domingo, 7 de junho de 2020

Histeria incontrolável, pânico coletivo e a ficção em fúria, por Sebastião Nunes

Uma distopia avacalhadora, botando a cada dia um pouco mais de pimenta na sopa de defuntos que o antipresidente Messias cozinha em fogo brando.

        Por Sebastiao Nunes
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Histeria incontrolável, pânico coletivo e a ficção em fúria

por Sebastião Nunes

Revolucionadas pela inteligência artificial, as animações e as técnicas de efeito especial haviam atingido grau extraordinário de desenvolvimento. Também os físicos teóricos do Partido Interior, grupo de elite que raramente aparecia, apoiados na teoria da singularidade, na física quântica e na simulação de buracos negros artificiais, chegaram ao máximo de realismo naquilo que antes fora apenas equações complicadas e teoria para iniciados.

Assim, mal iniciados os dois minutos de ódio, o Coronaviridae da macrotela criou vida e saltou para a plateia. Era uma coisa enorme, disforme, de cores cambiantes e tão nojenta que muitos dos assistentes não suportaram a visão asquerosa e vomitaram tudo o que tinham no estômago, gritando de terror.

O monstro – ou qualquer outro nome que lhe fosse aplicado – passou por cima das primeiras filas de assentos e, subitamente, enterrou as garras no peito de uma mulher minúscula e magra, ao mesmo tempo em que seus dentes pontudos se cravavam num pescoço fino. Com um gemido débil, a mulher abriu os braços e caiu para trás. No mesmo instante, enquanto as pessoas tentavam fugir, o monstro largou a mulher morta, alcançando um sujeito gordo e grande, rasgando com as unhas sua barriga gorducha e mordendo-lhe o rosto com tremenda gana. O sangue dos defuntos esguichou e, como se fosse a obra de um pintor abstrato louco, encharcou as roupas dos camaradas próximos.

Foi o que bastou para provocar imediata reação da assistência, que até então se tinha comportado como gado no matadouro, pronto para o sacrifício. Teriam ouvido alguma voz de comando subliminar, emitido de algum recanto do vestíbulo não se sabe por quem? Era provável, tamanha a força coletiva da reação. Imediatamente, todos os que se encontravam próximos ao monstruoso coronavírus saltaram sobre ele, aos socos, pontapés e mordidas, destruindo-o completamente em minutos. E então perceberam, à medida que o monstro murchava e desaparecia, como se nunca tivesse existido, que aquilo tudo não passava de fantasia criada pela imaginação coletiva, embora aparentasse, no início, uma projeção da macrotela. Ou talvez fosse uma criação viva e dinâmica dos cientistas, com o objetivo evidente de matar.

OS LOBOS TRANSTORNADOS

Uma gargalhada feminina histérica sufocou os gritos de fúria da multidão. Em seguida, uma risada masculina se contrapôs à gargalhada inicial. Wilson percebeu que eram a garota e O’Brien que riam e então ele também aderiu, rindo o mais alto que podia, para mostrar que havia entendido o que, a partir daquele momento, se tornava uma brincadeira coletiva de adultos sérios. Imediatamente, como se compreendessem o sentido oculto dos dois minutos de ódio, uma enorme gargalhada, brotando de centenas de gargantas, explodiu no vestíbulo. Muitos não se continham e choravam de rir.

Foi quando um novo Coronaviridae apareceu na macrotela, bem maior e muito mais aterrorizante que o primeiro. Rapidamente, quase imperceptivelmente, o monstro girou o corpo arredondado e eriçado de apêndices multicoloridos, que tanto poderiam ser espinhos como tentáculos com garras nas extremidades. Enquanto o monstro girava, as pessoas pararam de rir e prestaram atenção. Alguém compreendia o que estava acontecendo? Não, ninguém entendia. Como a sessão diária dos dois minutos de ódio nunca se repetia, os espectadores, por mais que se preparassem, eram apanhados de surpresa todas as vezes. E pagavam caro pela surpresa.

Desta vez foi assim. O monstro saltou com inesperada elasticidade por cima das filas de cadeiras, indo cair em cima da última. Com uma velocidade espantosa, mordia e feria com os espinhos-garras, matando todos os que se encontravam dentro de um raio de vinte ou trinta metros, movimentando-se para a frente, para trás e para os lados, reproduzindo vezes sem conta as dentadas, o morticínio e a enxurrada de sangue.

E tudo se repetiu. Como se ouvissem nova ordem, todos os sobreviventes, sem uma única exceção, se atiraram sobre o monstro e começaram a destruí-lo furiosamente, enquanto a monstruosa criatura, numa grotesca imitação da primeira, murchou e sumiu completamente. Mais uma vez – pensaram os ensanguentados sobreviventes – haviam sido enganados por uma projeção da macrotela. Com um sentimento misto de raiva e impotência, de medo e tristeza, olhavam-se uns aos outros.

E de novo ouviu-se a gargalhada, desta vez partindo de O’Neil, seguida pela risada da garota. Foi o bastante para Wilson se incorporar a eles e, em seguida, todos os demais os imitaram, uma pavorosa gargalhada reboando no vestíbulo.

Mas desta vez, prevenidos e assustados, interromperam de repente o riso e se voltaram para a macrotela, imaginando novos acontecimentos.

Nada aconteceu, exceto que a macrotela lentamente se tornou fosca, com sua intensa luminosidade desaparecendo aos poucos. Mesmo assim, os participantes dos dois minutos de ódio esperaram. E continuaram esperando.

Até que todas as luzes internas se apagaram e apenas brilhavam as lâmpadas do refeitório, que ficava ao lado. Wilson procurou O’Brien e a garota, mas eles já haviam saído. Despeitado e com uma ponta de ciúme, caminhou para o refeitório.

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