O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) realiza a V Feira Estadual da Reforma Agrária Cícero Guedes. Na feira são comercializados frutas, verduras, livros e produtos naturais produzidos por agricultores assentados de todo o estado do Rio de Janeiro. (Foto: Tânia Rêgo/ Agência Brasil)
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São muitas as causas que adoecem nossa população. Uma das principais tem a ver com um modelo agroalimentar baseado na concentração de terras e de capital e na expulsão do campo dos agricultores familiares, justamente aqueles que garantem nosso feijão com arroz e nossas frutas e verduras.
A alimentação inadequada no Brasil é um problema de grandes proporções. Nosso país é um exemplo, infelizmente, das enormes contradições que atravessam essa agenda nos dias de hoje. Por um lado, temos mais da metade da população com alguma dificuldade para se alimentar, sendo que cerca de 20 milhões de pessoas passam fome, apesar de esta nação ser uma das maiores produtoras de commodities agrícolas do mundo. Também, mais da metade da população apresenta excesso de peso, ainda que tenhamos uma enorme biodiversidade e uma cultura alimentar razoavelmente equilibrada herdada dos povos do campo, das águas e das florestas, bem como daqueles que vieram de outros continentes. O sobrepeso, a obesidade e o consumo de produtos ultra processados podem levar a doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), como câncer, diabetes, hipertensão e doenças cardiovasculares. Como chegamos nisso? Procurar responder a essa pergunta nos parece relevante, especialmente em tempos de eleições quando muitas equipes se preparam (ou deveriam se preparar) para pensar o Brasil a médio e longo prazos.
Nossa Constituição acolheu a alimentação como direito social em 2010. Resultado de muita luta de organizações e movimentos sociais, esse direito significa que o Estado deve promover a sua realização tanto quantitativa quanto qualitativamente: é direito comer e comer bem. Mas, não é isso que acontece, pois nos alimentamos mal, muito aquém do necessário, e ingerindo produtos de má qualidade, entupidos de conservantes, corantes, sabores artificiais, sódio, gorduras e açúcares, o que contribui para o sobrepeso a obesidade, e as doenças relacionadas, causando custo ao Sistema Único de Saúde e carga social às famílias.
São muitas as causas que levam as essas disfunções e que adoecem severamente nossa população, podendo levar à morte. Uma das principais tem a ver com um modelo agroalimentar baseado na concentração de terras e de capital e na expulsão do campo dos agricultores familiares, justamente aqueles que garantem nosso feijão com arroz e nossas frutas e verduras. Esse modelo produz commodities agrícolas que geram muito dinheiro para poucas pessoas, ao custo da destruição da nossa sociobiodiversidade: os biomas são desmatados, os povos originários e os camponeses assassinados, as terras envenenadas com agrotóxicos, entre tantas outras mazelas. Diferentemente do que nos querem fazer crer, esse “agro” não é nada “pop”, ao contrário, carrega um rastro de fome e morte.
A lógica capitalista que subjuga a maioria em detrimento da minoria tomou conta também da nossa alimentação cotidiana. A correria do dia a dia, entre o trabalho e as longas horas no transporte público de péssima qualidade, associada à persistência de uma sociedade patriarcal e machista, na qual principalmente as mulheres são as responsáveis pelos cuidados domésticos, das crianças, dos idosos e dos doentes, além do trabalho fora de casa, foram contribuindo para diminuir, cada vez mais, o tempo dedicado à compra de alimentos e ao preparo das refeições. Aos poucos, produtos ultra processados, de preparo rápido, foram ganhando terreno.
Contudo, esses produtos, como hambúrgueres, macarrão instantâneo, embutidos, chips, biscoitos recheados, sucos artificiais, refrigerantes e tantos outros que enchem as prateleiras de supermercados e que encontramos em todo canto, inclusive em cantinas escolares, fáceis de comprar e consumir, na realidade são tudo menos alimentos. Os chamados ultra processados são produtos que parecem comida, têm gosto de comida, têm cheiro de comida, mas são imitação de comida. Eles são elaborados nas indústrias a partir de diversas etapas de processamento e combinam ingredientes que não existem nas nossas cozinhas. São coisas como proteína de soja e de leite, extrato de carnes, gordura vegetal, xarope de frutose, espessantes, emulsificantes, corantes, aromatizantes, realçadores de sabor e vários outros tipos de aditivos, incluindo substâncias sintetizadas em laboratório a partir de carvão e petróleo, por exemplo.
Isso é possível em grande medida porque a indústria de alimentos captura os poderes públicos para defender seus interesses. Conseguem evitar que os rótulos dos produtos descrevam com clareza e detalhe sua composição, logram conter a regulação de propaganda de alimentos infantis e, ainda, se beneficiam de amplos incentivos fiscais. Dá para acreditar que o valor que os estados deixam de arrecadar com a isenção fiscal de agrotóxicos foi, em 2017, de R$ 3,43 bilhões? Com o agronegócio não é diferente, o setor possui uma das mais poderosas bancadas no Congresso Nacional, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA).
Esses setores empresariais também se apropriam do imaginário das pessoas por meio de diferentes estratégias publicitárias como, por exemplo, financiando campanhas, eventos e pesquisas, contratando influenciadores para divulgarem suas mensagens ou, ainda, distribuindo amostras grátis de seus produtos. O esforço é regiamente recompensado. Por exemplo, em 2020, quando o PIB do país recuou mais de 4%, a indústria brasileira de alimentos e bebidas registrou crescimento de 12,8% no seu faturamento em relação a 2019. Em evento público, um representante das indústrias de alimentos anunciou que tinha muito orgulho porque durante a pandemia nenhuma prateleira de supermercado ficou vazia. Há de se pensar se foi o modelo de abastecimento que foi eficiente ou muito menos pessoas tendo dinheiro para comprar?
O Estado, coerente ao lema “deixa o mercado organizar tudo”, não regula ou regula mal o setor privado. Além disso, desde 2016, o Executivo federal vem desmantelando as políticas públicas de segurança alimentar e nutricional responsáveis pelo direito à alimentação. A agricultura familiar perdeu apoio, o Programa de Aquisição de Alimentos foi deturpado, os estoques públicos que poderiam contribuir para conter a alta inflação dos alimentos foram esvaziados, a alimentação escolar não conhece qualquer reajuste há vários anos. E, as ações de fortalecimento dos povos indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais vêm sendo desmontadas, o que tem levado a altas taxas de desnutrição nesses povos. De acordo com o Unicef, no Brasil, cerca de 30% das crianças indígenas são afetadas por desnutrição crônica. Entre os ianomâmis, o percentual supera 80%. Meninas e meninos indígenas têm mais de duas vezes mais risco de morrer antes de completar 1 ano do que as outras crianças brasileiras.
Além disso, o controle social, tão importante para trazer para dentro do Estado as vozes dos grupos populacionais mais afetados pela insegurança alimentar, foi silenciado com a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Uma experiência bem sucedida que deu visibilidade internacional ao Brasil.
Para os próximos governantes caberá o esforço da reconstrução. Caberá, ainda, o enfrentamento dos desafios postos. Provavelmente o mais grave deles é a associação perversa de três pandemias cujos efeitos nefastos se potencializam. As pandemias de obesidade e de fome associadas às consequências do aquecimento global ameaçam a segurança alimentar e nutricional da população do Brasil e do mundo. Combinadas, as complexas interações dessas crises geram uma sindemia de proporções globais. O conceito de sindemia aponta que as três pandemias – obesidade, desnutrição e mudanças climáticas – interagem umas com as outras, compartilham determinantes e, portanto, exercem uma influência mútua em suas consequências para a sociedade. Suas causas passam pelos interesses dos grandes conglomerados econômicos e financeiros que orientam o modelo hegemônico do sistema agroalimentar global, pela falta de vontade das lideranças políticas e pelos desafios enfrentados pela sociedade civil organizada devido ao estreitamente cada vez maior dos espaços democráticos. Fome, obesidade e crise climática precisam ser enfrentadas de maneira urgente e coordenada, pois possuem determinantes comuns.
O Brasil reúne as condições necessárias para enfrentar a sindemia e assegurar uma alimentação adequada e saudável para toda sua população. Para tal, é preciso vontade de fazê-lo, resgatar as experiências e atualizar as estratégias a partir do que realizamos e aprendemos.
Nathalie Beghin, coordenadora da assessoria política do Inesc.
Elisabetta Recine, coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição e professora do Departamento de Nutrição da Universidade de Brasília.
Janine Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec.
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