Peça 1 – o caráter nacional
A crise atual serviu para expor uma das piores heranças culturais do país: o chamado racismo estrutural.
Mas há um outro componente pouco estudado, talvez primo-irmão, o caráter das elites brasileiras e dos setores que ambicionam um lugar na chamada Casa Grande.
A maneira como mídia, Supremo, políticos, corporações públicas ingressaram no golpismo mais explícito, sem a menor preocupação com a imagem ou, melhor, regozijando-se com sua imagem refletida no esgoto, é um fenômeno típico de sociedades sem caráter.
Tenho a impressão de que a necessidade de se identificar com as classes altas seja um resquício da República Velha, na qual as classes de baixo, para se defenderem dos abusos da Justiça e do poder, tinham que se abrigar sob as asas de algum coronel local.
Essa submissão, por sua vez, gerava um sentimento de onipotência quando, por alguma razão, o cidadão normal, através de estudos passava a cumprir o papel de jagunço letrado, tornando-se defensor das demandas da classe superior junto às instituições de Estado – em uma função de jornalista, juiz ou Ministro do Supremo. Aí havia o deslumbramento total, dos que supunham ter conseguido a inclusão por cima.
Some-se o fato de uma sociedade historicamente permissiva, que permitia a convivência com traficantes de escravos, bicheiros, doleiros, desde que bem-sucedidos financeiramente. Grandes doleiros, contrabandistas, são aceitos com naturalidade nas sociedades do Rio ou de Brasilia, e confraternizam-se com autoridades no paraíso tropical de Miami.
Esse talvez seja o motivo por que, na guerra jurídico-midiática-política mais suja da história, não tenha ocorrido sequer as chamadas objeções de consciência como impeditivo. Por tal, entenda-se a atitude do motorista de um trator, que recebeu a ordem de destruir as casas de famílias sem terra. Ele se negou a cometer a crueldade. Recorreu à chamada objeção de consciência.
Nada disso se viu no período em que o ódio foi plantado, cevado e colhido. Não houve objeção de consciência por parte dos principais agentes da conspiração e sequer um mínimo de pudor, aquela pequena vergonha que acomete até as mentes mais insensíveis, quando flagradas em grandes malfeitos.
Em países com caráter, quem aderisse ao golpismo seria mal visto ao menos por sua categoria. Uma mídia com caráter denunciaria desvios de condutas, exporia os oportunistas, os excessivamente ambiciosos, os crimes cometidos pelos guardiões da lei.
Nada ocorreu. Pelo contrário, os bárbaros foram celebrados, houve pruridos da mídia até em divulgar o suicídio do reitor da UFSC.
Este foi o Brasil da década de 2010.
Por outro lado, começa a surgir uma onda de liberalização relativa, impulsionada pelos ventos externos. Alguns dos principais responsáveis pelo envenenamento político anterior ressurgem como baluartes da democracia – e nada lhes é cobrado, nem um mínimo de autocrítica.
Por tudo isso, nada espere desse aggiornamento liberal dos porta-vozes dos homens de bens, nem mesmo com as novas ondas que se propagam pelo mundo civilizado, como reação à barbárie da era Trump.
O país sem caráter só se submete a contingências de ordem política, de interesse pessoal e é reativo a movimentos de opinião pública. Jamais assumirá o protagonismo da defesa da civilização.
Portanto, movimentos virtuosos que vierem a surgir, serão externos a esses personagens centrais do golpe.
Peça 2 – a mídia
A guerra cultural inicial em 2005 criou uma geração de jornalistas assustados, enquadrados. Não os culpe. Passou a ser pré-condição para seguir carreira.
Agora, começa a haver uma pequena reação de algumas cabeças mais independentes, no pequeno espaço aberto por alguns veículos que perceberam que jornalistas com caráter próprio são peças centrais na credibilidade do veículo como um todo. Mas esse tipo de jornalista com luz própria ainda é minoria e pisa em ovos.
Além disso, o liberalismo midiático vai até o limite Lula. Persistem todas as idiossincrasias do período anterior, substituindo os assassinatos de reputação pela invisibilização. E tudo isso em um momento em que o mercado de opinião foi pulverizado por bolhas de todas as cores, tirando definitivamente da mídia o papel de mediadora central das discussões nacionais.
A grande contribuição da mídia será não repetir o jornalismo de esgoto do período anterior e deixar de aspirar a ser partido político.
Aliás, os editoriais de hoje da Folha e do Estadão escancaram a estreiteza de visão, em relação à maior crise política da história.
Peça 3 – o sistema de Justiça
Hoje em dia, o sistema de Justiça lembra os exércitos confederados depois da guerra da Secessão, grupos andando pelas estradas e fuzilando quem passasse pela frente, adversários, transeuntes, pouco importando. Bastava não vestir uniformes cor de cinza.
Primeiro foi a Lava Jato impulsionando o protagonismo político do Judiciário. Depois, o liberou geral de alguns tribunais, estimulando o lawfare judicial contra supostos adversários políticos.
Há em curso, também, uma guerra mundial interna no Judiciário.
A Procuradoria Geral da República monta uma ofensiva contra o juiz Marcelo Bretas e a Lava Jato Rio. Para se defender, ambos acertam uma operação que mira filhos de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Antes disso, a Lava Jato de Curitiba se valeu de suas ligações internacionais ilegais para tentar provas contra Ministros do Supremo.
Nessa frente, o fim da Lava Jato é um refresco, mesmo deixando indevassáveis vários porões dos tribunais superiores.
No Supremo, a entrada de um Ministro garantista, ainda que indicado por Bolsonaro, traz esperanças de uma pacificação da corte e da Justiça em geral. Mesmo porque, os batedores de 1a instância, que vão na linha de frente fuzilando adversários, jogando bombas nos inimigos, representam ameaças efetivas ao próprio conceito de hierarquia jurídica.
Além disso, o fim da onda punitivista faz com que Ministros-que-seguem-ondas, como Luís Roberto Barroso, passem a cavalgar outras ondas, desinteressando-se da guerra nada santa contra os garantistas do Supremo.
Não espere nenhuma contribuição do Supremo – e da Justiça – a um pacto civilizatório de envergadura. Mas, também, não será mais um protagonista político, limitando-se a convalidar as políticas econômicas de desmonte das redes de proteção social votadas pelo Congresso. O que não é pouco.
Peça 4 – as Forças Armadas
Hoje em dia as Forças Armadas estão irreversivelmente ligadas à imagem do governo Bolsonaro. Os erros dos generais de Bolsonaro na questão de energia, especialmente na Saúde, na articulação política, a apatia ante a liberação de armas, a aceitação pacífica da oferta abundante de empregos na área civil, fizeram com que as Forças Armadas brasileiras tivessem seu momento Malvinas.
Não se verá mais atitudes como a do general Villas Boas que, com um mero twitter, ajudou a consolidar o golpe jurídico-parlamentar. Mas será um enorme desafio desalojar os militares do enorme mercado de trabalho criado na área civil e nas escolas militares.
De qualquer modo, apesar da excelência dos institutos militares de tecnologia, não espere das Forças Armadas nenhuma contribuição à ideia de pacto ou projeto nacional. Seu papel no desenvolvimento industrial, desde as políticas industriais dos anos 30 ao desenvolvimento da indústria aeronáutica e do enriquecimento de urânio, são apenas retratos na parede. Hoje, o que viceja é o padrão Pazuello.
Peça 5 – os partidos políticos
O sistema partidário foi triturado. Hoje em dia, o jogo político se dá em torno de dois movimentos:
Liberalismo selvagem – movimento que junta o MMS – Mídia, Mercado e Supremo. Seu objetivo único é sancionar o desmonte final do Estado e convalidar os negócios da privatização, o desmonte das políticas sociais, mas com um olho em 2022. A não consolidação de uma candidatura é o que mantém Bolsonaro a salvo, apesar de todos os descalabros que comete. Sua aposta é em Luciano Huck, apesar dos esforços de João Dória Jr em se habilitar.
Progressistas – há uma corrente progressista presente nos movimentos sociais e em várias categorias profissionais. Hoje em dia, há os economistas pela democracia, os juízes, os procuradores e os policiais antifascistas. Mas não há um ponto de organização para essas demandas.
Espinha dorsal do petismo, o sindicalismo foi fuzilado a partir do interinato de Temer. Mesmo antes, jamais conseguiu sair das bolhas corporativas. E o PT não conseguiu se arejar para repetir o papel dos anos 80, do grande ônibus abrigando movimentos sociais de toda espécie.
Lula mantém-se como a grande liderança, mas sem as condições de articulação de antes. Caso semelhante ocorreu com Getúlio Vargas quando retornou do exílio interno e se tornou novamente presidente. As circunstâncias eram outras, os atores eram outros e ele não conseguiu se mover com a mesma desenvoltura política de antes.
Por outro lado, movimentos auspiciosos que estavam se formando – como a frente dos governadores do Nordeste – recuaram devido às fragilidades fiscais provocadas pela pandemia. E o ativismo político da Justiça liquidou com o grande articulador da frente, Ricardo Coutinho, ex-governador da Paraíba.
Dono dos melhores diagnósticos sobre a crise, Ciro Gomes padece do mesmo voluntarismo que o marcou a vida toda.
Em todo caso, à medida em que as esquerdas não conseguem apresentar uma proposta competitiva, e a direita se perde em devaneios com Huck, há um espaço para o novo conhecido, o bonapartismo de Ciro.
Peça 6 – sem conclusões
Vive-se um momento totalmente inconclusivo. A década de 2010 legou um país destroçado, com as instituições desmoralizadas, sem lideranças expressivas. Não existe vácuo na política mas também não existe, à vista, nenhuma instituição em condições de empalmar o poder – o que é bom, pois poderia significar a consolidação da ditadura em mãos de um poder.
Mas, como não existe vácuo na política, resta aguardar movimentos mais concretos para um xadrez mais assertivo. O agravamento da crise, misturando segunda onda do Covid-19, fim do auxílio emergencial, pressão de custos, certamente colocará fatos novos na mesa.
Espera-se que para o bem do país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12