
Em um cenário dominado por uma mentalidade autoritária, a defesa criminal nada mais é que um inconveniente necessário.
Dentre os grandes nomes da música brasileira, Raul Seixas se destaca pelo talento e pela capacidade de externar o seu inconformismo com a realidade dada por meio de uma rebeldia nem sempre bem compreendida.
Com arrimo em um dos seus personagens, o Carimbador Maluco, se tenciona realizar uma reflexão sobre a atuação do defensor criminal, sendo levada em consideração as expectativas de quem promove a injustiça e o que impõe a ordem constitucional.
De acordo com a letra da música do Raulzito, para que qualquer viagem prosseguisse, deveria o burocrata atuar e o fazia mediante o uso do seu carimbo:
“Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum!!
Plunct Plact Zum
Não vai a lugar nenhum!!
Tem que ser selado, registrado, carimbado
Avaliado, rotulado se quiser voar!
Se quiser voar
Pra Lua: a taxa é alta
Pro Sol: identidade
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso meu carimbo dando o sim.”
Mas, afinal, qual é a pertinência deste personagem com a defesa criminal? Ora, o Texto Constitucional indica que a ampla defesa é assegurada a todos litigantes, ou seja, para que um processo penal se desenvolva legitimamente é necessária a intervenção defensiva, sob pena de configuração de atuação estatal ilegal.
"Em um cenário dominado por uma mentalidade autoritária e que se mostra responsável pela sabotagem do projeto constitucional, a defesa criminal nada mais é que um inconveniente necessário."
Uma “formalidade” indispensável para a obtenção de uma condenação já arquitetada antes mesmo da formação do contraditório e que, assim, resguardará os ditos “cidadãos de bem” do convívio de quem é indigno.
O carimbo com nome e outros dados é, portanto, a imprescindível condição para o prosseguimento da viagem rumo a um dos infernos prisionais. É o “sim” para o foguete viajar pelo universo da dor, do descaso e da falta de humanidade, sendo esta aeronave abastecida pelo incontrolável desejo de punir.
No ambiente do grande encarceramento, o melhor carimbador seria aquele que causa os menores inconvenientes, não questiona, não apresenta pedidos liberatórios, não recorre. Se possível, nada fala além de um bom dia/boa tarde e pede permissão para se retirar da sala de audiência.
Por viver inserido no sistema de injustiça criminal, o defensor tem abalada a sua saúde mental. Falando em um linguajar mais direto: é um “maluco” ou porque, por não suportar essa realidade, sofre cotidianamente diante de tantos absurdos ou então porque, ao naturalizar a surrealidade, perdeu a sua condição humana. Aliás, por mais que esse embrutecimento atinja o defensor com mais vigor, não é exclusivo dele, tal como apontado por Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli:
“Através dos condicionamentos produzidos pela criminalização, a fossilização e a burocratização, exterioriza-se que o sistema penal é altamente nocivo para a saúde física e psíquica daqueles que participam de seus segmentos e daqueles que sofrem os seus efeitos.”
O carimbador maluco do processo penal é, assim, um burocrata que também é responsável pelo sofrimento do cárcere. Daí, se verifica a necessidade de uma outra forma de agir. É claro que o novo pode trazer consigo o medo, porém, como já alertado por Dom Pedro Casaldáliga, o problema é ter medo do medo.
É preciso ocupar espaços até então relegados pela defesa, a começar por uma atuação já na fase do inquérito policial. Diante da incompreensão da previsão constitucional, que decorre do estado de inocência, de que a liberdade é a regra, tornar cada vez mais dificultoso o ato de prender alguém.
Recorrer e impugnar sempre e de todas as questões possíveis. Adotar uma postura proativa na instrução criminal, o que não significa assunção de uma carga probatória, mas sim permitir que exista espaço para o estabelecimento da dúvida razoável. Constranger as agências estatais por se limitarem aos métodos investigativos arcaicos mesmo diante de tanto avanço tecnológico.
Muito embora se admire a obra de Raul Seixas, o defensor criminal não há de ser o burocrata da estrada condenatória. Não pode jamais ser o carimbador maluco. Caso queira se inspirar no saudoso roqueiro baiano, que no curso do processo penal sempre esbraveje que o réu não deverá ir a lugar nenhum de dor ou sofrimento.
Em tempo: dedico este texto aos bravos colegas Defensores Públicos do estado do Mato Grosso que muito me ensinaram no recente evento realizado em Cuiabá.
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