Cena de "Dias perfeitos" de Wim Wenders/ Divulgação
Por ALEX ROSA COSTA*
“Dias perfeitos” expõe não as fissuras de pequenas belezas cotidianas, mas a rotina como forma de proteção contra o inesperado, o encontro, o outro, a reflexão
Quase todos os comentários e as análises que vi sobre Dias perfeitos enfatizam como o filme acentua a beleza das pequenas coisas do quotidiano, revelando um olhar capaz de perceber aquilo que passa desapercebido pelo olhar corriqueiro. Preciso discordar dessa leitura.
Antes mesmo de assistir ao novo filme de Wim Wanders já sabia do que se tratava. Não quis ler mais do que essa pequena análise supramencionada para deixar que o filme me surpreendesse. E conseguiu. Não posso descartar o papel importante que o olhar para o belo ocultado pela correria tem na obra, tampouco posso negar que se trata de algo importante para nós, acostumados a atropelar as pequenas coisas em nome de sei lá o quê. Contudo, não consigo defender que esse seja o ponto principal do filme.
A narrativa se constrói sobre a repetição dos dias de Hirayama, homem metódico, obsessivo, extremamente organizado, cuja rotina em nada se altera. Em vez de sentir paz naqueles pequenos momentos em que ele observava as árvores e suas sombras, por exemplo, me vinha apenas angústia devido ao sufocamento operado por aquele automatismo.
Até mesmo a observação do belo ordinário estava totalmente condicionada ao ritmo de cumprimento das tarefas. Parece que os analistas não perceberam uma coisa trivial: o momento em que ele pode se encantar – seja com música, seja com as árvores, seja com a dança sem motivo do homem no parque – não rompe de modo algum com o roteiro autoimposto, pois já tem o seu lugar na trama.
Ele coloca a fita no rádio do carro sempre no mesmo lugar e no mesmo horário; seu encantamento com o balançar das árvores apenas se dá quando alguém entra para usar o banheiro enquanto ele está lavando, o que o obriga a esperar do lado de fora ou quando vai almoçar, sempre no mesmo lugar.
Hirayama parece estar aberto a uma beleza que ele já conhece. Concordo que é algo, já é mais do que a maior parte de nós consegue ver, mas isso de modo algum pode me levar a concluir que o filme trata da descoberta da beleza ordinária. Não pode haver descoberta do já conhecido. Ele não está verdadeiramente aberto à descoberta do belo. O belo, para ele, apenas pode aparecer na condição de reafirmar o cronograma, nada além disso. Nem mesmo quando sua sobrinha vem visitá-lo vemos uma alteração em sua rotina metódica. As pequenas belezas continuam lá, iguais.
Nos poucos momentos em que Hirayama vê o belo, revela-se ainda mais sua profunda solidão. Suas interações com os outros são quase inexistentes, marcadas pelo silêncio e pela repetição: come sempre no mesmo lugar, o mesmo prato, a mesma bebida; quase não fala, tampouco interage com aqueles que sempre encontra. Seu silêncio angustia. Não por ele não pronunciar palavras, mas por não agir. Trata-se de uma personagem meramente passiva.
Poucos são os momentos em que ele se protege da interferência violenta alheia, como quando liga para o trabalho declarando que não repetirá a jornada dupla ou quando se recusa a vender suas fitas. Hirayama se contenta a olhar as outras pessoas – um mero olhar de cidade grande, não aquele capaz de transformar o mínimo que seja. Sua fala para a sobrinha, quando esta pergunta sobre sua relação com a irmã é emblemática: cada um vive num mundo.
A fala poderia ser de gigante envergadura transformadora, se pensássemos que, a partir daí, seguiria algo na linha do diálogo como fusão de horizontes, como sugere Hans-Georg Gadamer. Mas não, o sentido dado é o mais ordinário: trata-se apenas de uma impossibilidade de contato, um profundo solipsismo. Como pode haver vida bela na solidão na qual nem mesmo há diálogo consigo?
As músicas escolhidas foram de grande felicidade. Logo no início. “The house of the rising sun” dá o tom o filme. O Japão – a terra do sol nascente – se iguala a New Orleans, à cultura americana individualista que permeia todo o filme. Não podemos ignorar o trecho cantado: “Há uma casa em New Orleans/ Que chamam ‘O Sol Nascente’/ e que foi a ruína de muitos pobres garotos/ e, Deus, sei que sou um deles”.
É sobre isto o filme, sobre a ruína de pobres garotos na esteira de produção das grandes metrópoles, que leva à solidão, ao individualismo, à rotina massacrante, à falta de diálogo e de reflexão. A letra continua: “oh, mãe, diga a suas crianças/ para não fazerem o que eu fiz:/ passar suas vidas no pecado e na miséria/ na Casa do Sol Nascente.” Minha sugestão é que o filme seja lido como um diálogo constante com essa música e que Hirayama em vez de se contrapor à personagem da canção, iguala-se a ela.
Para mim, a cena que amarra toda a trama e que mais legitima minha leitura é o pequeno encontro com a irmã. A sobrinha de Hirayama fugiu de casa e foi passar uns dias com o tio, sem que fique claro o motivo. Afinal, nem poderia ficar: Hirayama não questiona e não se mostra aberto a escutar a menina. Ele a incorpora em sua rotina, tem pequenas conversas com ela, as quais, como já disse, apenas reforçam seu fechamento.
Quando sua irmã, a mãe de Niko, vai buscá-la, ela se refere ao pai convalescente e pergunta se Hirayama irá visitá-lo. Sem dizer uma palavra, ele nega, a abraça e se separam. A partir daí, seu choro sempre contido passa a se mostrar como incontrolável, culminando na cena de fechamento – realmente digna de Oscar – na qual ele dirige num grande esforço para conter suas emoções.
Com a irmã, conhecemos aquilo que não pode ser ocultado pelos olhares contemplativos em direção às árvores. Vemos que Hirayama foge de seus problemas com uma obstinação equiparável à sua rigidez cotidiana. Trata-se de um homem excessivamente triste, que escapa de todas as suas relações. Sem amigos, sem família, Hirayama retrata perfeitamente o que é viver na maior metrópole já vista na história e, ainda assim, ou por isso, ser solitário.
Dias perfeitos expõe não as fissuras de pequenas belezas cotidianas, mas a rotina como forma de proteção contra o inesperado, o encontro, o outro, a reflexão. Hirayama oculta de si tudo que lhe incomoda, tudo o que pode colocar em perigo sua perfeita rotina. Per-feita porque completamente feita; per-feita porque fechada ao novo, presa ao mais do mesmo – à eterna repetição mecânica, sufocante, mas tranquilizadora.
*Alex Rosa Costa é doutorando em filosofia na UFABC.ReferênciaDias perfeitos (Perfect Days).Japão, 2023, 123 minutos.Direção: Wim Wenders.Roteiro: Takuma Takasaki, Wim Wenders.Direção de Fotografia: Franz Lustig.Elenco: Kōji Yakusho, Min Tanaka, Arisa Nakano, Tokio Emoto.Veja neste link todos artigos de
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