Passar fome, sabe?', diz Josias Monteiro, que reside em Baixada Pará, uma das maiores periferias de Macapá
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O MORADOR DA BAIXADA PARÁ, NA PERIFERIA DE MACAPÁ, JOCA BOBOCA, TEM SE DEDICADO A RECOLHER E FAZER DOAÇÕES PARA A COMUNIDADE. CRÉDITOS: ARQUIVO PESSOAL
“Joca Boboca, nariz de pipoca, perna torta, não toma coca, dorme na maloca, na canela muriçoca”. O tom lúdico com que Josias Monteiro da Silva, o Joca Boboca, se dirige às crianças da Baixada Pará, uma das maiores periferias de Macapá, é intencional. “É uma forma de tentar devolver a cada uma delas um pouco de infância”.
A atuação do contador de histórias na comunidade não nasce agora, mas se torna ainda mais fundamental em meio à crise energética do Amapá, que chega ao 18º dia nesta sexta-feira 20. “Aqui nunca fomos respeitados, mas agora perdemos a dignidade. Passar fome, sabe?”.
O apagão, conta o morador, impactou a atividade comercial dentro da comunidade e tornou ainda mais vulnerável a situação de 1.500 famílias da Baixada Pará e entorno. “O vizinho que vendia sacolé deixou de vender, o que vendia churrasquinho também. Temos histórias de pessoas que receberam o auxílio emergencial, compraram carne e perderam tudo. Chegaram a doar pra não estragar”, relata.
Desde o início do apagão, Joca tem se dedicado a arrecadar e entregar doações nas casas de palafita que se aglomeram na região de ressaca, frequentemente inundada pelas cheias do Rio Amazonas e seus afluentes.
“Aqui nunca fomos respeitados, mas agora estamos falando de perda de dignidade. Passar fome, sabe?”
Embora seja uma referência para os moradores, ele faz questão de frisar que não trabalha sozinho. “A gente se ajuda, é uma grande ação comunitária. Estamos recebendo doações de alimentos, água, fralda. Todo dinheiro que entra a gente corre pra tentar abastecer as pessoas. Aqui é pobre ajudando pobre”, diz, reiterando a falta de ações do governo do estado, liderado por Waldez Góes (PDT), e também da prefeitura, que continuará sendo comandada por Carlos Sampaio (DEM), reeleito no último domingo 15.
O morador conta que, embora o estado tenha anunciado um sistema de racionamento de energia [o anúncio foi feito no dia 8 de novembro, com alternância do serviço a cada seis horas], o efeito não é sentido na periferia.
“A gente nem sentiu voltar nada, esse rodízio aí se perdeu, de três em três horas aqui ficamos sem luz. Não tem uma ordem, não dá pra se programar pra nada”.
“É humilhação, não merecemos isso!”
Bruna Silva Rocha, moradora de Macapá, usou as redes sociais, na quarta-feira 18, para registrar a sua indignação como cidadã e mãe. “Em mais um completo apagão, minha filha chorando de calor, a peguei e levei pra sala, fiz do sofá uma cama e acampamos lá, fiquei abanando até ela dormir. Quando ela dormiu, eu comecei a chorar”, escreveu.
As altas temperaturas comuns na região somada à falta de energia durante a madrugada que, segundo ela, é cortada por volta de uma da manhã e só retorna por volta das 4h, a preocupa, sobretudo, pela saúde da filha de 9 anos.
“Ela é asmática, e quando entra em crise preciso recorrer a aparelho de inalação. Como faço sem energia?” questiona.
Bruna conta à reportagem que quando o estado sofreu o primeiro apagão, no dia 3 de novembro, tinha acabado de fazer a compra do mês para abastecer sua família, um gasto de 700 reais. Perdeu tudo, depois de dois dias completos no escuro.
“Minha perda começou aí. Aí imagina ainda ter de arranjar dinheiro reserva para comprar água, sendo que os galões por aqui passaram de 6 para 30 reais. A gente viu cenas similares a ataques zumbis nos mercados pelo medo das pessoas ficarem sem comida”, conta.
“Também não tivemos qualquer esclarecimento esta semana, quando fomos surpreendidos pelo segundo apagão”, acrescenta. No dia 17 de novembro, o Amapá sofreu novo blecaute geral por volta das 20h30.
No 18º dia de problemas energéticos no estado, a família ainda não consegue restabelecer uma rotina. “O horário do racionamento não está sendo cumprido, temos falta de luz cerca de quatro vezes em um dia. Não consigo estocar nada, atemos apostado em coisas secas para comer que duram um pouco mais, como arroz, farofa, uma salada. É uma falta de respeito com todo mundo”.
“O pior ainda está por vir”
Um médico que atua na cidade de Macapá, com atendimentos nos hospitais de clínicas e emergência da cidade, e também em uma unidade básica de saúde, não tem um bom diagnóstico sobre os efeitos prolongados do apagão na saúde das pessoas.
“A minha agenda de atendimentos na UBS, que sempre foi cheia, agora não está. Isso significa que as pessoas estão deixando de adoecer? Definitivamente não, só estão com outras prioridades. Certamente teremos um quadro de pacientes com doenças crônicas descompensadas por conta desse cenário completamente adverso”, conta o profissional que preferiu não se identificar.
O especialista conta que, ainda que o estado tenha anunciado um racionamento, os períodos sem luz não permitem que a cidade tenha um funcionamento ordenado, o que também impede que as pessoas procurem atendimento médico.
“Também já tenho relatos de colegas que atuam com atenção de saúde primária sobre aumento de casos de diarreia em crianças e adultos, já que a população não tem tido acesso à agua de qualidade”, acrescenta.
Quem é quem na questão energética do Amapá
O Amapá produz energia a partir de 4 hidrelétricas instaladas em rios do estado. O total produzido de cerca de mil megawatts é redistribuído por meio de leilões em que as distribuidoras fazem a aquisição do que é gerado. Segundo o governo do estado, o Amapá precisa de 250 megawatts.
Hoje, os mais de 861 mil moradores do estado dependem da eletricidade produzida na hidrelétrica de Tucuruí (PA). De lá, a energia é levada por linhas de transmissão até o Amapá e repassada aos clientes. Quem cuida da distribuição da energia das subestações às residências é a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA).
O gerenciamento das linhas de transmissão no estado é feito de maneira mista: 85,04% é concessão da empresa Gemini Energy; 14,96% são da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), autarquia do governo federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).
A Gemini Energy, atualmente, é a dona da Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), responsável pela subestação de energia que pegou fogo no dia 3 de novembro, causando o apagão completo de 13 das 16 cidades do estado.
No entanto, em 2008, quando a LMTE ganhou a concessão das linhas de transmissão do Pará para o Amapá por 30 anos, a dona da empresa era a espanhola Isolux, que entrou em processo de recuperação judicial em 2016, o que levou à venda para a Gemini, em 2019. A empresa é composta de fundos de investimentos, um deles com modelo de atuação direcionado para companhias que passem por problemas financeiros causados por eventos não estruturais.
Uma reportagem do UOL publicada em novembro esclareceu que o contrato assinado pela Isolux em 2008 previa penalidades em caso de descumprimento das obrigações da empresa, tais como construir o sistema em 36 meses, além de manter e operar as instalações de transmissão, incluindo as subestações.
De acordo com a apuração, o documento ainda estendia à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a possibilidade de intervir para assegurar a prestação adequada do serviço, conforme entendimento contratual. À reportagem, a Aneel afirmou que notificou a LMTE três vezes nos últimos cinco anos, em 2015, 2017 e em 2019, desta vez com aplicação de multa.
Responsabilidades e enfrentamento jurídico
Na quinta-feira 19, a Justiça Federal do Amapá decidiu pelo afastamento imediato da diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e dos diretores do Operador Nacional do Sistema (ONS) por um período de 30 dias ou até que sejam concluídas as investigações sobre o apagão do Amapá, instauradas pela Polícia Federal e Tribunal de Contas da União (TCU).
O ONS é o órgão responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN) e pelo planejamento da operação dos sistemas isolados do país, sob a fiscalização e regulação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
A decisão atende a uma ação popular protocolada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). “Essa medida é mais do que necessária para que seja feito justiça com todo o sofrimento que os amapaenses estão tendo”, declarou o parlamentar em suas redes sociais.
“Em qualquer outro país, a empresa privada teria tido a concessão cassada e seus donos presos”, acrescenta referindo-se à Gemini Energy. “O mesmo vale para Aneel e para a diretoria da ONS”, critica.
Randolfe também critica a falta de gestão do governador Waldez Góes durante a crise. “Ele não tem responsabilidade pela concessão, mas, na crise, ele tinha que governar, distribuir carros pipa pela cidade, impedir que os preços fossem reajustados. Tomar um conjunto de medidas para minimizar o sofrimento da população. Mas a única coisa que ele tem feito é reprimir protestos do povo com violência, força, balas de borracha. O que não falta é integrante da elite política aqui chamando a população que está mobilizada de facção”, condena.
Previsões
Inicialmente, a distribuidora de energia, a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), prometeu acabar com o rodízio de energia e retomar a distribuição completa em 26 de novembro. No entanto, após o segundo apagão no estado, a Eletronorte, empresa do governo federal responsável por ativar energia térmica em geradores, prometeu uma solução provisória para restabelecer 100% da energia até sábado (21).
“Quem causa a confusão é a empresa privada, mas na hora de corrigir entram em cena os trabalhadores da estatal que tem trabalhado exaustivamente”, observa Randolfe. O parlamentar ainda reafirma: “Não teremos o problema resolvido sem a restauração de um transformador reserva aqui. Além disso, precisamos considerar também que a rede de distribuição da CEA está colapsando”, finaliza.
“Ela é asmática, e quando entra em crise preciso recorrer a aparelho de inalação. Como faço sem energia?” questiona.
Bruna conta à reportagem que quando o estado sofreu o primeiro apagão, no dia 3 de novembro, tinha acabado de fazer a compra do mês para abastecer sua família, um gasto de 700 reais. Perdeu tudo, depois de dois dias completos no escuro.
“Minha perda começou aí. Aí imagina ainda ter de arranjar dinheiro reserva para comprar água, sendo que os galões por aqui passaram de 6 para 30 reais. A gente viu cenas similares a ataques zumbis nos mercados pelo medo das pessoas ficarem sem comida”, conta.
“Também não tivemos qualquer esclarecimento esta semana, quando fomos surpreendidos pelo segundo apagão”, acrescenta. No dia 17 de novembro, o Amapá sofreu novo blecaute geral por volta das 20h30.
No 18º dia de problemas energéticos no estado, a família ainda não consegue restabelecer uma rotina. “O horário do racionamento não está sendo cumprido, temos falta de luz cerca de quatro vezes em um dia. Não consigo estocar nada, atemos apostado em coisas secas para comer que duram um pouco mais, como arroz, farofa, uma salada. É uma falta de respeito com todo mundo”.
“O pior ainda está por vir”
Um médico que atua na cidade de Macapá, com atendimentos nos hospitais de clínicas e emergência da cidade, e também em uma unidade básica de saúde, não tem um bom diagnóstico sobre os efeitos prolongados do apagão na saúde das pessoas.
“A minha agenda de atendimentos na UBS, que sempre foi cheia, agora não está. Isso significa que as pessoas estão deixando de adoecer? Definitivamente não, só estão com outras prioridades. Certamente teremos um quadro de pacientes com doenças crônicas descompensadas por conta desse cenário completamente adverso”, conta o profissional que preferiu não se identificar.
O especialista conta que, ainda que o estado tenha anunciado um racionamento, os períodos sem luz não permitem que a cidade tenha um funcionamento ordenado, o que também impede que as pessoas procurem atendimento médico.
“Também já tenho relatos de colegas que atuam com atenção de saúde primária sobre aumento de casos de diarreia em crianças e adultos, já que a população não tem tido acesso à agua de qualidade”, acrescenta.
Quem é quem na questão energética do Amapá
O Amapá produz energia a partir de 4 hidrelétricas instaladas em rios do estado. O total produzido de cerca de mil megawatts é redistribuído por meio de leilões em que as distribuidoras fazem a aquisição do que é gerado. Segundo o governo do estado, o Amapá precisa de 250 megawatts.
Hoje, os mais de 861 mil moradores do estado dependem da eletricidade produzida na hidrelétrica de Tucuruí (PA). De lá, a energia é levada por linhas de transmissão até o Amapá e repassada aos clientes. Quem cuida da distribuição da energia das subestações às residências é a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA).
O gerenciamento das linhas de transmissão no estado é feito de maneira mista: 85,04% é concessão da empresa Gemini Energy; 14,96% são da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), autarquia do governo federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).
A Gemini Energy, atualmente, é a dona da Linhas de Macapá Transmissora de Energia (LMTE), responsável pela subestação de energia que pegou fogo no dia 3 de novembro, causando o apagão completo de 13 das 16 cidades do estado.
No entanto, em 2008, quando a LMTE ganhou a concessão das linhas de transmissão do Pará para o Amapá por 30 anos, a dona da empresa era a espanhola Isolux, que entrou em processo de recuperação judicial em 2016, o que levou à venda para a Gemini, em 2019. A empresa é composta de fundos de investimentos, um deles com modelo de atuação direcionado para companhias que passem por problemas financeiros causados por eventos não estruturais.
Uma reportagem do UOL publicada em novembro esclareceu que o contrato assinado pela Isolux em 2008 previa penalidades em caso de descumprimento das obrigações da empresa, tais como construir o sistema em 36 meses, além de manter e operar as instalações de transmissão, incluindo as subestações.
De acordo com a apuração, o documento ainda estendia à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a possibilidade de intervir para assegurar a prestação adequada do serviço, conforme entendimento contratual. À reportagem, a Aneel afirmou que notificou a LMTE três vezes nos últimos cinco anos, em 2015, 2017 e em 2019, desta vez com aplicação de multa.
Responsabilidades e enfrentamento jurídico
Na quinta-feira 19, a Justiça Federal do Amapá decidiu pelo afastamento imediato da diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e dos diretores do Operador Nacional do Sistema (ONS) por um período de 30 dias ou até que sejam concluídas as investigações sobre o apagão do Amapá, instauradas pela Polícia Federal e Tribunal de Contas da União (TCU).
O ONS é o órgão responsável pela coordenação e controle da operação das instalações de geração e transmissão de energia elétrica elétrica no Sistema Interligado Nacional (SIN) e pelo planejamento da operação dos sistemas isolados do país, sob a fiscalização e regulação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
A decisão atende a uma ação popular protocolada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). “Essa medida é mais do que necessária para que seja feito justiça com todo o sofrimento que os amapaenses estão tendo”, declarou o parlamentar em suas redes sociais.
Para o senador, no entanto, as responsabilidades não se encerram aí. “A primeira responsabilidade é dos bandidos do governo federal. Qualquer país que tivesse um presidente da república decente teria demitido o ministro de Minas e Energia [Bento Albuquerque]”, declarou. No dia 6 de novembro, três dias após o início do apagão, o ministro afirmou que normalizaria a situação no estado até a semana seguinte. A declaração foi dada após reunião com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).
“Em qualquer outro país, a empresa privada teria tido a concessão cassada e seus donos presos”, acrescenta referindo-se à Gemini Energy. “O mesmo vale para Aneel e para a diretoria da ONS”, critica.
Randolfe também critica a falta de gestão do governador Waldez Góes durante a crise. “Ele não tem responsabilidade pela concessão, mas, na crise, ele tinha que governar, distribuir carros pipa pela cidade, impedir que os preços fossem reajustados. Tomar um conjunto de medidas para minimizar o sofrimento da população. Mas a única coisa que ele tem feito é reprimir protestos do povo com violência, força, balas de borracha. O que não falta é integrante da elite política aqui chamando a população que está mobilizada de facção”, condena.
Previsões
Inicialmente, a distribuidora de energia, a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA), prometeu acabar com o rodízio de energia e retomar a distribuição completa em 26 de novembro. No entanto, após o segundo apagão no estado, a Eletronorte, empresa do governo federal responsável por ativar energia térmica em geradores, prometeu uma solução provisória para restabelecer 100% da energia até sábado (21).
“Quem causa a confusão é a empresa privada, mas na hora de corrigir entram em cena os trabalhadores da estatal que tem trabalhado exaustivamente”, observa Randolfe. O parlamentar ainda reafirma: “Não teremos o problema resolvido sem a restauração de um transformador reserva aqui. Além disso, precisamos considerar também que a rede de distribuição da CEA está colapsando”, finaliza.
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