terça-feira, 20 de junho de 2017

O cocô do cavalo do bandido

Estão desde sempre atrás de retirar Lula da maior aprovação popular de todos os tempos, mas continuam sem uma diminuta prova sequer contra ele

     José Carlos Peliano*

Nas cartas de Pero Vaz de Caminha sobre suas impressões das “recém descobertas” terras de além-mar, mais tarde chamadas Brasil, uma das referências mais marcantes foi a de que naquelas paragens “tudo em se plantando dá”. Terra fértil, generosa, abundante, virgem e desfrutada somente por autóctones, índios, saudáveis, belos e dóceis por natureza. Mas que beleza!

A notícia era tão oportuna e prazerosa que o então reino português para lá se mudou de caravelas, malas, bagagens e povoadores, dizem, arrebanhados a maioria de condenados, pobres, miseráveis e despossuídos. Só que eles vieram acompanhados com dúzias completas de aristocratas, comerciantes, militares e banqueiros, reproduzindo nas novas terras a mesma estrutura social da matriz. Desigual, iníqua e injusta.
O resto já é conhecido das salas de aulas de nossas escolas desde crianças e adolescentes. Dividiram o território em áreas, as capitanias, que acabaram hereditárias para preservar os poderes das famílias e dos negócios. Grande negócio a descoberta das novas terras. Compadrio, poder, favores, benesses e heranças perpetuados. E corrupção de entremeio para azeitar as diferenças lucrativas cada vez mais gritantes, país afora.

Fecha o pano desse primeiro ato. Em viagem à América do Sul passa pelo Brasil o grande cientista Charles Darwin no século XIX pesquisando as variedades de animais e demais seres vivos. Consta que nos seus manuscritos deixou para a posteridade comentários sobre as terras de além-mar, ocupada pela trupe portuguesa, descendentes e apaniguados. Em seu diário de bordo lê-se que ele deixava o Brasil “graças a Deus”, país fortemente escravocrata onde as pessoas toleravam e praticavam violência contra os negros, fossem homens, mulheres e crianças, por quaisquer motivos e circunstâncias.

Darwin viveu em Recife e no Rio de Janeiro e presenciou cenas aviltantes de punição aos negros por atitudes e ações consideradas impróprias e indignas por seus “senhores”, mesmo as que fossem sem a menor importância. Um povo com comportamentos marcadamente agressivos, injustos e desumanos.

Fecha o pano do segundo ato. Um incidente diplomático, envolvendo as chancelarias dos dois países, ocorrido nos anos sessenta da década de noventa teria levado o General Charles De Gaulle, então presidente da França, a expressar a afirmação categórica, ou a ele atribuída, de que o Brasil não era um “país sério”. Verdade ou não, o fato é que a expressão ficou marcada na história da diplomacia brasileira como uma mancha indelével sobre a honestidade e confiabilidade dos representantes do país, em especial nas relações internacionais.

Fecha o pano do terceiro ato e eis que surge o período da ditadura militar a partir de 1964. Trágicos anos que não só degradaram a sociedade com chagas sangrentas de perseguições, prisões, torturas e mortes, mas também de violências psicológicas, desaparecimentos e banimentos de brasileiros. Em nome da defesa da democracia, da família, propriedade e das instituições conseguiram ferir a honra, os direitos e o futuro da nação. A anistia capenga anos após não curou a dor e o sofrimento de famílias, parentes e amigos dos perseguidos, presos e executados.

Haveria certamente outros atos e panos a descerrar sobre a longa e tortuosa novela da nação brasileira. E conseguiriam dar uma ideia mais acurada do espelho cultural, social e político que reflete diariamente a sociedade tupiniquim. Deixando de lado e para trás ou mal aparecendo a maioria da população, longe, escondida e excluída das imagens refletidas. Na frente e tomando a cena somente os habitantes da Casa Grande, a senzala no lugar que sempre lhe coube, o esquecimento, a negação, as migalhas.

É necessário recuperar, no entanto, o ato mais recente, de longo desdobramento e em cujo palco se desenrola uma peça grotesca, deprimente, estapafúrdia. Do mensalão à lava jato, passando pelo impeachment da primeira presidente eleita do país, mais uma colossal comédia de erros, omissões e parcialidades que marca a tomada do poder político pelas instâncias da justiça.

No chamado mensalão condenaram vários nomes do Partido dos Trabalhadores apenas por suposições lógicas, permitidas pela aplicação errônea e manipulada da Teoria do Domínio do Fato. O objetivo pareceu claro a muitos analistas: condenar alguns membros mais importantes da agremiação a fim de coloca-la no ostracismo da política brasileira. Seus demais representantes mal puderam ir contra os desmandos jurídicos uma vez que o STF, o julgador do processo, estava nas mãos de membros de uma oligarquia de poder e mando conservadora.

A lava jato anos depois continuou na trilha de defenestrar o partido mais votado do País do cenário político nacional. Aos poucos vai se confirmando as punições de uma nota só, não de provas concretas, documentais, mas apenas de convicções, suposições e cismas. Estão desde sempre atrás de retirar Lula da maior aprovação popular de todos os tempos mas continuam sem uma diminuta prova sequer contra ele, apesar de terem ao lado toda a Polícia Federal, os procuradores reunidos em Curitiba, a Procuradoria Geral da República, etc., etc., etc.

Em meio à lava jato dá-se a pantomina do impeachment. Hoje provado pelo articulador-mor, o dito presidente de plantão, de que a razão do processo foi o fato de a presidente eleita não ter concordado em ceder à chantagem de Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, em livra-lo do Conselho de Ética daquela Casa.

O país vive talvez um de seus períodos mais críticos de sua história. Uma presidência da República surrupiada; um Congresso sem representatividade de fato, ou de, no mínimo, 300 picaretas, como disse Lula; de um STF pouco supremo; de um TSE polêmico e controverso; de uma operação lava jato de uma pista só – correndo mais atrás dos membros do PT, e de uma PGR de ação demorada e tardia.

Num país minimamente sério essa situação toda já teria sido resolvida de uma forma ou de outra. Não ficaria assim no deserto sem frente, fundo e lados. E os eleitores, o povo? Como ficam?

Enquanto a Casa Grande se engalfinha em diatribes e briguinhas de presunção, retórica, vaidade e poder, prejudicando todo o país, desde a economia até a sociedade, o estado e a política, a senzala, nós o povo, ficamos à mercê das invenções, das meias verdades, dos interesses espúrios dos governantes e seus carregadores de malas sofrendo as consequências.

Recessão, desemprego, desmantelamento dos direitos trabalhistas e sociais, destruição da previdência social, desfiguração da educação nacional, apagão do SUS, ameaça aos direitos das minorias (índios, mulheres, negros, homossexuais), venda do país às multinacionais, falta de alternativas promissoras de futuro, entre tantas outras mazelas de triste memória. O poder foi tomado de forma ilegítima, trapaça hoje reconhecida pelo procurador geral da República (por que não disse isso antes???), sem plano, sem nada, apenas favorecer aos amigos e membros do maior engodo político nacional de todos os tempos.

Desce o pano. E ele não sobe mais porque não há o que mostrar de novo, de esperança, apenas confusão, depressão, esquizofrenia, desmandos, corrupção em todos os níveis, derrota. Mais uma vez, nós o povo, a senzala, somos desconsiderados, aviltados, surrupiados, maltratados, pisoteados, em nome do enriquecimento dos barões do roubo e da apropriação da riqueza pública. Tratam os eleitores, o povo soberano que os elegeu e confirmou a legitimidade das instituições, como o “cocô do cavalo do bandido”. Nos veem como números de votos, nada mais, de resto nos pisam e achacam com todo esse teatro de horrores que vemos dia a dia.

Se nossas instituições não estão correspondendo, criemos as nossas. Associações, grêmios, sindicatos, organizações sociais, de que jeito for, e vamos à luta. Tipo democracia direta, defendamos nossos direitos nas ruas, nas escolas, nas praças públicas, nas fábricas, nas repartições públicas, nas rodoviárias, nos aeroportos, nas estradas, seja lá onde for. Mas temos todo o direito de lutar por uma vida melhor e melhor representada política, jurídica e publicamente em todas as suas instituições. Se não fizermos isso, nossa inoperância, vacilo e medo começarão a feder!!!

* José Carlos Peliano é economista, poeta e escritor

Créditos da foto: .

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