado, 10 de junho de 2017

Caso Dreyfus: Eu acuso!

Caso Dreyfus: Eu acuso!

Leonardo Isaac Yarochewsky
Advogado Criminalista

J’accuse!, em português Eu acuso”, é o título da carta aberta (artigo) publicado em 13 de janeiro de 1898 no jornal L’Aurore, escrita pelo romancista e ativista político francês Émile Zola (1840–1902) e dirigida ao então presidente Félix Faure. Trata-se de uma contundente e implacável “denúncia” contra os oficiais que ocultaram a verdade no caótico caso em que o oficial francês de origem judaica Alfred Dreyfus, foi acusado injustamente de traição e espionagem. O Caso Dreyfus, é sem dúvida um dos maiores e mais polêmicos casos de erro judiciário da história. Em razão da carta aberta, Zola acabou sendo processado e condenado por difamação. [1] 

O Caso Dreyfus
A partir da interceptação de uma carta, em setembro de 1894, cujo conteúdo teria segredos estratégicos, o Estado-Maior francês sai à busca de um culpado e depois de breves investigações chega ao capitão Alfred Dreyfus, acusado de espionagem em favor da Alemanha, aparentemente segundo algumas evidências grafológicas, elas mesmas, aliás, de caráter duvidoso. De todo o volumoso dossiê da acusação, somente foi exibido o chamado bordereau,[2] carta supostamente escrita por Dreyfus, endereçada ao adido militar alemão, Schwartzkoppen.
A história começa a mudar quando em junho de 1895 o tenente-coronel Picquard tornou-se chefe da Seção de Estatística do Estado-Maior, na realidade encarregada de informações e contraespionagem. Sendo certo que o caso começou a ter uma reviravolta quando “em maio de 1896, Picquard disse ao chefe do Estado-Maior, Boisdeffre, que estava convencido da inocência de Dreyfus e da culpabilidade de um outro oficial, major Walsin-Esterhazy. Seis meses mais tarde, Picquard foi removido para um perigoso posto na Tunísia”. [3]
É fato que em agosto de 1898 Walsin-Esterhazy foi reformado por crime de peculato. Walsin-Esterhazy logo contou a um jornalista inglês, que ele – e não Dreyfus – era o autor do famigerado bordereau, tendo forjado a letra de Dreyfus por ordem do coronel Sandherr, seu superior e antigo chefe da Seção de Estatística.
Somente quatro anos após a morte de Zola (29/9/1902), é que em 1906 o Exército francês acabou, admitindo o grande e irreparável erro, reintegrando Alfred Dreyfus, que chegou a receber uma medalha da Legião de Honra. Dreyfus morreu em 1935.
O judeu Alfred Dreyfus
Quando o Caso Dreyfus tomou proporções internacionais, a França se via agoniada por forte crise econômica, tensões sociais e confrontos políticos. O país se encontrava dividido entre:
i) uma direita reacionária, umbilicalmente ligada às Forças Armadas e à Igreja, e
ii) os republicanos liberais e as forças de esquerda. Enquanto os conservadores clamavam pelo retorno da monarquia, os republicanos e a esquerda defendia a continuidade da República. Nessa confrontação, as Forças Armadas desempenhavam um papel importante, principal sustentáculo da ordem vigente que eram.
Destaca-se também o papel da imprensa de direita – muito ativa, ultrarreacionária e antissemita, na incitação do povo contra os judeus. Especialmente o jornal “La Libre Parole” de Édouard Drummont, que se aproveitou do Caso Dreyfus para desencadear uma generalizada campanha antissemita. Drummont publicou, em 1886, um “devaneio” antijudaico de dois volumes, intitulado “La France Juïve”. Dos segmentos conservadores se ergueram as principais forças de acusação contra Dreyfus. Mesmo quando confrontados com provas contundentes da farsa cruel que fora preparada para condenar o oficial judeu, recusaram-se, ainda assim, a aceitar mudar o veredicto, afirmando que tal atitude poderia denegrir a imagem das Forças Armadas junto à sociedade francesa, desestabilizando o país.
Conforme salientou Ricardo Lísias, organizador e tradutor da obra “Eu Acuso!”:
O judeu Dreyfus, em uma sociedade em que o antissemitismo começava a crescer (e culminaria no vergonhoso apoio às políticas da Alemanha de Hitler), torna-se um suspeito facilmente condenado pela opinião publica e, no final daquele mesmo ano, um conselho de guerra o obriga ao degredo na ilha do Diabo, além de expulsá-lo do Exército, com um ato de humilhação pública.[4] (grifamos)
Segundo a filósofa Hannah Arendt (1906-1975) o Caso Dreyfus, com todas suas implicações políticas, pôde sobreviver em razão de dois elementos que cresceram no decorrer do século XX:
i) o ódio aos judeus;
ii) a desconfiança geral para com a república, o Parlamento e a máquina do Estado.[5]
Em “Origens do totalitarismo”, Hannah observa que até a atualidade, o termo “antidreyfusard” poderia ser definido na França, de modo aceitável, como tudo que era antirrepublicano, antidemocrático e antissemita.
Hannah salienta que:
Enquanto o Caso Dreyfus sem seu aspecto político pertenceu ao século XX, o processo Dreyfus e os vários julgamentos do capitão judeu Alfred Dreyfus são bem típicos do século XIX, quando se seguiam com tanto interesse os processos legais, porque cada instância tentava testar a maior conquista do século, que era a completa imparcialidade da justiça. É peculiar daquele período que um erro judicial despertar tais paixões políticas e inspirar uma sucessão tão infindável de julgamentos e revisões, para não mencionar os duelos e as lutas corporais. A doutrina da igualdade perante a lei estava ainda tão firmemente implantada na consciência do mundo civilizado que um único erro na justiça era capaz de provocar à indignação pública, de Moscou a Nova York (…)[6]
O papel de Rui Barbosa
Rui Barbosa, quando vivia na Inglaterra em 1895, logo após o julgamento e da condenação de Dreyfus escreveu para o Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, texto em que apontava as questões políticas e, especialmente, jurídicas para expor a ilegalidade e inconsistência do processo contra o capitão Dreyfus.
Rui Barbosa destacou o absurdo da única “prova” contra Dreyfus, o famigerado bordereau em que se baseou a acusação e que levou a condenação de Alfred Dreyfus. Salientou Rui, que a defesa – Fernand Labori e Charles Demange – além de não terem acesso ao citado documento, quando tentavam contestar a autenticidade da imprestável “prova”, tinham suas vozes cortadas. [7]
Rui destacou, também, no texto sobre o controvertido julgamento, que: “Dreyfus não tinha nenhuma nódoa, um traço duvidoso. Quinze anos de serviços imaculados e a alta posição de confiança, que ocupava no mais delicado ramo da administração da guerra, definem-lhe a fé de ofício (…)”.
Embora o texto de Rui Barbosa tenha se centrado em fazer uma comparação entre o sistema judicial inglês e o sistema francês, não se pode negar a importância do trabalho de Rui, principalmente, para os leitores no Brasil.
A influência da mídia e opinião publica (da)
Não se pode olvidar que a imprensa e, principalmente, os jornais franceses tiveram grande influência na (de) formação da opinião publica (da). No dia 15 de outubro de 1894 Alfred Dreyfus foi acusado de alta traição. No dia 29 do mesmo mês, o jornal La Libre Parole questionou o silêncio das autoridades militares diante da prisão de um traidor. Dois dias depois, o L’Eclairconfirmou a pri­são do capitão Dreyfus. No mesmo dia, O Le Soir revela o nome e o cargo do acusado e, no dia 1º de novembro, o La Libre Paroleanuncia a prisão do oficial judeu.
Intoxicada pela propaganda antissemita – Drummont La Croix – e aterrorizada pelos riscos a segurança que a suposta traição poderia ocasionar, as garantias judiciais foram desprezadas. Assim em nome da, sempre perigosa, “razão de Estado”, a corte marcial violou arbitrariamente vários regulamentos. Os advogados de defesa, Fernand Labori e Charles Demange, como já foi salientado, não tiveram acesso ao “dossiê secreto” preparado pelo general Mercier — determinado a condenar o capitão Dreyfus a qualquer custo — e que segundo a acusação conteria “provas irrefutáveis dos contatos do capitão com Schwarzkoppen”.
Ignorou-se também o direito de Dreyfus a uma pena mais leve, a de deportação para a Nova Caledônia, por ser réu primário e ter nível superior de escolaridade. Em vez disso, o capitão foi punido com trabalhos forçados, ao lado de presos de alta periculosidade, na pavorosa Ilha do Diabo. Para lá o embarcaram, após a humilhante cerimônia de degradação a 5 de janeiro de 1895, em que seu sabre foi quebrado e ele se viu despojado do uniforme.
Em relação à cerimônia de degradação pública de 5 de janeiro de 1895, ocorrida no pátio da Escola Militar, em que o capitão Dreyfus foi publicamente humilhado, Rui Barbosa escreveu:
Essa multidão espumante, que cercava, ameaçadora, a Es­cola Militar, bramindo insultos, assuadas e vozes de morte, – que mais era, portanto, afinal, do que uma força violenta e cega, como os movimentos inconscientes da natureza física? Pela minha parte, não conheço excesso mais odioso do que essas orgias públicas da massa irresponsável. Nada seria menos estimável, neste mundo, que a democracia, se a democracia fosse isto. Esses escândalos representam o pior desserviço à dignidade do povo, e constituem o mais especioso argumento contra sua autoridade.[8]
Conclusão
O homem mais honesto e mais respeitado pode ser vítima da Justiça. Pode considerar-se um bom pai, um bom marido, um bom cidadão. Anda de cabeça levantada. Pensa que jamais terá de prestar contas aos magistrados do seu país. Que fatalidade o poderia fazer passar por um homem indigno, por um criminoso?” [9]
Essa fatalidade existe, tem um nome: erro judiciário” [10] ou injustiça.
Os erros judiciários deveriam servir pelo menos para que outros erros não fossem igualmente e terrivelmente cometidos. Mas, lamentavelmente, os erros judiciários continuam sendo perpetrados por aqueles que deveriam fazer de tudo, definitivamente de tudo, para evitá-los.
A literatura jurídica está repleta de casos de erros judiciários. Alguns se tornam célebres, viram livros, filmes etc., outros se perdem nos escaninhos das injustiças forenses.
Vários são os fatores que colaboram para o erro judiciário, sem prejuízo de outros, elenca-se aqui dez motivos ou fatores que contribuem para ocorrência do erro judiciário:
1) acusações ineptas e levianas;
2) juízes autoritários e despóticos;
3) admissibilidade de provas ilícitas e de duvidosa autenticidade;
4) cerceamento da defesa;
5) ausência e insuficiência da defesa técnica;
6) desprezo ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa;
7) assalto a presunção de inocência;
8) inobservância da separação do juiz e das partes;
9) influência da mídia e,
10) desrespeito a dignidade da pessoa humana como postulado do Estado democrático de direito.
Fato que não pode ser desprezado e que, também, contribui sobremaneira para ocorrência de erros judiciários é o tratamento dado a determinados acusados como se fossem eles: “inimigo”, “não pessoa” ou “não cidadão”.
Ao inimigo é negada a condição de pessoa. A ele (inimigo) é negado os direitos e as garantias fundamentais. Assim, o conceito de inimigo jamais se compatibiliza com o Estado de direito. O conceito de inimigo é próprio de um Estado de exceção ou de uma guerra.
O capitão Dreyfus por inúmeras razões foi escolhido “inimigo” e a ele, bem como a sua defesa, foi negado os direitos e as garantias fundamentais que levaram a ocorrência de um dos maiores erros judiciários da história. Que o Caso Dreyfus sirva de exemplo para justiça brasileira.
Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal.

[1] Eu acusoO processo do capitão Dreyfus. Émile Zola, Rui Barbosa (organização e tradução, Ricardo Lísias. São Paulo: Hedra: 2008, Bibliografia).
[2] O tal bordereau, teria dado origem a todo caso Dreyfus. O citado bordereau (documento) continha informações confidenciais sobre a segurança francesa, encontrado em poder dos alemães e atribuído a Dreyfus. Segundo Ricardo Lísias a defesa de Dreyfus não teve acesso ao referido documento. Eu acusoO processo do capitão Dreyfus. Émile Zola, Rui Barbosa (organização e tradução, Ricardo Lísias. São Paulo: Hedra: 2008, Bibliografia).
[3] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[4] Eu acusoO processo do capitão Dreyfus. Émile Zola, Rui Barbosa, op. cit.
[5] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[6] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[7] Eu acusoO processo do capitão Dreyfus. Émile Zola, Rui Barbosa, op. cit.
[8] Eu acusoO processo do capitão Dreyfus. Émile Zola, Rui Barbosa, op. cit.
[9] FLORIOT, René. Erros judiciários. Trad. Orlando Neves. Porto: Livraria Civilização, 1970.
[10] Idem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário