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Teorias sobre a origem do ser humano sempre foram usadas para justificar projetos públicos marcados pela segregação e a desigualdade
Como 2 de fevereiro é dia de Yemanjá, devo falar do poder da criação.
Conta a mitologia Yorubá que, da união entre Obatalá (o céu) e Oduduá (a terra), nasceu essa deusa das águas. Num equilíbrio entre o masculino e o feminino, o papel de Yemanjá no processo de criação seria de parir os orixás, por isso ela é mãe da maioria deles. Também por ser a “mãe dos peixes”, ela mora no mar e define quando há calmaria e quando as águas se agitam. Yemanjá representa as mães e é também a dona das cabeças humanas, e é por isso que a ela pedimos o sossego e a calmaria no ritual do bori.
Bem, essa é uma breve passagem que trata do lugar de Yemanjá no mito de criação segundo a minha religião, o candomblé. Essa é uma metáfora que, sob a perspectiva das religiões de matriz africana, situa o lugar dessa grande mãe na origem do mundo. Nesse mito, refletimos sobre repartição do poder, equilíbrio de forças entre homens e mulheres na sua potência criadora e sobre a força feminina, tanto no seu poder de gerar a vida humana quanto de lutar para definir seu destino.
Repito, esse é um mito, um dos vários que explicam a “criação” e servem unicamente para explicar a origem do mundo sob uma determinada perspectiva religiosa.
Mas e o criacionismo? Por que essa mitologia cristã que explica a criação do mundo tem, cada vez mais, se deslocado do lugar de metáfora para ser uma ideologia norteadora de governos conservadores, orientando políticas públicas, sobretudo na área da educação?
Teorias como o criacionismo desde sempre foram utilizadas para justificar projetos políticos de organização da sociedade. Nos Estados Unidos do início do século 19, por exemplo, teorias criacionistas estavam de “mãos dadas” com as teses que defendiam a escravidão e a segregação racial.
O criacionismo é basicamente a ideia, baseada na Bíblia, de que a humanidade seria fruto de uma entidade sobrenatural, não-explicada cientificamente, mas que é independente e divina. Sustenta-se na crença de que descendemos do casal original, Adão e Eva.
Essa ideia da criação estava no centro de um complexo debate entre escravistas do sul dos Estados Unidos e abolicionistas da região norte após a independência do país, que aconteceu em 1776.
Mas qual seria a grande questão desse debate? Compartilho aqui uma análise desse assunto, sobre o qual pesquisei e que será tema do meu livro que, espero, será publicado em breve.
Após a independência dos Estados Unidos, abolicionistas confrontavam escravistas com uma questão moral religiosa e outra legal/constitucional.
Como escravistas subjugavam seres humanos, tal como eles próprios, descendentes de Adão e Eva, filhos de um só Deus? A outra questão estava na declaração da independência, que afirmava que todos eram criados iguais e, portanto, eram detentores de direitos. Isso fazia da escravidão algo que contrariava os princípios fundantes da nação, segundo os abolicionistas.
Assim, na primeira metade do século 19, sobretudo entre 1830 e 1850, uma corrente de pensamento se dedicou a explicar, cientificamente, as diferenças raciais, justificando assim a escravidão, a supremacia branca e as desigualdades raciais.
DIZER QUE AS COISAS, E SOBRETUDO AS DESIGUALDADES E HIERARQUIAS SOCIAIS, “SÃO ASSIM PORQUE DEUS QUIS” DESPOLITIZA DEBATES IMPORTANTES, ALÉM DE FORTALECER GOVERNOS E PROJETOS DE NAÇÃO AUTORITÁRIOS
Simplificando o pensamento “científico” escravista do sul estadunidense, a escravidão foi justificada da seguinte forma: a partir do casal original, as espécies humanas foram se espalhando pelo globo. Enquanto algumas áreas favoreceram a produção de sociedades bárbaras, outras produziram sociedades civilizadas. O clima, portanto, incidia sobre o comportamento desses povos, que eram todos humanos, mas que pertenciam a categorias desiguais. Assim, essas características “bárbaras” ou “civilizadas” eram imutáveis e eram fruto do clima, da natureza e de um processo de diferenciação que tinha explicação na providência divina. Thomas R. Dew, por exemplo, um professor universitário da Virginia, acreditava que negros tinham os hábitos e sentimentos de escravos, enquanto os brancos carregavam em si, naturalmente, o comportamento de senhores. As teses baseadas no antigo testamento foram amplamente utilizadas para justificar a escravidão. O historiador George Fredrickson, no livro “The black image in the white mind” (“A imagem negra na mente branca”, em tradução livre), nos mostra como o mito de Cam, que seria o filho amaldiçoado de Noé, era utilizado para explicar o eterno estágio de submissão e servidão a qual estariam submetidas as raças africanas, consideradas a última espécie humana em estágio evolutivo.
Até então, a tese de que a humanidade era fruto de uma única criação — e que, portanto, a despeito das diferenças físicas e intelectuais, todas as raças pertenciam a uma mesma espécie (monogenismo) — era mais popular entre os círculos científicos/escravistas/religiosos. Com o criacionismo, o monogenismo explicava, de forma simples e incompleta, as diferenças e hierarquias raciais que legitimavam a escravidão.
Algumas historiadoras da ciência, como Mia Bay, Nell Painter, Alexandra Diallo e Nancy Stepan, além de Luciana Brito (eu mesma), se dedicaram a pesquisar o que diziam as principais vozes dissonantes que questionavam as teses defensoras das hierarquias raciais: o movimento abolicionista negro estadunidense. Sendo esse movimento composto por pessoas negras, que não carregavam em si o critério primordial para serem reconhecidas como cientistas: ser um homem branco.
A ideia de origem única das espécies humanas ainda gerava desconforto e deixava um forte argumento para os abolicionistas: seria moralmente correto escravizar um ser da mesma espécie?
Foi na década de 1850 que um grupo de cientistas percebeu que havia um outro caminho para justificar a escravidão que não ferisse as escrituras bíblicas: o poligenismo.
A historiadora Maria Helena Machado, no livro “Rastros e raças de Louis Agassiz”, pesquisou o papel desse cientista na produção das teses poligenistas, que seriam reforçadas e se casariam muito bem com o criacionismo. Segundo a historiadora, Agassiz acreditava que existiam “zonas de criação”, que haviam produzido, em partes do mundo distintas, quase ao mesmo tempo, diferentes espécies. A raça branca, por exemplo, seria aquela mais avançada, única que descendia de Adão e Eva. Agassiz afirmava que os negros, por sua vez, haviam surgido de uma outra criação, que produziu uma raça inferior, oriunda das regiões tropicais.
Assim, associando teorias poligenistas (de múltiplas criações) com o criacionismo (surgimento humano fruto de criação divina), estava montado aquilo que Maria Helena chamou de “quebra-cabeças” do mistério da origem da vida.
Esses “mistérios”, provenientes da inexplicável vontade divina, produziram raças e diversos estágios de evolução. Segundo cientistas poligenistas, os caucasianos (brancos) compunham a raça mais avançada e que, por vontade da natureza, deveria liderar todos as outras raças.
Louis Agassiz era um biólogo suíço especialista na taxonomia dos peixes antes de emigrar para os Estados Unidos em 1846 e tornar-se uma referência no poligenismo e nas raças humanas. Embora suas teses não fossem um consenso, seu discurso caiu como uma luva tanto para os escravistas, que agora não poderiam mais ser acusados de estarem negando a criação divina, quanto para abolicionistas, que pregavam o fim da escravidão, mas que defendiam que negros e brancos deveriam viver de maneira segregada. Foi embarcando no acalorado debate sobre a origem da vida e das diferenças raciais, que Agassiz ficou famoso nos Estados Unidos, tornou-se professor de Harvard e ganhou grande reconhecimento nos círculos de cientistas, escravistas ou anti-escravistas da região norte.
Segundo o historiador da ciência Stephen Jay Gould, autor de um importante livro traduzido para o português como “A falsa medida do homem”, desenvolver uma teoria que explicasse a existência de diferentes raças humanas sem contrariar as teorias cristãs do criacionismo era algo muito importante para Agassiz, que era cristão e criacionista convicto. Por isso, teses poligenistas, por ele aprimoradas, atendiam a outra demanda muito importante para Agassiz, que era explicar por que pessoas brancas (caucasianas) deveriam liderar as sociedades de quaisquer países, enquanto indígenas e, sobretudo, os negros das Américas, deveriam ter suas capacidades físico-intelectuais limitadas, melhor aproveitadas pela condição de submissão à raça superior (branca), que, segundo ele, era a única que descendia de Adão. Engana-se quem pensa que tais teses tiveram intuitos unicamente científicos. Àquela altura, às vésperas da Guerra Civil americana, o poligenismo criacionista de Agassiz norteou políticas de segregação racial e controle social que visavam evitar um outro mal que contrariava as leis da natureza: a mistura racial, conhecida na época como “amalgamação”. Sendo duas raças distintas, no caso de negros e brancos, o dito mulato seria fruto de um ato contra as leis de Deus e da natureza. Na verdade, assim, elites políticas e intelectuais estadunidenses formulavam aqui uma das principais bases daquilo que hoje chamamos de “white supremacy” (“supremacia branca”), que é a pureza de sangue.
Para provar os males da mistura racial e seu efeito degenerativo, Louis Agassiz veio para o Brasil em 1865. A diversidade de povos africanos que vivia no Rio de Janeiro escravista e as populações indígenas oriundas da região norte do país foram objeto de análise de uma coleção fotográfica que tinha como objetivo oferecer um exemplo vivo da degeneração provocada pela mistura racial e, sobretudo, a inferioridade dos povos africanos. Aquelas pessoas identificadas por ele como “mulatas” eram exemplos para a sociedade estadunidense sobre os perigos da mistura racial e a degeneração física e intelectual que marcava os corpos dessas pessoas.
Agassiz e sua teoria criacionista/poligenista só caíram em descrédito quando confrontadas com a teoria da evolução de Charles Darwin, que acabou ofuscando o suíço. Mesmo assim, as teorias de Agassiz forneceram, como resultado mais nefasto, fundamentos para políticas como o apartheid, o segregacionismo e a supremacia branca.
Pois bem, podemos perceber que as teses e teorias não-científicas que atribuem muita coisa à vontade de uma inteligência sobrenatural e, quem sabe, divinamente inexplicável, têm forte intencionalidade quando orientam políticas públicas e instituições científicas. Ainda segundo Stephen J. Gould, que além do criacionismo também refutou a teoria do quoeficiente de inteligência (QI), nos chama atenção aos momentos históricos quando o determinismo biológico e teorias sobrenaturais ganham força, uma vez que elas são fortes ferramentas para justificar desigualdades sociais e servem para nortear políticas de grande impacto social. Ou seja, dizer que as coisas, e sobretudo as desigualdades e hierarquias sociais, “são assim porque Deus quis” despolitiza debates importantes, além de fortalecer governos e projetos de nação autoritários.
Organizar a sociedade e explicar a existência de diferentes lugares de gênero, raciais e de orientação sexual, e atribuir determinada característica física/moral a determinada região (xenofobia) são projetos que devem ser vistos com desconfiança. A despeito de serem argumentos antigos, a vontade sobrenatural e argumentos políticos baseados na providência vêm cada vez mais ganhando força na sociedade, ainda que sob um verniz de liberdade de expressão, crença religiosa, ou o que seja.
Nos Estados Unidos, por exemplo, de onde importamos tudo (inclusive o que há de pior), teses como a do criacionismo têm ganhado mais força desde o governo Trump, que indicou um criacionista para liderar uma força-tarefa que visava melhorar a qualidade da educação do país. No Brasil, o novo presidente da Capes defende o que chama de “design inteligente”, uma nova roupagem ao criacionismo.
Portanto, fiquemos atentas e atentos às teses, teorias e crenças das pessoas que estão em lugares chave na produção no conhecimento, que elaboram políticas sociais e que (não) planejam a educação no nosso país.
Voltando aos mitos, pois cada um do ponto de vista individual tem direito ao seu, prefiro ficar com o de Yemanjá, pois ele abraça a diversidade e é mais (afro)brasileiro. Como bem disse meu querido Marlon Marcos, sereias existem e são negras, e também são sereias as ninfas indígenas que brotam dos Igarapés.
Odoyá!
Luciana Brito é historiadora, especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA. É professora da Universidade Federal do Recôncavo e também integra uma organização de mulheres chamada Rede de Mulheres Negras da Bahia. É graduada em história pela Universidade Federal da Bahia, mestre pela Unicamp, doutora em história pela USP e pós-doutora pela City University of New York. É autora do livro “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista”, além de vários artigos. Luciana mora em Salvador com sua família, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Está no Instagram como @lucianabritohistoria. Escreve quinzenalmente às terças-feiras.
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