EXCLUSIVO Spoofing: novos chats. Deltan distorce decisão da Suíça, e ilegalidade vira boa notícia.
Por Leandro Demori e Jamil Chade
No dia 20 de janeiro de 2016, o então procurador suíço Stefan Lenz enviou uma mensagem por telefone aos procuradores brasileiros da Operação Lava Jato. Uma delas era “positiva”, segundo ele a descreveu: Lenz contava aos brasileiros sobre o descobrimento de uma nova conta bancária envolvendo a investigação sobre propinas que teriam ido parar na Suíça. Em seguida, no entanto, ele alertou: “temos algumas más notícias”.
A má notícia era a decisão – na Justiça daquele país – de que o envio de documentos que os suíços vinham fazendo para a Lava Jato era, nas palavras do próprio procurador Lenz, “ilegal”.
Com aquela informação em mãos, Deltan Dallagnol montou uma operação midiática no Brasil para distorcer a decisão da Justiça suíça – com ajuda da imprensa, ele a transformaria em notícia positiva para a operação. O plano foi arquitetado pelo ex-procurador e pela equipe da Lava Jato, junto com Stefan Lenz.
Os chats fazem parte dos arquivos aprendidos pela Polícia Federal durante a operação Spoofing, que investigou o hackeamento de procuradores e também do ex-juiz Sergio Moro. Parte dessas conversas foram entregues ao Intercept Brasil e publicadas na série Vaza Jato em 2019. Os diálogos que você lerá a seguir são inéditos e publicados por A Grande Guerra em parceria com o UOL e com o ICL Notícias.
Stefan Lenz, 20 de janeiro de 2016:
Lenz - 14:00:04: Más notícias primeiro: O tribunal declarou a transferência de documentos bancários junto com minha solicitação de Assistência Legal Mútua à Odebrecht como desproporcional e, portanto, ilegal. A consequência para nós: temos que proferir uma decisão em questões de Assistência para dar a eles a possibilidade de recorrer. A consequência para vocês: nenhuma no momento e provavelmente nenhuma no futuro, já que o tribunal se recusou a solicitar formalmente ao Brasil que não usasse os documentos em suas próprias investigações.
Ao contrário dos diálogos, o envio havia sido feito pelos canais oficiais. Mas a Odebrecht entrou com um recurso e conseguiu frear seu uso por alguns meses. Segundo a decisão da corte suíça, o Ministério Público local teria de dar a possibilidade para que a Odebrecht recorresse da decisão antes de decidir se era legal.
Os procuradores Deltan Dallagnol (esq.), Eduardo Pellela e Orlando Martello (dir.) na Suíça (Foto: Reprodução/TV Globo)
“Vai soar como uma bomba aqui... “
A Justiça suíça daria, mais tarde, ganho de causa para o envio dos extratos, no que foi o momento divisor de águas na Operação Lava Jato. Isso, no entanto, só ocorreu no dia 5 de outubro de 2016, com a autorização para o uso dos dados finalmente ocorrendo nos primeiros dias de novembro daquele ano – 11 meses depois.
Nas conversas, a Lava Jato explora com os suíços duas possibilidades: tentar inverter o entendimento da má notícia no Brasil, usando a imprensa para fazê-la soar como positiva; ou pensar em um modo de "legalizar" os documentos recebidos.
Deltan Dallagnol começa a ensaiar como seria divulgada a decisão:
Deltan - 14:10:00: Stefan, a má notícia vai soar como uma bomba aqui... Gostaríamos de estar preparados para colocar os fatos sob a perspectiva correta para a imprensa, quando esse assunto vier a público (provavelmente hoje ou amanhã, eu acho). Você poderia compartilhar conosco o raciocínio ou a decisão, ou a própria decisão? Depois disso, outra pergunta independente da primeira: poderíamos revelar publicamente os termos da decisão, na medida em que isso seja necessário para esclarecer o que aconteceu?
Em seguida, Deltan sugere um modo de esquentar a documentação:
“Eles dirão que tudo é fruto de uma árvore envenenada, e é provável que o tribunal aqui aceite essa teoria... talvez pudéssemos ter outra teoria sobre a mesa: descoberta inevitável, se os documentos viessem de qualquer outra maneira... apenas um brainstorming aqui”
Stefan Lenz pediu um tempo para discutir o assunto com o Escritório de Justiça Federal da Suíça. Mas garantiu que "a solicitação em si, com todas as informações nela contidas, foi declarada absolutamente legal".
Ainda no mesmo dia, Lenz explicou aos brasileiros que sua equipe de comunicação teria um texto pronto para ser divulgado para a imprensa. E pediu de forma clara:
“Encaminhe os jornalistas para a Escritório do Procurador Geral quando eles entrarem em contato com você a respeito dessa decisão. Sua equipe de comunicação será contatada amanhã para coordenar. Entrarei em contato com você amanhã!”.
Instantes depois, seria a vez de um outro procurador brasileiro, identificado apenas como Paulo, expressar mais uma vez a preocupação do grupo da Lava Jato.
“Pessoal, estamos preocupados com essa notícia aqui, mas confiamos que vocês - e nós - podemos encontrar uma boa solução para isso!”
“Vamos minimizar”, respondeu Deltan.
O procurador suíço Stefan Lenz. Depois de receber, por anos, informações pelo Telegram sobre os casos brasileiros, ele pulou de lado no balcão e hoje, segundo o próprio, oferece seu “conhecimento e experiência a todos os réus em casos de crimes de colarinho branco ou vítimas e partes lesadas de tais crimes que dependem de apoio jurídico na Suíça”.
Ao longo da conversa, para além da preocupação em relação à versão que a Odebrecht iria usar, fica claro que havia uma manobra para construir uma narrativa que permitisse à Lava Jato minimizar a derrota e manipular a opinião pública.
No dia 26, Lenz e Deltan voltam a conversar:
Stefan - 12:50:12: Parece que a batalha contra a ODE está começando! Alguma mudança na estratégia de comunicação?Deltan - 14:32:48: Perfeito, Stefan!Deltan - 14:36:49: Estranhamente, eles estão em silêncio. Estamos esperando o movimento deles para fazermos o nosso. Se estiver tudo bem para você, a esta altura, pretendemos minimizar a questão, dizendo que foi uma questão processual de direito interno suíço e que a Suíça entendeu que não se deve pedir às autoridades brasileiras que devolvam os documentos, o que não traz nenhum efeito para o nosso caso. Se eles solicitarem dentro do caso a extração dos documentos, usaremos uma série de argumentos, como a ideia de que a nova decisão suíça (a ser proferida no pedido brasileiro) poderá convalidar a possível ilegalidade processual…
No dia 2 de fevereiro, os procuradores brasileiros informariam aos suíços sobre a decisão dos advogados da Odebrecht de repassar a decisão para a imprensa.
O procurador Paulo, então, avisou a Stefan Lenz que iria "seguir em frente com nossa nota para a imprensa e começar a receber jornalistas para explicar o caso, ok?"
O suíço não gostou e imediatamente rebateu, tentando manter o controle do caso envolvendo a empresa brasileira.
Stefan - 10:08:29: Não foi isso que combinamos Paulo, foi combinado dizer aos jornalistas para entrarem em contato com nossa equipe de imprensa e não fazer nenhum comentário no momento!
Paulo respondeu:
Paulo - 10:15:40: Oh, ok Stefan, que bom que cheguei até você primeiro. Acredito que, no entanto, seria bom falar com a imprensa, pelo menos extraoficialmente. O que você acha disso?
Quem manda são os “Swiss friends”
Deltan entrou mais uma vez no debate e, depois de conversar por telefone com Lenz, relatou a conversa a todos no Telegram. Ele disse que o suíço “gentilmente pediu” que os procuradores brasileiros encaminhassem os pedidos dos jornalistas “também para seu escritório".
Quinze minutos depois, os procuradores brasileiros colocariam no grupo o comunicado de imprensa que tinham elaborado. Na versão construída, não havia qualquer referência às preocupações que os membros da Lava Jato exprimiam nas conversas confidenciais – nem, obviamente, sobre a obtenção de informações por fora dos canais oficiais conforme revelado mais tarde pela Vaza Jato.
Em seu lugar, apenas uma declaração de vitória contra a Odebrecht:
Odebrecht sofre derrota na Justiça suíça
Empresa tentava impedir o Ministério Público Federal de usar provas suíças que demonstram que pagou propinas a funcionários da PetrobrasA empresa Odebrecht, por meio de uma das offshores que controla no exterior, recorreu, na Suíça, contra a remessa de documentos bancários ao Brasil em pedido de cooperação internacional formulado por aquele país. Este pedido objetivava a colaboração das autoridades brasileiras para a apuração conduzida pelo Ministério Público da Suíça, que também investiga aquela empresa e seus funcionários pela prática de corrupção e lavagem de dinheiro. Com o recurso, a Odebrecht almejava impedir o uso, no Brasil, dos documentos bancários suíços que comprovam que ela pagou propinas multimilionárias, mediante depósitos diretamente feitos nas contas controladas por funcionários da Petrobras. Contudo, o Tribunal suíço concedeu à empresa apenas o direito a um recurso interno, tal qual ocorreria caso o pedido de cooperação tivesse partido do Brasil para a Suíça. Com relação ao uso dos documentos já enviados ao Brasil, o Tribunal suíço reconheceu que os documentos não precisam ser devolvidos, o que somente ocorreria caso o recurso a ser apresentado à decisão suíça viesse a ser julgado em favor da Odebrecht. Assim, a decisão não tem qualquer efeito sobre a acusação criminal contra executivos da empresa, amparada em amplas provas de pagamentos de propinas no Brasil e no exterior e do desvio de bilhões de reais dos cofres públicos.
Pouco depois do meio-dia, o procurador Paulo voltou ao Telegram para avisar aos suíços que a notícia já estava na imprensa brasileira. Ele enviou um link do site Conjur, que estampava a seguinte manchete: “Tribunal suíço reconhece que envio de documentos para o Brasil foi ilegal”. Contra o que chamou de notícia “tendenciosa”, o procurador avisou: “então vamos seguir conforme nosso combinado – mandar jornalistas para o seu time de imprensa, soltar nossa nota e começar a falar, ok?”
Lenz apenas desejou: "Boa sorte!"
Oficialmente, a Lava Jato apenas pôde usar os documentos e extratos bancários quase um ano depois daquele comunicado de imprensa em que declarava a "derrota" da Odebrecht.
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