terça-feira, 2 de abril de 2019

O antissemitismo oculto do bolsonarismo (por Rafael Kruter Flores)


“A aproximação de Bolsonaro não é com os judeus e nem com o judaísmo, e sim com aqueles que se encontram no seu espectro político-ideológico: a extrema direita”. ( Foto: Clauber Cleber Caetano/PR)

Rafael Kruter Flores

A visita de Jair Bolsonaro ao primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu é mais um capítulo, talvez o mais importante até aqui, de uma aparente amizade de Bolsonaro com a comunidade judaica e o judaísmo. No entanto, a aproximação de Bolsonaro com alguns líderes de organizações judaicas no Brasil e da autoridade máxima do Estado de Israel deixa revelar o antissemitismo oculto do bolsonarismo.

Judaísmo, judeidade, questão judaica e antissemitismo não são termos facilmente definíveis, por serem fenômenos milenares. Meu objetivo aqui não é entrar a fundo nesse terreno, mas será preciso delinear um mínimo conceitual para ir adiante.

Por judaísmo pode-se entender o conjunto das tradições culturais e religiosas do povo judeu. Na construção histórica do judaísmo encontram-se elementos fundamentais do humanismo: a passagem do concreto para o espiritual (lei, cultura, arte, simbolismos etc.). Se é verdade que judaísmo se refere à tradição cultural e religiosa – já que ambas se confundem historicamente – também é verdade que ocupa um lugar importante nessa história o judaísmo secularizado, que não definido por uma visão religiosa de mundo. As permanentes aberturas na definição do ser judeu encontram em outro conceito explicação mais adequada, o conceito de judeidade, às vezes referido por judaicidade.

Judeidade/judaicidade se refere ao “modo como cada sujeito vive o seu judaísmo, a sua própria condição de ser judeu é algo a ser interminavelmente definido e sempre construído, num processo sem fim, jamais concluído, independentemente do fato da religião judaica contar ou não para o sujeito” (Bernardo Fuks, 2010). Ainda que tal conceito seja da ordem do indivíduo, é possível transpor sua lógica para o coletivo, para o povo e suas indefinições. Uma das formulações para judeidade/judaicidade foi feita por Hannan Arendt, como um termo que tenta reunir uma multiplicidade de modos sociais de identificação sem ser capaz de conciliá-los. “Não há uma única definição, nem pode haver” (Butler, 2017).

Ainda sobre o conceito de judeidade/judaicidade, Edward Said chama a atenção para a proposição de Freud de que Moises – o mito fundador do judaísmo – era egípcio, o que questiona uma definição de ser judeu como resultado de uma narrativa linear e fechada. Segundo ele, “Freud mobilizou o passado não-europeu para minar qualquer tentativa de doutrinária de assentar a identidade judaica em uma fundação sólida, seja ela religiosa, seja secular” (Said, 2003). Curiosamente, o conceito de judeidade/judaicidade encontra o de antissemitismo no momento em que ambos se referem ao ser do judeu como uma definição atávica.

Roudinesco é cautelosa ao diferenciar antijudaísmo de antissemitismo. Enquanto o primeiro se refere às perseguições aos judeus praticadas na Europa medieval, principalmente por motivos religiosos; o segundo se refere à uma ideologia racial e a um movimento político: a palavra antissemitismo é inventada em 1879. O antissemitismo europeu do século XIX não antagoniza o judeu apenas por suas práticas religiosas (antijudaísmo religioso) ou mesmo de emancipação política (antijudaísmo iluminista); e sim pelo simples fato do seu ser – judeu passa a ser uma raça.

Feitas essas ressalvas, Roudinesco entende que em nossos dias, “o antissemitismo acabou integrando, na sua própria definição, os principais significantes do ódio ao judeu”. Ou seja, a palavra é um termo genérico que “permite designar todas as formas de discurso antijudeu” (Roudinesco, 2009). É neste sentido que Hannah Arendt entende que o antissemitismo é a matriz de todo racismo: remontando ao Egito antigo, é a forma mais primitiva de perseguição, preconceito e subjugação de que se tem notícia.

O antissemitismo está, portanto, intimamente ligado à questão judaica, que é o antigo dilema que perpassa esse povo, dilema que oscila entre polos opostos: segregação e assimilação; exílio e pertencimento; dispersão e unidade. Trata-se de um dilema histórico que é constitutivo do povo judeu, do judaísmo e da judeidade/judaicidade. O mais importante a ressaltar é que o complicado e impossível dilema contém em si um devir humanista: a tolerância. O convívio com a diferença também é constitutivo deste povo. A história do povo judeu é uma história de formas de convívio, respostas históricas que vão sendo dadas ao dilema da questão judaica.

O sionismo propôs uma resposta com a criação de um Estado-nação. De fato, foi uma resposta, mas toda resposta a esta questão tem sido temporária, paliativa e transitória. Ao normalizar o judaísmo e a identidade judaica em novas bases, o sionismo propôs uma nova estrutura positiva da história judaica que promove uma definição fechada e situa a judeidade/judaicidade em um local específico, em contraste com o terreno do universal da mesma, tal como se encontra não apenas em Freud, mas em uma série de intelectuais judeus que se dedicaram a elaborar universalidade do ser judeu que ao mesmo tempo é não-judeu (Deutscher, 1970).

Pois bem, o que isso tudo tem a ver com o bolsonarismo?

Entendendo o bolsonarismo como uma ideologia, ou seja, como elaboração que se materializa nas práticas que dão respostas em um conflito social, é possível identificar que “os traços que sedimentam e caracterizam, grosso modo, esta ideologia, são majoritariamente negativos (anticomunismo, antihumanismo, antifeminismo)” (Kayser, 2019). No Brasil, há aproximadamente um ano, as manifestações machistas, racistas, homofóbicas, misóginas e anti-esquerdistas promovidas por adeptos do bolsonarismo e do próprio ‘líder’ ganharam proporções que ninguém imaginaria nem mesmo meses antes de ocorrerem. Não será preciso aqui repetir a lista interminável de atos desta natureza (estão documentados), e que encontra no brutal assassinato de Marielle Franco e de Anderson Gomes seu ponto culminante. Marielle era mulher, negra, homossexual e de esquerda. A questão que se levanta aqui é: se o bolsonarismo não persegue judeus, como entender tal ideologia como sendo antissemita, diante das aproximações de Bolsonaro à comunidade judaica e ao primeiro ministro do Estado judeu?

Em primeiro lugar, e em um plano mais superficial, é preciso considerar os vários casos de ataques antissemitas a judeus que contestam o ‘líder’ nas redes sociais, o que indica que se for necessário mobilizar o antissemitismo para perseguir opositores, isto será feito. No entanto, o antissemitismo não é um gatilho que se aperta, mas um sentimento de ódio profundo que quando se manifesta se mostra genuíno e latente.

Em segundo lugar, e descendo na análise, é preciso considerar que a aproximação de Bolsonaro, em específico, não é com os judeus e nem com o judaísmo, e sim com aqueles que se encontram no seu espectro político-ideológico: a extrema direita. Ou seja, a aproximação é com uma parcela da comunidade judaica e com o governo de Israel. Ao fazê-lo, realiza um duplo movimento, ignora a história e a tradição do judaísmo e sublinha aspectos do Estado de Israel que até hoje não apresentaram uma solução nem para a questão judaica, nem para a questão árabe-palestina, e muito menos para a convivência tolerante entre povos e países do Oriente Médio e dos judeus da diáspora: o militarismo e uma pretensa superioridade racial e ideológica.

Ou seja, no complicado e histórico dilema da questão judaica, o bolsonarismo pratica uma ideologia antijudaica pois segregadora e persecutória; e ignora que é parte da questão judaica um devir humanista. O desprezo pela herança humanista do judaísmo e o movimento recorrente de praticar a segregação social se utilizando de símbolos judaicos revelam o antissemitismo oculto do bolsonarismo que, assim, reduz o judeu a um ser segregado.

Isso não costuma acabar bem.

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