A Europa descobriu seu Rubicão moral, a fronteira além da qual a transformação em mercadoria se torna intolerável
Por Yanis Varoufakis

Créditos da foto: (Clive Brunskill/Getty Images)
Na semana passada, os europeus mostraram cartão vermelho aos magnatas – e seus financiadores – que tentaram formar uma Super Liga com os 15 melhores clubes de futebol do continente. Agora que os europeus descobriram seu Rubicão moral, talvez tenha chegado a hora de um repensar mais amplo sobre quem é o dono do quê.
Atenas – A Europa descobriu seu Rubicão moral, a fronteira além da qual a transformação em mercadoria se torna intolerável. A linha na areia que os europeus se recusam a cruzar, aconteça o que acontecer, acaba de ser traçada.
Nós nos curvamos aos banqueiros que quase explodiram o capitalismo, resgatando-os às custas de nossos cidadãos mais fracos. Fizemos vista grossa para a evasão fiscal corporativa no atacado e a venda de bens públicos. Aceitamos como natural o empobrecimento dos sistemas públicos de saúde e educação, o desespero dos trabalhadores em contratos de zero-hora, filas de sopa, despejos domiciliares e níveis alucinantes de desigualdade. Ficamos parados enquanto nossas democracias foram sequestradas e as Big Tech nos tiraram a privacidade. Tudo isso nós pudemos suportar.
Mas um plano que acabaria com o futebol do modo como o conhecemos? Nunca.
Na semana passada, os europeus mostraram o cartão vermelho aos magnatas – e seus financiadores – que tentaram roubar o belo jogo. Uma poderosa coalizão de conservadores, esquerdistas e nacionalistas, unindo a Europa de norte a sul, levantou-se em oposição a um acordo secreto dos proprietários de muitos dos clubes de futebol mais ricos do continente para formar a chamada Super Liga. Para os proprietários – incluindo um oligarca russo, um membro da realeza árabe, um magnata do varejo chinês e três potentados esportivos norte-americanos – a mudança fazia sentido óbvio em termos financeiros. Mas do ponto de vista do público europeu, foi a gota d'água.
Na última temporada, 32 clubes se classificaram para jogar na Liga dos Campeões da Europa, dividindo € 2 bilhões (US$ 2,4 bilhões) em receitas de direitos de televisão. Mas metade dos clubes, times como Real Madrid e Liverpool, atraiu a maior parte do público europeu. Seus donos perceberam que o bolo aumentaria substancialmente, agendando mais clássicos entre os semelhantes de Liverpool e Real Madrid, em vez de partidas com times fracos da Grécia, Suíça e Eslováquia.
E foi assim que a proposta da Super Liga eclodiu. Em vez de dividir 2 bilhões de euros entre 32 clubes, os 15 principais clubes calcularam que poderiam dividir € 4 bilhões entre si. Além disso, ao criar uma liga fechada, com os mesmos clubes todos os anos, independentemente do seu desempenho em campeonatos nacionais, a Superliga eliminaria o risco financeiro colossal que todos os clubes enfrentam hoje: não se classificar para a Champions League [Liga dos Campeões] do ano seguinte.
Do ponto de vista de um financista, expulsar os retardatários e formar um cartel fechado foi o passo lógico seguinte em um processo de mercadorização que começou há muito tempo. Eis aqui um acordo que quadruplicaria fluxos de renda futuros e removeria o risco transformando esses fluxos em um ativo securitizado. É de se surpreender que o JPMorgan Chase tenha corrido para financiar o negócio com uma oferta de 300 milhões de euros para cada um dos 15 clubes que concordaram em deixar a Liga dos Campeões para trás?
Considerando que a saga do Brexit durou anos, essa tentativa de ruptura em particular entrou em colapso em dois dias. Qualquer que seja a lógica financeira por trás da Super League, seus conspiradores falharam em considerar uma força intangível, mas irresistível: a convicção generalizada entre fãs, jogadores, treinadores, comunidades e sociedades inteiras de que eles, não os magnatas, são os verdadeiros donos do Liverpool, Juventus, Barcelona e dos outros.
E quem poderia culpar os donos dos times por não antever isso? Ninguém protestou quando flutuaram as ações de seus clubes nas bolsas de valores, ao lado de McDonald's e Barclays. Durante anos, os fãs assistiram passivamente enquanto oligarcas despejavam bilhões em alguns clubes líderes, acabando com toda a competição real, embalando suas escalações com os grandes jogadores do mundo.
Mas enquanto o público europeu tolerava que a probabilidade de um retardatário ganhar alguma coisa tivesse caído perto de zero, a Super Liga tiraria oficialmente essa possibilidade do caminho. Maximizar os lucros significaria agora a extinção formal da possibilidade até mesmo de sonhar que um time humilde como Stoke City ou Panionios de Atenas pudesse um dia ganhar a Liga dos Campeões. A eliminação completa da esperança, por menor que o capitalismo a tivesse tornado, proporcionou a faísca que parou os planos da oligarquia do futebol.
Enquanto isso, nos Estados Unidos, até os cínicos magnatas do esporte entendem que o capitalismo de livre mercado sufoca a competição. A Liga Nacional de Futebol dos EUA (NFL) é um modelo de competitividade agressiva, e não só porque jogadores super em forma sacrificam sua saúde por riqueza, aclamação e uma chance de glória no Super Bowl. A NFL é competitiva porque impõe aos seus times um teto salarial rigoroso, enquanto os mais fracos têm privilégio na escolha dos melhores jogadores novatos. O capitalismo norte-americano sacrificou o livre mercado para salvar a competição, minimizar a previsibilidade e maximizar a emoção. O planejamento central vive em pecado com concorrência desenfreada – diretamente sob os holofotes do show business norte-americano.
Se o objetivo é uma liga de futebol excitante e financeiramente sustentável, o modelo norte-americano é o que a Europa precisa. Mas se os europeus estão falando sério sobre sua alegação de que os clubes devem pertencer aos torcedores, jogadores e comunidades das quais eles recebem apoio, eles devem exigir que as ações dos clubes sejam removidas da bolsa de valores e o princípio de um membro, uma ação, um voto seja consagrado em lei.
A questão crucial de saber se a oligarquia deve ser regulada ou desmontada vai muito além dos esportes. Será que os gastos e a agenda de regulação do presidente dos EUA Joe Biden serão suficientes para controlar o poder desenfreado de poucos para destruir as possibilidades de muitos? Ou uma reforma genuína exige uma reformulação radical de quem é o dono do quê?
Agora que os europeus descobriram seu Rubicão moral, pode ter chegado a hora de uma rebelião mais ampla que dá razão a Bill Shankly, o lendário treinador de Liverpool e sólido socialista. "Algumas pessoas acreditam que o futebol é uma questão de vida ou morte", disse Shankly com grande repercussão. "Posso garantir que é muito, muito mais importante do que isso."
*Publicado originalmente em Project Syndicate | Traduzido por César Locatelli
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