
por Michael Roberts [*]
Estará a inflação a retornar às principais economias capitalistas? Quando a economia dos EUA (em particular) e outras economias importantes começam a recuperar-se do declínio de 2020 do COVID, o tema de discussão entre economistas académicos é se a inflação nos preços de bens e serviços naquelas economias está em vias de acelerar até o ponto em que bancos centrais tenham de endurecer a política monetária (isto é, parar de injectar crédito no sistema bancário e elevar taxas de juro). E se isso acontecesse, provocaria um colapso nos mercados de acções e títulos e bancarrotas de muitas companhias mais fracas quando o custo de servir a dívida corporativa ascendesse?
A actual teoria dominante para explicar e medir a inflação é a das "expectativas inflacionárias". Eis como um economic paper convencional apresenta-a em relação aos EUA: "A longo prazo, um factor determinante das pressões contínuas sobre os preços é a expectativa de inflação. Quando as empresas, por exemplo, esperam que os preços a longo prazo se mantenham em torno do objectivo de 2% de inflação da Reserva Federal, poderão ter menos probabilidades de ajustar os preços e salários devido aos tipos de factores temporários discutidos anteriormente. Se, no entanto, as expectativas inflacionárias se desprenderem desse objectivo, os preços podem subir de forma mais duradoura".
Mas expectativas têm de ser baseadas em alguma coisa. As pessoas não são estúpidas; expectativas das empresas e das famílias de que os preços vão subir (mais rápido) dependem de algumas hipóteses ou estimativas de como os preços estão a mover-se e porque. Além disso, expectativas de ascensão de preços não explicam as próprias ascensões de preços.
Há uma razão para a teoria económica dominante ter sido conduzida a este canto "subjectivo" na explicação e previsão de inflação. É porque teorias dominantes anteriores se demonstram erradas. A teoria principal do período do pós-guerra era a monetarista, que já discuti anteriormente . Sua hipótese básica é que a inflação de preços na economia "real" verifica-se e acelera-se se a oferta monetária ascender muito mais rapidamente do que a produção numa economia. A inflação é essencialmente um fenómeno monetário (Milton Friedman) e é causada por bancos centrais e autoridades monetárias a interferirem na expansão harmoniosa da economia capitalista.
Mas a teoria monetarista demonstrou-se errada, particularmente durante a queda do COVID. Durante o ano de 2020, a oferta monetária que entrou no sistema bancário subiu mais de 25% e ainda assim a inflação de preços no consumidor mal se modificou e até mesmo desacelerou.

A teoria monetarista demonstrou-se errada porque ela parte da hipótese errada: que a oferta monetária conduz os preços de bens e serviços. Mas o caso é o oposto: são mudanças nos preços e na produção que conduzem a oferta monetária.
Tome-se a fórmula monetarista: MV=PT, em que M é a oferta monetária; V é velocidade da moeda (a taxa de rotação de intercâmbios da moeda); P = preços de bens e serviços e T = transacções ou actividade de produção real.
A teoria monetarista assume que a velocidade do dinheiro (V) é constante mas isto não é verdade, especialmente durante as quedas (slumps) e a queda da COVID em particular.

A enorme ascensão na oferta monetária (M) foi dissipada pela queda sem precedentes na velocidade da moeda (V). Assim, MV, o lado esquerdo da equação monetarista, não subiu muito. Ao contrário da teoria monetarista, os preços dos bens e serviços não foram impulsionados pelas injecções de crédito monetário.
Mas então, será que esta moeda desapareceu? Não, ela ainda lá está, mas as injecções de dinheiro da Reserva Federal e de outros bancos centrais, conseguidas principalmente através da "impressão de dinheiro" e da compra de enormes quantidades de títulos do governo e de empresas, bem como da concessão de empréstimos e subsídios, acabaram, em geral, não nas mãos de empresas e famílias para ser gasta, mas nos depósitos de bancos e outras instituições financeiras. Esta moeda foi entesourada ou utilizada para financiar a especulação em activos financeiros (um mercado bolsista em expansão e investimentos em hedge funds, etc.). Assim, a velocidade da moeda (V) em transacções de bens e serviços caiu a pique.
A teoria alternativa dominante da inflação é a keynesiana. Esta é fundamentalmente uma teoria da "pressão dos custos", nomeadamente que as empresas aumentam os seus preços quando os seus custos de produção aumentam, particularmente os salários, a maior parte dos custos de produção. Com efeito, a teoria keynesiana é uma teoria de "pressão dos salários". A inflação depende da procura e oferta relativas de mão-de-obra que forçam aumentos salariais. Assim, o argumento é: quanto mais baixa for a taxa de desemprego e quanto mais elevada for a procura de mão-de-obra em relação à oferta disponível, mais os salários e depois os preços serão forçados a subir. A teoria keynesiana vê a inflação como sendo causada por trabalhadores que recebem aumentos salariais demasiado elevados (e acabam por perder em termos reais à medida que os aumentos de preços comem os aumentos salariais).
A forma keynesiana habitual para estimar prováveis mudanças na inflação é utilizar a chamada curva de Phillips: a curva da relação estatística entre a taxa de desemprego e a taxa de inflação dos preços. Mais uma vez, no entanto, esta teoria provou ser falsa. A 'curva' não se mantém ou é tão 'plana' que não fornece qualquer orientação sobre a inflação. De facto, desde a Grande Recessão de 2008-9, as taxas de desemprego nas principais economias caíram para os níveis mais baixos de todos os tempos e, no entanto, os aumentos salariais têm sido relativamente moderados e as taxas de inflação abrandaram. Esta é a imagem reflexa dos anos 70, quando as taxas de desemprego subiram para máximos, mas a inflação também, e tivemos o que se chamou de "estagflação". Ambos os exemplos mostram que a teoria keynesiana da "pressão dos custos" é falsa. Na figura abaixo, com base em dados mensais, a linha azul mostra onde deveria estar a curva keynesiana Phillips se ela funcionasse; e a linha vermelha mostra onde ela realmente está. Na verdade, a linha vermelha mostra que a queda do desemprego leva a um abrandamento da inflação, pelo menos desde 2010!

O problema com a teoria keynesiana da inflação é que ela assume que os lucros vêm do investimento e não da exploração da força de trabalho. A teoria keynesiana diz que o S (valor excedente) é o resultado de C (stock de capital) e não do V (força de trabalho). Assim, se C é constante, então S é constante e quaisquer aumentos de preços devem vir de V (aumentos salariais). A visão de Marx era diferente. No seu discurso a sindicalistas em 1865 , ele argumentou contra a visão de que aumentos salariais causam inflação. Na sua opinião, uma subida em V levará geralmente a uma queda em S (lucros) e não a uma subida de preços. Eis porque os capitalistas se opõem veementemente aos aumentos salariais.
E não há inflação salarial. Na verdade, nos últimos 20 anos até ao ano da COVID, os salários semanais reais aumentaram em média apenas 0,4% ao ano, menos ainda que o crescimento médio anual do PIB real de cerca de 2%+. Foi a parte do crescimento do PIB que a ir para os lucros que aumentou (como argumentou Marx em 1865).

Se haverá alguma "pressão de custos" este ano, ela virá de empresas a subirem preços quando o custo das matérias-primas, commodities e outros factores de produção aumentarem, em parte devido à "ruptura da cadeia" de abastecimento decorrente do COVID. O Financial Times relata que " aumentos de preços emergiram como tema dominante no momento dos rendimentos trimestrais começados este mês nos EUA. Executivos da Coca-Cola, da Chipotle e da fabricante de electrodomésticos Whirlpool, bem como gigantes de marcas familiares como Procter & Gamble e Kimberly-Clark, na semana passada disseram todos a analistas de rendimentos que se preparavam para aumentar preços a fim de compensar custos crescentes dos insumos, particularmente de commodities ".
Para entendermos realmente do que causa inflação e se esta está a voltar depois da COVID, temos de retornar à teoria do valor de Marx. A procura de bens e serviços numa economia capitalista depende do novo valor criado pelo trabalho e apropriado pelo capital. O capital apropria-se do valor excedente da exploração da força de trabalho e compra bens de capital com esse valor excedente. O trabalho recebe salários e compra bens de primeira necessidade com estes salários. Assim, são os salários MAIS os lucros que determinam a procura (investimento e consumo).
Voltando à fórmula monetarista MV=PT. Se MV ficar inalterado como grosso modo se passou na queda do COVID, então qualquer alteração em P (preços) dependerá de qualquer alteração em T (o novo valor dos bens e serviços produzidos).
A longo prazo, o crescimento em T tende a abrandar. Porquê? Porque T se baseia na produção capitalista para lucro e como os capitalistas tendem a tentar aumentar os lucros através da mecanização e da substituição do trabalho, há um declínio relativo do novo valor produzido (porque só o trabalho pode criar valor, não as máquinas). Se o crescimento de T abranda, então há uma tendência para a inflação de preços abrandar. E isso está provado empiricamente. Quando a taxa de lucro começou a cair na maior parte das grandes economias após o fim dos anos 90 e o crescimento do novo valor diminuiu, particularmente na última década, os aumentos de preços diminuíram.
Agora os trabalhadores não querem inflação pois esta se corrói padrões de vida real. Mas o capital gosta de alguma inflação, pois aumentos de preços permitem às empresas expandir a produção e aumentar os lucros à custa dos salários. Assim, os bancos centrais e as autoridades monetárias tentam combater a tendência de longo prazo para a baixa da inflação dos preços injectando moeda e crédito (mais M). A oferta de moeda actua como uma contra-tendência para abrandar a criação de valor. Assim, a taxa de inflação (P) depende tanto de M<>T. Evidentemente, na prática, o Fed e outros bancos centrais não podem "administrar" a inflação, pois ela depende do que está a acontecer na produção capitalista. Na verdade, durante os últimos 20 anos, os bancos centrais não conseguiram atingir o seu objectivo de taxa de inflação de cerca de 2% ao ano com ziguezagues monetários nas taxas de juro e nos controlos monetários.
Um modelo marxista de inflação, que já esbocei num post anterior , sugere que é o movimento dos lucros e da procura de investimento, juntamente com o crescimento da oferta monetária, que irá impulsionar a inflação dos preços este ano e no seguinte. Assim, assumindo aumentos acentuados dos lucros e injecções contínuas de oferta monetária (se a um ritmo mais lento), este modelo prevê que a inflação no consumidor norte-americano irá ultrapassar os 3% este ano e no próximo.

A curto prazo, a inflação de bens e serviços poderia aumentar de qualquer forma devido a "efeitos de base" (efeitos estatísticos), "rupturas de cadeia" devido ao COVID ou da chamada "procura reprimida". Mas estes factores são provavelmente transitórios, como argumenta o Presidente do Fed Jay Powell. Mas se a inflação for bem acima da meta anual de 2% do Fed durante algum tempo, isso poderá levar a um aumento significativo nos rendimentos (taxas de juro) de títulos, os quais não estão sob o controlo do Fed. A secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, a ex-chefe do Fed, deu a entender que se a inflação subisse mais do que o esperado, o Fed actuaria para controlá-la através de uma política monetária "mais rigorosa", a qual também aumentaria os rendimentos (yields).
Isto aumenta as probabilidades de as partes mais fracas do sector empresarial nas grandes economias entrarem em dificuldades e apelarem a uma crise de dívida. Lembre-se: a dívida das empresas em relação à produção está no seu ponto mais alto de sempre nas grandes economias.

No seu recente Financial Stability Report , a Reserva Federal dos EUA advertiu que medidas existentes de alavancagem de hedge funs "podem não estar a capturar riscos importantes", apontando o colapso da Archegos Capital como um exemplo de vulnerabilidades ocultas no sistema financeiro global . O Fed descobriu que algumas avaliações de activos são "elevadas em relação às normas históricas" e "podem ser vulneráveis a declínios significativos caso o apetite de risco caia". Por outras palavras, é possível um colapso do mercado de acções e títulos.
Tomar emprestado barato acumulado pelos bancos para especular nos mercados financeiros é chamado "dívida marginal". De acordo com a Financial Industry Regulatory Authority dos EUA, a dívida marginal atingiu US$822 mil milhões no final de Março – logo após a Archegos ter falido. Isto era quase o dobro do nível de US$479 mil milhões de Março de 2020, quando começaram os confinamentos pandémicos e o Fed injectou crédito. E é muito mais do que o pico de cerca de US$400 mil milhões que a dívida marginal atingiu em 2007, pouco antes da crise financeira.
Assim, qualquer retorno significativo da inflação em bens e serviços pode deitar abaixo o castelo de cartas que é o sector financeiro. O que acontece nos sectores produtivos da economia capitalista ainda continua decisivo.
09/Maio/2021
[NT] Os conceitos de M0, M1, M2 e M3, relativos à oferta monetária, estão explicitados aqui . Em 23/Março/2006 o banco central dos EUA cessou de divulgar as suas estatísticas do M3 .
[*] Economista.
O original encontra-se em thenextrecession.wordpress.com/2021/05/09/inflation-and-financial-risk/
Este artigo encontra-se em https://resistir.info/ .
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