domingo, 2 de fevereiro de 2020

A “mansidão” política da maioria dos brasileiros pobres

Rudá Ricci: "Não podemos afirmar que a população brasileira é estruturalmente mansa ou apática. Temos casos e casos na nossa história que revelam revoltas, rebeliões e protestos com multidões. Mas há certo traço de 'carnavalização da política'"



Um comportamento político que parece marcar a conjuntura brasileira neste momento (o Brasil, vale lembra, é uma caixinha de surpresas quase diária) é o que denominaria de “mansidão popular”, uma certa desconexão com o mundo fora do seu quadrado. Vou expor algo a respeito nesta manhã de domingo.

1) Há uma série de pesquisas recentes que indicam um hiperindividualismo e comunitarismo espraiado pelos centros urbanos de nosso país. Comunidades que valorizam a família, o círculo mais íntimo de amizades e instituições que as apoiam diretamente em momentos de sufoco, como igrejas e bombeiros;

2) No caso das expectativas em relação ao futuro, parece ocorrer uma crença cega na melhoria da vida, não como fruto de uma ação coletiva, mas por iniciativa e esforço pessoal. Esta é a conclusão de recentes pesquisas sobre confiança nas nossas instituições e a realizada nas favelas;

3) Não podemos afirmar que a população brasileira é estruturalmente mansa ou apática. Temos casos e casos na nossa história que revelam revoltas, rebeliões e protestos com multidões. Mas há certo traço de “carnavalização da política”, termos empregado por Boaventura Santos. Por carnavalização, Boaventura sugeria a projeção do que os brasileiros fazem durante o carnaval (que se avizinha): transgridem por alguns dias, mas sem romper com a ordem. Na verdade, é algo mais complexo. A ordem, nestes dias, parece “dilatada” e suas fronteiras se expandem. Uma espécie de acordo tácito em relação à moral vigente: os foliões sabem que naquele período é possível ir além e as instituições recuam na observação de algumas regras de comportamento. Uma espécie de “Noite de Crime” tupiniquim;

4) Se transpormos o que ocorre durante o carnaval para os recentes protestos de massa no Brasil, temos um paralelo não totalmente similar. De um lado, as manifestações nunca atingem o campo institucional. Os manifestantes ocupam as ruas para logo mais retornar às suas casas. De outro lado, uma repressão desmedida das PMs, esse órgão de repressão pouco eficaz no combate aos crimes, mas cada vez mais preparado para dispersar e intimidar mobilizações de cidadãos;

5) Suponho que a este cenário, se somem as frustrações de quem imaginou que seria realmente inserido pelo consumo e valorizado pelo que é (e compra) e, agora, percebe que retornou à vida de penúria. Ora, ninguém sofre sem perspectiva e continua com saúde mental. Assim, para viver na frustração é preciso criar uma utopia. E esta utopia tem que ter relação, ao menos algum vínculo narrativo, com a vida atual. Caso contrário, se torna um salto no escuro, um discurso messiânico desesperado. Mas, não é desespero que se vê nas periferias;

6) O que se vê nas periferias é um otimismo escrachado. Algo que perpassa o funk, o vestuário dos morros, o discurso positivo e acolhedor das igrejas evangélicas. Não se trata de desespero, mas algo parecido com orgulho e projeção deste orgulho. É daí que me parece que surge o individualismo exacerbado e a aparente passividade das massas no Brasil, neste momento. Primeiro, um orgulho dos iguais, dos excluídos, que se separa de tudo o que tem a ver com as promessas não realizadas dos poderosos;

7) Segundo, este orgulho ressentido gera grande rejeição das instituições e promessas dos representantes políticos de sempre. E um fechamento em núcleos familiares ou de agentes sociais que estão o tempo todo presentes na sua vida e se revelaram efetivamente solidários;

8) A presença é algo importantíssimo no trabalho pastoral e missionário. Tem lastro na parábola do Bom Pastor. O que faz da presença missionária um elemento da história religiosa ou espiritual do brasileiro.

Termino esta breve digressão sugerindo que essa aparente “mansidão” popular se baseia numa revolta surda, acanhada, não explosiva. Ela se movimenta nos pequenos espaços de convivência social e se alia aos próximos, aos que estão sempre presentes em sua vida.

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