quarta-feira, 27 de março de 2024

CONCENTRAÇÃO DE CAPITAL - A absorção da política pelo capital e a atualização da agenda de esquerda

O Occupy Wall Street foi um dos marcos da confrontação direta aos grandes proprietários do capital. Contudo, esse embrião anti-capitalista foi sendo abortado na última década, seja pela reação ultraconservadora, seja pelo “transformismo” (Foto: Aaron Bauer/Flickr)

O poder político dos oligopólios financeiros se traduz, por fim, na própria redução do Estado a uma dimensão empresarial, em que o direito público perde sua validade operativa, em favor do direito privado

João Roberto Lopes Pinto

No atual estágio da acumulação capitalista, se dissolve a suposta fronteira entre economia e política. Forjada pela ordem liberal, que manteve até aqui o mundo do capital à salvo da luta política, ela desloca-se para o âmbito do Estado. Hoje, diante dos elevados níveis de concentração e centralização dos capitais, bem como do domínio financeiro sobre a dinâmica capitalista, a natureza política do poder econômico se torna cada vez mais explícita. Neste cenário, as classes que vivem do trabalho estão desafiadas a confrontarem, diretamente, as classes proprietárias.

A marxista norte-americana Ellen Wood, nos ensina como, no desenvolvimento inicial do capitalismo, diferentemente do que acontecia nas formas pré-capitalistas de produção, o poder econômico das classes proprietárias já não dependia do status “extra-econômico” dos poderes jurídico, político e militar do senhorio. O monopólio da política já não era indispensável à elite proprietária. Nos termos da autora, “o capitalismo tem a capacidade única de manter a propriedade privada e o poder de extração de excedentes sem que o proprietário seja obrigado a brandir o poder político direto no sentido convencional”.

Daí a origem da pretensa separação entre economia e política, entre a posição de classe e a condição cívica, colocando a economia à salvo da política e ensejando a democracia liberal. Nela, reinaria o sufrágio universal e a igualdade civil, incapazes, portanto, de incidir sobre a desigualdade de classe. A igualdade política na democracia capitalista não somente coexiste com a desigualdade socioeconômica, mas a deixa fundamentalmente intacta.

Na verdade, a ideia de que a economia estaria dissociada da política está sustentada pelos próprios fundamentos jurídicos do Estado capitalista, nos termos de Pachukanis. Isto é, através da naturalização do direito à propriedade privada e igualdade jurídica, a igualdade perante a lei é o pressuposto da livre circulação e contratação da mercadoria trabalho. Neste sentido, as igualdades política e jurídica não deixam apenas a desigualdade de classes intacta, mas são o seu próprio motor.

É justamente a cisão forjada entre economia e política – assim como entre privado e público, mercado e Estado – que salvaguardava, em boa medida, o capitalista de ser alvo da contestação social, que hoje cai por terra. Na verdade, vivemos a culminação de um processo que se inicia no último quarto do século passado, marcado pela crise do modelo do Estado de Bem-Estar Social, no contexto da globalização dos mercados e do fim da experiência do “socialismo real”, no leste europeu. Desde então, assistimos o aprofundamento das desigualdades sociais por toda parte e uma concentração brutal de capitais e de poder político nas mãos de uma oligarquia financeira.

Diante da enorme concentração da propriedade capitalista, seja em termos globais, regionais ou nacionais, a politização do mundo econômico se torna patente sob diferentes formas. O último relatório da Oxfam revela que os cinco homens mais ricos do mundo mais que duplicaram sua riqueza de 2020 a 2023, que se aproxima de 1 trilhão de dólares.

Pela primeira vez, a Oxfam buscou correlacionar riqueza concentrada com o poder das empresas e monopólios sobre os mercados, demonstrando que o 1% mais rico possui 43% de todos os ativos financeiros globais. Como afirma o relatório, “as grandes empresas impulsionam a desigualdade ao usar seu poder para forçar a redução de salários e direcionar lucros para os super-ricos”. No caso brasileiro, os dados baseados no imposto de renda demonstram que, mesmo no auge distributivo dos governos petistas, o 1% mais rico da população ficou ainda mais rico.

Não por acaso, as democracias liberais têm hoje a sua legitimidade largamente questionada, exatamente pela sua incapacidade congênita de reduzir desigualdades. É fato que a frustração com a democracia liberal tem alimentado saídas autoritárias ou mesmo fascistas, que crescem de forma consistente em diferentes nações. Porém, também é verdade que já se reconhece o quanto tais saídas contam com o explícito apoio e beneplácito de “agentes do mercado”, expondo a natureza autocrática do poder econômico.

A crise da democracia liberal está, por sua vez, diretamente associada à atuação de oligopólios financeiros, que exercem o controle direto de “aparelhos econômicos” do Estado, usufruindo do monopólio político sobre a regulação do mercado e do fundo público. Tal monopólio se traduz no veto a toda e qualquer política de natureza distributiva. Como nos exemplos brasileiros do poder exercido pelas maiores instituições financeiras – Associação Brasileira das Entidades do Mercado Financeiro e de Capitais (ANBIMA), Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e presidência do Banco Central (BACEN) –, algo que não é de hoje, mas, agora é consumado com a “autonomia” do BACEN.

Há de se considerar, ainda, que a subordinação da dinâmica produtiva aos processos de valorização financeira, no contexto de superacumulação, leva as oligarquias financeiras a buscarem novos espaços de revalorização em serviços sociais essenciais, tradicionalmente providos pelo Estado (saúde, educação, saneamento, meio ambiente e previdência). Os exemplos aqui são múltiplos e variados, mas atentemos a um:

Três dias antes do leilão da Companhia Estadual de Água e Esgoto (CEDAE) do estado do Rio de Janeiro, ocorrido em abril de 2021, o Grupo Itaú comprou 13% do capital da AEGEA, controladora da Águas do Rio, maior vencedora do leilão. A Águas do Rio já é, em pouco mais de dois anos de concessão, a campeã em reclamações pelos usuários do serviço, por diferentes formas de abuso econômico. Vale notar, também, que a controladora AEGEA é responsável pelo serviço de saneamento para mais de 30 milhões de pessoas em todo o País, o que confere à empresa uma responsabilidade pública evidente.

A atual configuração do capital oligopolista, particularmente na sua forma “grupo econômico”, imprime enorme alcance e complexidade sobre a atuação burguesa e sua relação com a “sociedade política” e “sociedade civil”. Do ponto de vista organizativo da propriedade e da gestão dos grupos privados, chama atenção a interpenetração e associação de capitais, públicos e privados, assim como domésticos e estrangeiros – além da interligação de corpos diretivos/administrativos, incluindo a burocracia pública, dos chamados interlocking directorates, da verticalização e concentração da propriedade, sob controle de instituições financeiras. Isso implica na separação entre propriedade e gestão, que fica subordinada, assim, a garantir a remuneração crescente dos acionistas.

Essa rede transcorporativa, que se caracteriza pela sua coesão social e convergência ideológica, é capaz de defender e promover os interesses dos grupos econômicos – a “mão visível” do mercado. A complexidade e amplitude da estrutura de propriedade desses grupos, bem como sua submissão à dominação financeira, revelam o quanto a grande propriedade capitalista cumpre, nessa escala, a função política de organizar o domínio da oligarquia financeira sobre a sociedade civil e política.

Exemplos desse poder político dos grupos privados podem ser encontrados também no caso do leilão da CEDAE. De um lado, houve claros indícios de cartelização à medida que três das cinco empresas que participaram do certame tinham entre seus controladores as mesmas instituições. De outro, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), banco 100% estatal, responsável pela modelagem da concessão, detém 11% do capital da IGUÁ, uma das empresas vitoriosas do leilão, um caso indiscutível de “conflito de interesses”, ou melhor, de absorção do “público” pelo “privado”.

Outra dimensão do poder político-organizativo dos grupos privados se refere a sua enorme capacidade de mobilizar recursos para operar diretamente a disseminação político-ideológica, via patrocínio de influenciadores digitais, universidades, escritórios de advocacia, editorias, fundações e que tais. Algo ainda mais facilitado pelo domínio hoje exercido pelas big techs sobre as subjetividades e escolhas pessoais.

Operam uma batalha ideológica que deixaria as intenções da “Revolução Cultural” de Mao Tsé-Tung no chinelo. Caso contrário, como explicar a onipresença e positividade dos discursos em favor do “empreendedorismo”, das “startups”, da “inovação”, do “ESG”, da “educação financeira”, da “governança”, da “resiliência”, da “meritocracia” etc?

O poder político dos oligopólios financeiros se traduz, por fim, na própria redução do Estado a uma dimensão empresarial, em que o direito público perde sua validade operativa, em favor do direito privado, comercial, configurando um “governo empresarial”, nos termos de Dardot e Laval. A “reforma gerencial”, iniciada na Inglaterra nos anos 90 do século passado, que justamente trazia o modelo de gestão empresarial para dentro do Estado, se tornou o padrão hegemônico da gestão pública do Estado capitalista contemporâneo.

Ao mesmo tempo, políticas públicas são desenhadas e operadas segundo a necessidade e o interesse de tais oligopólios, haja visto as privatizações de serviços sociais essenciais, as políticas de “ajuste fiscal”, de restrição dos gastos sociais em favor dos especuladores de títulos públicos e as reformas trabalhistas que normalizam a precariedade. Os exemplos aqui são conhecidos e estão por toda parte, como políticas características das democracias capitalistas.

A formalização do trabalho precário, o fim da “sociedade salarial”, o abandono da seguridade social e a “uberização” do trabalho lançam a classe que vive do trabalho de volta ao século XIX, em condições de máxima exploração. Se, antes, a chamada justiça do trabalho estava voltada a levar para o âmbito do Estado os conflitos inerentes à relação capital e trabalho, atualmente, o caminho é o inverso. Devolve-se ao mercado a responsabilidade de “gerir” esses conflitos, ou melhor, de impor os interesses do capital. Neste contexto, se desnuda a exploração e o poder da classe dos capitalistas sobre a massa de trabalhadores e trabalhadoras.

É certo que assistimos hoje, exatamente pelas diferentes e intensas formas de exploração do trabalho e dominação ideológica, uma dispersão e fragmentação da classe trabalhadora. Porém, também é verdade que a crueza da exploração, sem o biombo protetivo do Estado, expõe o capitalista como opressor. Ao mesmo tempo, como já argumentado, a propriedade capitalista se encontra concentrada em pouquíssimas mãos, que, apesar de escondidas atrás de extensas cadeias de participações e controles, podem e devem ser identificadas.

Embora, estejamos, aparentemente, diante de um dilema – enquanto a classe que vive do trabalho se dispersa, a classe capitalista se concentra –, o argumento aqui é o de chamar a atenção para o quanto a concentração do poder capitalista abre espaço para a sua contestação e o seu enfrentamento. Cabem às forças políticas organizadas ligadas às classes que vivem do trabalho reconhecerem que o poder político se concentra não na classe política e mesmo do judiciário – muito embora sejam seus porta-vozes –, mas nos grandes proprietários, controladores dos grupos privados. O combate direto ao poder dos capitalistas precisa se realizar nos espaços por eles monopolizados.

No caso propriamente do Estado, a luta social deve se dirigir aos “aparelhos econômicos” do Estado, a exemplo dos bancos públicos e do ministério da fazenda. Não podemos nos limitar a reivindicar a participação apenas nas políticas sociais, deixando os órgãos estatais que lidam diretamente com regulação econômica à salvo do controle social. O combate à captura da política fiscal pelos especuladores de títulos públicos e à centralização do capital financeiro via bolsa de valores passam, necessariamente, pela quebra do monopólio político da oligarquia financeira sobre os aparelhos econômicos do Estado.

Ao mesmo tempo, faz-se necessário confrontar direta e pedagogicamente o poder das corporações onde ele se manifesta, mais explicitamente. Por exemplo, corporações privadas que operam concessões públicas devem abrir as suas contas para a população, que, por sua vez, deve exigir que os princípios públicos sejam respeitados pelas concessionárias. Elas não podem se esconder por trás dos contratos de parceria público-privada e da atuação, quase sempre questionável, de agências reguladoras.

Isso implica em ações de pressão e reivindicação da população diretamente sobre os dirigentes e, principalmente, sobre os proprietários das concessionárias. Novamente tomando o caso da AEGEA, principal controladora de concessionárias privadas de saneamento no Brasil, não é admissível que seus dirigentes tenham salários milionários e que seus acionistas recebam dividendos, equivalentes à metade do seu lucro líquido, enquanto o serviço prestado é tido e havido como precário.

Outro espaço, por excelência, do poder político das corporações, são as bolsas de valores, que funcionam como um mecanismo de canalização e centralização de ganhos financeiros para as mãos de alguns poucos e grandes proprietários de ativos. No caso brasileiro, a autorregulação do mercado financeiro, através do convênio ANBIMA e CVM, precisa ser posta em questão, considerando que se trata de uma evidente “captura corporativa”. Qual a legitimidade da ANBIMA, controlada justo pelos oligopólios financeiros, em regular o mercado da bolsa?

O combate direto ao poder das corporações precisa se realizar, igualmente, no campo ideológico. Para além do trabalho educativo das organizações ligadas à luta dos trabalhadores, faz-se necessário “invadir a festa”, dos seminários, audiências, workshops, road shows, innovation weeks, TEDs, MBAs etc., fazendo o contraponto às idealizações, comuns nestes espaços, sobre o ethos empresarial. A disputa no campo das ideias deve se realizar, também, no interior dos espaços em que a ideologia dominante é cultuada sem pudor, a fim de potencializar o contraditório e a sua disseminação na sociedade.

A confrontação direta aos grandes proprietários do capital também não é uma novidade. Em termos globais, o Occupy Wall Street foi um dos marcos, em 2011, no contexto pós-crise financeira de 2008. Contudo, esse embrião de uma luta claramente anti-capitalista foi sendo abortado na última década, seja pela reação ultraconservadora, seja pelo “transformismo” ou pela acomodação cúmplice de setores da esquerda ao domínio político das oligarquias financeiras.

No caso brasileiro, movimentos sociais ensaiaram, em diferentes momentos, a confrontação direta a grandes grupos privados, demonstrando o quanto a politização do poder corporativo é incontornável. Alguns casos se destacam como a ocupação pelo Movimento dos Trabalhos Sem Terra (MST) de fazenda transgênica da Monsanto, em 2008; a obstrução da ferrovia Eldorado-Carajás pelo MST e pelos “Atingidos pela Vale”, no mesmo ano; a ocupação do prédio da construtora Odebrecht, pelo Comitê da Copa e das Olimpíadas, em 2013; e, mais recentemente, a ocupação da Bolsa de Valores de São Paulo pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), para denunciar a fome e o desemprego, em 2021.

A acumulação de capital característica do sistema redunda, no seu atual estágio, no desvelamento do enorme poder político exercido pelos seus maiores proprietários sobre a sociedade civil e política. O rei, no caso o grande proprietário capitalista, está nu. Cada vez mais, ele deverá ser o alvo da contestação social. As formas aqui indicadas desta contestação representam apenas um esboço de uma agenda que consideramos incontornável para a esquerda, sob pena dela se tornar irrelevante.


Agradeço aos valiosos comentários e sugestões dos colegas Rodolfo Noronha, Carlos Fraga e João Sucupira, dispensando-os da responsabilidade pelos argumentos aqui expostos.


Referências

WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra Capitalismo. São Paulo: Editora Boitempo, 2003, p.43.

PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988.

DARDOT, P. e LAVAL, C.. A nova razão do mundo. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.


João Roberto Lopes Pinto é Professor de ciência política da UNIRIO e PUC-Rio e coordenador do Instituto Mais Democracia

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