
Fontes: CTXT (Imagem: PEDRIPOL)
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Friedman impôs que para reduzir a inflação é necessário reduzir a quantidade de dinheiro disponível. As autoridades monetárias sabem que isso nem sempre funciona, mas cresceram com um credo e não há quem os tire de lá.
Os bancos centrais estão sem sorte. Nos momentos mais difíceis, não acertam muito bem o alvo, ainda que tenham poder absoluto em sua esfera de competência. Ninguém lhes conta nada. Refiro-me especialmente ao Banco Central Europeu. Sua atuação durante a crise financeira internacional ou Grande Recessão, como queiram chamar, não poderia ter sido mais errática, senão inoportuna. Somente no momento em que os desastres ameaçaram acabar com o euro, ele agiu in extremis para evitá-lo. Claro, deixando um rastro de vítimas nos países periféricos da zona do euro devido a uma austeridade imposta pelo BCE e pela Comissão Europeia.
Agora, quando uma inflação totalmente inesperada é desencadeada, a autoridade encarregada de evitá-la, o BCE no caso da Zona do Euro, volta a responder com receitas que parecem mais prejudicar do que remediar. Isso também acontece nos Estados Unidos com o Federal Reserve e em outros lugares.
Seguem o mandato que o neoliberal Milton Friedman continua impondo do além: é preciso reduzir a quantidade de dinheiro disponível para reduzir a demanda, ou seja, a propensão a comprar, que é o que faz os preços subirem. E isso é feito aumentando os juros que o BCE, ou qualquer outro banco central, cobra dos bancos quando eles tiram dinheiro de lá. E não há outro. Oito meses se passaram desde que o BCE iniciou a alta e a inflação mal baixou. Os preços aumentaram na época na zona do euro em 8,9% ao ano. O núcleo da inflação, que não contabiliza energia ou alimentos crus, sobe a cada mês. É em teoria o que mais preocupa o BCE.
O motor da inflação começou quase um ano antes de a Rússia começar a invasão da Ucrânia.
Foi assim que nasceu a inflação de hoje: seu motor foi ligado quase um ano antes de a Rússia começar a invasão da Ucrânia. O petróleo custou três vezes mais em janeiro de 2021 do que em meados do ano anterior, e ainda faltavam 13 meses para o início do ataque russo. O gás natural aumentou em oito meses de 2021 mais que o dobro de seu preço. E a guerra estava a quatro meses de distância. Nesse mesmo período, o trigo havia subido 30% no mercado internacional. Claro. Todas essas matérias-primas essenciais estavam em pleno andamento e continuaram a fazê-lo em meio aos bombardeios. Podemos chamar isso de primeira rodada inflacionária, da qual poderiam se beneficiar aqueles que operavam naqueles mercados: grandes investidores ou grandes corporações.
Veio então o seguinte efeito: o repasse para o consumo dos cidadãos, aumentando a margem comercial e, portanto, a margem de lucro das empresas. O resto dos preços disparou. Mesmo descontando a energia, a inflação não só não caiu desde que o BCE começou a aumentar as taxas de juros, como na verdade subiu. Na zona do euro como um todo, subiu 5,0% ao ano, antes do início do aumento da taxa, agora é de 7,8%.
Em 2022 não houve aumento significativo da demanda em termos reais
A receita de Christine Lagarde e companhia poderia ser válida se de fato a escalada de preços se devesse principalmente ao aumento da demanda. No entanto, em 2022, ano em que estourou a inflação, não houve aumento significativo da demanda em termos reais, ou seja, sem levar em conta a inflação, o que obviamente aumentaria o consumo mais do que o esperado.
A oferta monetária, em termos técnicos o M3, é utilizada pelos monetaristas para verificar se há dinheiro demais nas mãos do público ou não. Se o dinheiro crescer excessivamente, pode significar que a inflação se deve ao aumento da demanda. Assim o entendem todos os neoliberais, que mandam no BCE, na Reserva Federal e outros. É o termômetro que explicaria por que há inflação e o caminho para detê-la: aumentar a taxa de juros, o que significa que há menos dinheiro na rua. Bem, quando o BCE decidiu aumentar a taxa de juros, em 27 de julho do ano passado, a oferta de moeda, o M3, estava em seu nível mais baixo em 28 meses.
Existem outros dados que indicam claramente que os preços não estão subindo vertiginosamente porque há muita demanda.
Em 2022, o rendimento disponível das famílias, o dinheiro que efetivamente possuíam, aumentou apenas 3,6% e a inflação média para todo o ano foi de 8,4%, embora tenha moderado gradualmente. A consequência é que os indivíduos não receberam o dinheiro que ganhavam, já que os gastos que as famílias tiveram que fazer aumentaram 11,5%. Não é que tenham desperdiçado, é que esse percentual se explica pelo aumento dos preços. Por esta razão, a sua poupança caiu para o nível mais baixo desde 2019. A remuneração de todos os trabalhadores subiu no ano passado para 5,8%. Esse percentual aumentou porque havia mais pessoas com empregos, mas o salário por funcionário cresceu apenas 2,7%. De acordo com as estatísticas dos acordos
coletivos.
Isso não aconteceu com todos. As empresas viram seus lucros crescerem 15% em relação ao ano anterior. Recordemos, os empregadores da CEOE levantaram um grito ao céu e o seu presidente, Antonio Garamendi, recusou-se a assinar um aumento de 80 euros ao salário mínimo até o deixar em 1.080, enquanto o seu salário era de 400.000 euros.
As empresas se beneficiaram com o aumento desproporcional dos preços
Isso explica duas coisas. A primeira, a demanda, a propensão a consumir, não parece ser a causa da inflação desta vez. E em segundo lugar, as empresas ganharam muito, seus lucros cresceram claramente acima do progresso da economia e, claro, dos salários. A explicação é que eles se beneficiaram da alta desproporcional dos preços, elevando a margem comercial, em detrimento dos consumidores.
Agora, ao castigo de pagarem preços elevados pelos produtos que têm de comprar, muitos deles sofrem uma dupla penalização: o aumento das suas prestações para pagar a casa hipotecada em resultado da receita do BCE para baixar preços. São cinco milhões de lares nessa situação, cuja propriedade pode perceber que subiu um pico. Suponha que uma hipoteca de 150.000 euros seja paga em 15 anos. A alteração da mensalidade pode significar o pagamento de 148 euros a mais, caso a hipoteca seja a juros variáveis.
O economista e escritor José Luis Sampedro é autor de um livro que posteriormente atualizou com o também economista Carlos Berzosa. É de anos atrás. Intitula-se Inflação ao alcance dos ministros. Nela, ele explica como as razões para o aumento excessivo dos preços podem ser muitas e não necessariamente devidas ao aumento da demanda, como impuseram os neoliberais monetaristas de Friedman há mais de 50 anos. E aí segue o dogma. Os bancos centrais continuam a aplicar a sua receita sem mais delongas. Sampedro lembra que muitas vezes o lucro das empresas está por trás da escalada de preços. Agora mais do que em outros tempos, porque o poder dos oligopólios e das grandes empresas é muito maior. Outro motivo apontado por ele é a "inflação importada", devido ao aumento dos produtos energéticos e outras matérias-primas. Ele chama ambas as coisas de inflação capitalista. Agora diríamos que são preços nascidos de mercados especulativos internacionais, como petróleo ou gás natural,
Segundo a Reuters, uma equipe de 26 economistas do BCE realizou um retiro tranquilo e seguro, muito frio, em uma pequena cidade da Finlândia durante a última semana de fevereiro. O objetivo era isolar-se para elaborar propostas sobre a política monetária que a diretoria do banco emissor tinha que acordar. A ideia que prevalecia ali não coincidia com a linha seguida pelo BCE de combate à inflação. Eles concluíram que as margens das empresas aumentaram às custas dos consumidores e assalariados. Desde então, o Conselho do BCE reuniu-se uma vez e voltou a aumentar as taxas de juro.
Não é que as autoridades monetárias não saibam dessas coisas. É simplesmente que eles cresceram com um credo, neoliberalismo e ortodoxia monetarista, e não há ninguém para tirá-los daí. Dogma é dogma.
Emílio de la Pena. É jornalista especializado em economia. @Emiliodelape
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