O dilema atual da exploração de petróleo na foz do rio Amazonas traz conflito duplo. Ao mesmo tempo que a proposta envolve continuidade de atividade danosa ao planeta, sua alternativa locacional é das piores imagináveis, em função da vulnerabilidade ecossistêmica
Carlos Bocuhy
Na Suécia, o termo flygskam (vergonha de voo) ganhou força. O volume de emissões de gases efeito estufa (GEE) por passageiro, especialmente em voos de longa distância, levou à rejeição da prática desnecessária de voar.
Desde 2018, jornalistas suecos começaram a escrever sobre sentimentos de vergonha associados a voar devido ao impacto climático. Houve quem não gostasse de enquadrar o voo como uma questão moral. Na Europa muitas pessoas pararam de voar por razões climáticas, em um processo de decisão onde considerações éticas foram cruciais. Este é um exemplo de como a informação pode promover um salto na consciência humana, quando o espírito do tempo (zeitgeist) vem a provocar alterações positivas no comportamento da sociedade.
A pandemia, seguida da tecnologia, acabou por demonstrar a possibilidade, em grande escala, do trabalho em casa e reuniões à distância, como alternativas viáveis para a redução de deslocamentos para evitar emissões. Essa percepção foi dolorosa para os aficionados em viagens, mas enquanto as máquinas voadoras não forem adaptadas à energia limpa não haverá como escapar desse dilema ético.
As recentes ondas de calor e seus impactos acima do esperado aumentam a pressão do conflito ético referente à responsabilidade individual sobre emissões de GEE. Também há conflitos éticos para tomadores de decisão que, ao defender ciclos imediatistas da exploração de combustíveis fósseis, contribuem para a destruição de ecossistemas, biodiversidade e vidas humanas, reduzindo de forma significativa a qualidade de vida das atuais e futuras gerações.
Uma boa forma de averiguar a extensão dos danos é a leitura de “Postcards From a World on Fire“, do New York Times, que traz “193 histórias de diferentes países mostrando como as mudanças climáticas estão remodelando a realidade em todos os lugares, desde recifes de coral moribundos em Fiji até oásis desaparecendo no Marrocos e muito, muito além…”, incluindo a destruição de vidas humanas. Depois da leitura, a melhor palavra para definir o dilema ético sobre emissões é, sem dúvida, o constrangimento moral subjacente à prática de atos lesivos à vida.
“Reconhecer o tamanho das emissões geradas pelo voo e perceber a gravidade da crise climática é um pré-requisito para a existência da vergonha do voo. Uma viagem de ida e volta de Estocolmo à Tailândia cria um impacto climático correspondente a duas toneladas de dióxido de carbono”, escrevem Nina Wormbs e Maria Wolrath Södemberg no Independent.
A situação é grave e é preciso ir ao cerne da questão, mostrando o quão transformador o dilema será na vida de cada um de nós. Em tempos de emergência climática há de se refletir sobre os motivos de ter ou não vergonha por poluir, decorrente da falta ou não de ética para com a vida.
Para os mais sensíveis, segundo a Associação Americana de Psiquiatria, os consultórios e divãs identificam expressivo sentimento de culpa. Pesquisa da Science Direct entrevistou 10 mil jovens de 16 a 25 anos em dez países, incluindo o Brasil, concluindo que 59% dos entrevistados se mostraram muito ou extremamente preocupados com as mudanças climáticas, e mais da metade relatou sentir tristeza, ansiedade, raiva, impotência e culpa sobre essas questões.
A pesquisa é reveladora com relação aos tomadores de decisão. Demonstra que “61% dos jovens percebem que os governos têm sido irresponsáveis para lidar com as alterações do clima, não protegendo o planeta, a geração atual ou as futuras”. Além disso, “muitos admitiram um alto número de sensações de ansiedade e angústia relacionadas com as respostas inadequadas do governo de seus países. Cerca de 75% dos entrevistados veem o futuro como assustador, e mais de 45% consideram que seus sentimentos sobre as mudanças climáticas afetam negativamente sua vida diária”. Obviamente, com os eventos extremos do ano de 2023, esses sentimentos estarão à flor da pele.
No entanto, a percepção da sociedade contrasta com a realidade do business as usual. As corporações que exploram combustíveis fósseis têm recuado nos compromissos climáticos e sinalizado a continuidade do lucro enquanto for possível; e vêm procrastinando metas de sustentabilidade e promessas sacralizadas em acordos internacionais, independentemente dos efeitos nocivos que estejam provocando. Para amenizar, a simulação se arrasta na defesa da transição lenta, com o jargão “o mundo não está pronto para abandonar o petróleo”. Ou seja, a depender do setor, que continua movido a altos lucros e subsídios, os impactos deverão se arrastar pelo maior tempo possível.
Para o Brasil, o dilema atual da exploração de petróleo na foz do rio Amazonas traz conflito duplo. Ao mesmo tempo que a proposta envolve continuidade de atividade danosa ao planeta, sua alternativa locacional é das piores imagináveis, em função da vulnerabilidade ecossistêmica.
As notícias atuais sobre possível edição de parecer da Advocacia Geral da União (AGU), na tentativa de anular a competência constitucional do Ibama para licenciar, representará a reedição da velha tática parecer-canetada, usada para passar a boiada no governo anterior. Só irá piorar o problema, agregando desgaste político com a vergonhosa busca de brechas na burocracia estatal para promover facilitações setoriais ao setor de exploração fóssil.
Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), os novos projetos de combustíveis fósseis desde 2021 não são compatíveis com as metas de atingir emissões líquidas zero até 2050, o que manteria o planeta na temperatura tida como “segura” segundo o Acordo de Paris.
Vale ressaltar que, depois das ondas de calor de 2023, com aproximadamente 1,2 °C de aquecimento global médio, há de se repensar a relação entre a média do aquecimento previsto em + 1,5 °C conforme proposta pelo Acordo de Paris, tido como “seguro”, e os efeitos climáticos cuja conta parece ter sido subdimensionada.
Segundo a cientista atmosférica Katharine Hayhoe, principal autora de várias Avaliações Climáticas Nacionais dos Estados Unidos e cientista-chefe da Nature Conservancy, estávamos “sistematicamente subestimando a taxa e a magnitude dos extremos”. Mesmo que o aumento da temperatura seja limitado a dois graus (para o ano de 2100), disse ela, “os extremos podem ser o que você projetaria para quatro a cinco”.
As companhias de petróleo certamente não estão sintonizadas com essa realidade e não apresentam constrangimento por continuar a extrair. As declarações atuais do coordenador da cúpula climática COP28, que ocorrerá em Dubai em novembro, o executivo da megaempresa petrolífera ADNOC, apontam para aumentar a extração apostando em tecnologias de captura de carbono ainda inexistentes. O fato é considerado um escândalo por Christiana Figueres, responsável pela área climática das Nações Unidas.
O ciclo econômico fugaz dos combustíveis fósseis nada mais é que contabilidade mesquinha atraente. Não há preço que apague o conflito ético inerente aos seus malefícios. O deslumbramento com royalties, commodities e demais velhos componentes do mito de Midas continua a brilhar, mas não pode esconder o constrangimento ético que seu uso provoca.
Por outro lado, a contenção dos efeitos das mudanças climáticas não poderá contar apenas com apelos humanitários. Deve ensejar medidas compatíveis, do ponto de vista econômico e legal, para fazer cessar o universo inaceitável de perdas e danos lançados sobre a sociedade humana, espécies vivas e ecossistemas vitais.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
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