Claro: os jornais e TVs tardarão a admitir. Mas a impotência e solidão do presidente, a contar os dias que lhe restam, expressa também a crise de um projeto. Logo chegará a vez do Brasil – e o FMI, agora mais desacreditado, pouco poderá fazer
por Luis Bruschtein
Por Luis Bruschtein, no Página 12 |Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel
Para o presidente argentino Mauricio Macri, o resultado das eleições primarias “abertas, simultâneas e obrigatórias” (PASO) explica a disparada do dólar e o vazio de poder. Não é novidade que os processos se deem ao contrário do modo como o presidente os conta. Porque as PASO evitaram a explosão social para a qual o país inapelavelmente se dirigia, impulsionado pela crise inflacionária e pelo vazio de poder produzido pelo próprio governo. À diferença de outras situações drásticas, desta vez surgiu nas PASO a confirmação de uma alternativa política, o que gerou a esperança de uma saída pacífica e aliviou a tensão.
O próprio candidato opositor Alberto Fernández sugeriu às organizações sociais que o melhor era não sair às ruas até dezembro, o que, diante do descalabro acelerado que está em marcha, – e ainda que o peçam tanto o candidato quanto os dirigentes desses movimentos – não é muito mais que a expressão de um desejo. No cenário que se conforma, os mais atingidos, lançados entre a espada e a parede, reagem de maneira espontânea ou escolhem a via mais rápida para achar comida.
Na sugestão de Alberto Fernández fica subentendida a desconfiança que o macrismo agora representa, pelo seu desprezo às regras do jogo e sua absoluta falta de escrúpulo republicano, em que pesem as contínuas declarações públicas que faz no sentido contrário. O temor difuso é que uma mobilização popular neste momento se converta na desculpa do governo para desatar uma feroz repressão, como tem sido seu hábito, gerando uma escalada de violência. Esse quadro serviria então para justificar uma manobra de adiamento de uma eleição que a maioria do governo já dá por perdida.
Uma especulação como essa fundamenta-se nos precedentes concretos que dizem respeito ao atual governo, que não hesitou em difamar e perseguir qualquer oposição mais decidida, digladiou-se com suas lideranças e com a imprensa mais crítica, ao mesmo tempo em que palavreava coisas como “diálogo”, “pluralismo” e “tolerância”.
No entanto, esse raciocínio não conseguiria explicar o que Macri faria se conseguisse postergar a eleição. Seu governo não tem mais recursos, não tem mais credibilidade ou respaldo. Os operadores econômicos e as centrais sindicais não o reconhecem como interlocutor e até o Fundo Monetário Internacional prefere conversar com Fernández.
A combinação perfeita de inflação e fuga de capitais foi posta em marcha há quatro anos, na mesma semana em que Macri assumiu, quando as Letras do Banco Central (Lebacs) [títulos de curto prazo] subiram dez pontos e se levantaram as restrições à compra de dólares [que a antecessora Cristina Kirchner havia instaurado em 2011]. Com a supressão imediata das restrições, com a dolarização das tarifas dos serviços, da gasolina e do transporte, o governo nunca mais pôde frear nem a inflação – que ascendeu ao dobro daquela que havia recebido –, nem especulação e a fuga de capitais.
Em meados do ano passado, o governo do Cambiemos [a frente eleitoral de Mauricio Macri] já tinha acabado e teria explodido nesse momento se não tivesse recebido a ajuda do FMI. Trata-se, assim, de uma máquina de inflação e fuga de capitais que se alimenta da dívida como combustível. O que está acontecendo agora deveria ter acontecido antes das PASO. O que elas acabaram carreando foi um alento de esperança e alívio diante da confusão e inépcia de um governo extrapolado pela crise.
Perdido na escala do macro, o governo não prestou a menor atenção aos efeitos da crise nos setores mais vulneráveis. As manifestações de alguns dos membros da bancada governista no debate que aprovou o Estado de Emergência Alimentar em 12 de setembro último confirmam seu grau de insensibilidade. “A fome é uma sensação que depende de quem a tenha” ― ouviu-se no recinto. Ou então que “os desempregados (que seriam os famintos) são apenas uma minoria na sociedade”. O secretario da Cultura, Pablo Avelluto, reclamou que falar de fome era fazer campanha eleitoral. E a inefável ministra de Segurança, Patricia Bullrich, deu sua contribuição: “quem tiver fome, que vá aos bandejões”.
Por fim, o Estado de Emergência Alimentar foi aprovado na Câmara, e nesta semana será discutido no Senado. Depois disso, será preciso regulamentá-lo, para então aplicar seus dispositivos. Trata-se de ampliar o apoio aos bandejões populares, à merenda escolar e a todos os demais programas relacionados à alimentação.
Não teria sido preciso a mobilização e a urgência no trâmite desse dispositivo, nem a ação do Legislativo, se o governo tivesse tomado, por conta própria, uma decisão tão obviamente indispensável. A prioridade é atenuar o drama humanitário, mas o que se promove, de quebra, é a estabilidade institucional. Fechado no seu classismo de garotos ricos, o governo sequer se dá conta de algo que poderia favorecê-lo.
As PASO não fizeram o dólar disparar, nem geraram vazio político. O que, sim, os produziu, tal como no conto, foi o efeito “o rei está nu”. Todo o castelo de propaganda e mentiras construído pela mídia e por jornalistas pró-governo – sobre o qual se assentava sua pretensa “superioridade moral” – desmoronou quando a crise acendeu a luz da realidade.
E isso teve um efeito de derrota moral e simbólica porque foi exatamente Cristina Kirchner, a mais difamada, insultada, perseguida e fustigada durante os quatro anos de governo macrista, a que desenhou o plano de voo maciçamente acolhido nas eleições. E por isso, ela terá um lugar destacado daqui para frente.
Tudo o que a mídia e os jornalistas disseram, tudo o que maquinaram os agentes do Judiciário foi, de repente, desprezado na cabine de votação. Sem essa fantasia, tudo o que restou para eles foi a imagem de uma turba de milionários medíocres que faziam grandes negócios enquanto o país era destruído.
No governo já reconhecem que estão de saída, resignados e contando os dias que faltam. Restam-lhes ainda alguns votos, mas já não têm mais hegemonia. Esses são votos silenciosos, envergonhados. As projeções os estimam em 35%, enquanto Alberto Fernández já passa dos 50%. Como ainda têm a obrigação de chegar a outubro, e depois se arrastar até dezembro, a estratégia de Cambiemos [a frente de Macri] tentará fazer com que a opositora Frente de Todos não alcance os 45%. Essa redução de diferença lhes permitiria passar para um segundo turno em que poderiam recolher mais alguns apoios.
Do outro lado, Alberto Fernández tentará passar dos 50 pontos, para gozar de um respaldo contundente que lhe permita vencer os primeiros meses e uma dura negociação com o FMI.
Os números ainda podem evoluir. Macri faz campanha sozinho. Na sexta-feira, ele tinha que inaugurar um trecho da estrada Pilar-Pergamino. Lá estava apenas Javier Martínez, o prefeito de Pergamino. Nicolás Ducoté, proeminente figura de Cambiemos na província [Estado] de Buenos Aires e prefeito de Pilar, ficou em cima do muro depois que circulou um vídeo em que alguns de seus correligionários mostravam como dividir a cédula de votação para poder voltar em Alberto Fernández.
A governadora, María Eugenia Vidal, tampouco apareceu. Preferiu se concentrar em Mar del Plata, onde seu candidato, Guillermo Montenegro, compete com Fernanda Raverta, da Frente de Todos [a frente opositora, liderada por Alberto Fernández]. Conforme seus colaboradores, a ideia de Vidal é, caso ganhe, converter Mar del Plata em um baluarte da Proposta Republicana (PRO) [o partido de Macri], de onde se poderia tentar reconstruir a força regional da frente Cambiemos.
Estamos vivendo possivelmente um momento de inversão da força do novo ciclo neoliberal da América do Sul. O opositor venezuelano Juan Guaidó, que Macri e os Estados Unidos reconheceram ilegalmente como presidente, apareceu em fotografias com traficantes colombianos. O jornal El Mercurio, do Chile, publicou uma matéria paga reivindicando o golpe de Pinochet, o que provocou una maré de manifestações de repúdio no país e em outros.
Em entrevista para o Página 12, Lula previu que as privatizações que Jair Bolsonaro, o piromaníaco da Amazônia, pretende realizar serão mais profundas que as de Carlos Menem na Argentina. “Vamos privatizar tudo, inclusive a Petrobrás” ― afirmou seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Mas o governo de Bolsonaro, que se incendiou junto com a Amazônia, já não goza da mesma anuência internacional.
O novo ciclo neoliberal na América do Sul cede a ritmo acelerado, e não somente com Macri na Argentina. O mesmo acontece com Lenin Moreno no Equador, enquanto Rafael Correa recupera espaço. Parece ser um ciclo curto. Mas a destruição que deixará inclui presos políticos, dívidas calamitosas, destruição de riquezas irrecuperáveis e um rescaldo ideológico retrógrado e autoritário. O dano foi grande e a reconstrução não será fácil.
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