GUSTAVO CONDE
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Há um novo fenômeno em curso no Brasil: a corrupção foi fetichizada e devidamente transformada em produto. A Netflix acaba de nos mostrar isso, com seu 'estande' sobre a corrupção - bancada por quem? - no aeroporto de Brasília e, evidentemente, com a série de José Padilha.
Ocorre que não é só uma corrupção conceitual, generalizante, estrutural. É a "corrupção do PT" e da esquerda. Ela foi "notícia" durante 10 anos seguidos numa 'campanha de pré-estreia' sem precedentes no mercado da indústria cultural brasileira.
A "corrupção do PT" continua sendo um produto de primeira linha para o mercado da notícia e do showbiz, porque ela continua, no fundo, sendo inusitada. A direita roubar é das mais singelas certezas da humanidade, desde Homero. Já, a esquerda roubar - embora casos existam uma vez que humanos são humanos - preserva ainda sua cifra exótica.
É por isso que é um baita produto. Sempre foi. A esquerda que lutou contra a ditadura militar, que sofreu tortura, prisões, estupros, desaparecimentos, que correu riscos imensos, que pôs a própria vida para defender o semelhante, traduz-se em um sentimento de humanidade muito forte e muito poderoso. Esse sentimento precisa ser diuturnamente combatido pelas instâncias de poder.
A ausência de sentido que mata
Quem não fez ou faz parte dessa 'saga humana' de lutar pela preservação da sociedade e da soberania, acaba por sofrer as mais dolorosas autoflagelações psíquicas de que se possa ter notícia. A frustração lhes toma a alma e se materializa em embotamentos cognitivos de toda a sorte.
Ter pertencido sempre ao sistema, ao "mecanismo", e portar essa condição de pertença no inconsciente profundo, faz da vida de muitos adesistas profissionais um inferno na terra. Uma vida sem sentido é a pior das maldições para um espécime humano. Nós somos predadores de sentido, precisamos dele para sobreviver.
É essa ausência de sentido que vem promovendo uma série imensa de execuções, massacres e genocídios. Quando o homem não consegue compreender o que o cerca, ele tende a querer "eliminar" esse espectro de vazio absoluto.
São os haters, os assassinos em série, os suicidas que furtam um veículo e o jogam na multidão, os atiradores de escola, os "kamikazes" do século 21 que tomam as cabines dos aviões e os fazem chocar com a colina mais próxima.
O que eles buscam? Buscam eliminar o outro, buscam algum sentido trágico post mortem, já que não o conseguiram em vida.
Uma certa civilização baseada em direitos civis e humanos passou a negar a existência a esses indivíduos, egoístas convictos e profundamente solitários. Não foi dado a eles o direito de serem ouvidos, mesmo porque eles não têm nada a dizer.
Trata-se do segmento que aposta na violência para se fazer significar de alguma forma. A eles só resta o discurso da violência e, quando não possível de ser verbalizado devido às óbvias limitações orais e sinápticas, resta-lhes a prática explícita e direcionada sempre ao mesmo alvo: o ser humano.
A violência como enunciado
Isso explica o ataque às caravanas de Lula. Os atropelamentos em Berlim, Nice, Copacabana. As execuções no Rio de Janeiro (já são 25 após Marielle), os massacres em colégios nos EUA, os genocídios indígenas no norte do Brasil, as rebeliões assistidas e "programadas" no nosso sistema carcerário.
O que se busca nesse extermínio generalizado não é o mero favorecimento econômico, como poderia parecer à primeira vista no que diz respeito aos genocídios indígenas (proprietários de terras querem mais terras, afinal). O que se busca é a eliminação do humano, do conceito 'humano', da humanidade, propriamente.
O mundo, goste-se ou não, fez uma inflexão no século 21. De certa maneira, foram consolidados os valores humanistas presentes nas cartas da ONU e da UNESCO. Ficou difícil, por assim dizer, não estar do lado da "humanidade". Legiões de pessoas mal conectadas com esse valores - os tradicionais conservadores - foram arrastadas para um limbo civilizatório que lhes nega todo e qualquer protagonismo.
Daí o recrudescimento do fascismo, a ascensão de Trump, o fortalecimento da direita europeia, as séries de José Padilha, os manifestoches e as intervenções militares. Tudo isso faz parte de uma resposta global ao humanismo das esquerdas que vinha protagonizando e organizando as políticas públicas no mundo todo, de posse das bandeiras da educação, da inclusão, do multiculturalismo e da reparação.
O papel do Brasil
O momento global é crítico e o Brasil talvez seja o capítulo mais importante deste cenário. Por isso, a indicação de Lula ao prêmio Nobel da Paz tem um significado que transcende a realidade doméstica e mesmo a conjuntura política global. Trata-se de uma indicação que pode demarcar essa inflexão tenebrosa e perigosa que se apoderou do cenário mundial.
Lula Nobel da Paz seria uma resposta contundente aos diversos recrudescimentos de violência simbólica e concreta que grassam mundo afora. A razão disso tem a ver, evidentemente, com a biografia de Lula e com o fato de ela provocar – a despeito da admiração – tanto ódio nas pessoas que vivem em estado permanente de insegurança ideológica, à mercê das autocomparações subjetivas intermináveis.
Lula faz sentido e isso ofende muita gente. Mas não só. Lula é marrento e nunca abriu mão do sentido da democracia. Talvez, ele seja a pessoa que mais encarne a democracia no mundo. Ele preza o desejo popular, ele respeita o voto, ele respeita o adversário político, ele se nega a aplicar golpes – o que seria para ele a coisa mais tranquila do mundo, uma vez que tem contato direto com parcela majoritária do povo e de todos os movimentos sociais.
Ele é o ser humano mais votado da história, com seus 280 milhões de votos conquistados com muita competência e humildade. Talvez, seja a hora de o mundo compreender a importância do significado de Lula para toda a civilização, da África ao Oriente Médio, dos Bálcãs à Russia, da China à Nova Zelândia.
Diante deste cenário conflagrado, pergunta-se: o que sobrou para a direta conservadora brasileira, arauto do fascismo recrudescente global? Só a corrupção. Ou melhor: não só a corrupção, mas a corrupção em forma de produto mal acabado em séries de serviço stream.
É muito pouco e é muito degradante. Para dizer a verdade, é humilhante. A hora é da esquerda novamente. É o momento de a esquerda crescer e dar uma resposta contundente a tudo isso. Todas as atenções voltaram às esquerdas que têm, novamente, a prerrogativa de apontar o caminho a se seguir. Não nos acovardemos, mesmo porque, esse é um atributo que não nos pertence.
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