A primeira vez que um funcionário do Ministério Público do Rio de Janeiro esteve atrás de Fabrício Queiroz foi em 29 de novembro de 2018, uma semana antes da reportagem do Estadão. O oficial foi procurá-lo em um endereço no bairro da Praça Seca, também na Zona Oeste, para lhe entregar uma notificação: Queiroz estava sendo convocado a prestar um depoimento no dia 4 de dezembro de 2018.
No local, um prédio de classe média com alguns blocos, o funcionário do MP-RJ deu de cara com Débora Melo de Queiroz, ex-mulher e mãe de três filhas do policial. Ela se prontificou a receber o documento, mas informou que o ex-companheiro não morava mais ali. À mão, o oficial anotou a justificativa de Débora: “Se mudou para Curicica, em endereço que não soube precisar”.
Situado na Zona Oeste, Curicica é controlado por milicianos, como outros bairros da região, e tido como área de domínio de “Orlando da Curicica”, preso na Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Ele chegou a ser investigado pela morte da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em 2018, mas essa hipótese foi posteriormente descartada.
A notificação foi então feita pelo funcionário por telefone. Débora também avisou Queiroz do contato do MP. Após esse episódio, ela, como os outros parentes dele, não foi mais encontrada por muito tempo.
Queiroz então saiu em busca de um advogado. Recorreu primeiro a Cezar Augusto Tanner de Lima Alves, ex-corregedor da PM, que foi logo avisando que a notificação era referente a alguma coisa envolvendo a Alerj e gente com foro privilegiado. Devia, pois, atingir Flávio, porque o documento vinha do Grupo de Atribuição Originária do MP, que investiga crimes do governador e dos deputados. No MP, o defensor deu como endereço de Queiroz um apartamento na Freguesia, onde moravam duas de suas filhas. No mesmo momento, o advogado pediu que aquele depoimento fosse adiado e também solicitou cópia dos autos e um esclarecimento: seu cliente era testemunha ou investigado?
Para adiar o
depoimento, Tanner ainda alegou ter outros compromissos, como uma audiência
previamente marcada, o que o impediria de acompanhar Queiroz. O MP concordou e
agendou nova data: 6 de dezembro. Tanner não mencionou nenhum problema de saúde
que impedisse o policial de falar aos procuradores.
O policial então foi ao médico com o velho plano de descolar um atestado para justificar a ausência. Em meio à bateria de testes, Queiroz fez um exame de sangue, o PSA, sigla para prostate-specific antigens, ou antígenos específicos da próstata. Ele ajuda no diagnóstico de câncer de próstata, mas também de outros cânceres. O resultado acusou uma irregularidade.
Então o Estadão publicou a tal reportagem e a vida de Queiroz e de sua família se tornou um caos. As cobranças passaram a surgir de todos os lados.
UMA DESAVISADA DANIELLE NÓBREGA enviou uma mensagem para Queiroz às 15h24 daquele 6 de dezembro. Era um dos dias mais difíceis da vida do policial, mas ela parecia desconhecer os acontecimentos, capaz de nem ter visto fotos de Queiroz na televisão.
“Boa tarde meu amigo. Depois lembra de passar a senha por favor. Outra coisa. Você sabe quando vai entrar o pagamento?
Beijo.”
“Ainda não caiu?”
“Entrou isso no final de novembro”, respondeu Danielle.
Em seguida, enviou uma imagem de um pedaço do contracheque com o valor de 2 510,22 reais. E acrescentou a data do depósito:
“Dia 30/11”.
“Então você foi para exonerada.”
“Ahhh me tira de lá. Tem como?”
“Sério. Tá havendo problemas. Cuidado com que vai falar no celular.”
“Eu sei. Mas há a possibilidade de receber álibi ajnfa (sic)? Algo?”
“Não.”
“Meu Deus.”
Queiroz então
explica a origem dos “problemas”, enviando para ela uma foto com a matéria de
Serapião, publicada naquele dia, sobre a movimentação atípica na conta dele.
Danielle, enfim, compreende o que está acontecendo.
“Não estava sabendo de nada. Mas você acha que eu volto?”
“Pode ser que sim.”
Danielle estava preocupada com o dinheiro que fora cortado, mas não podia imaginar que aquele seria o menor de seus problemas naquele momento. Dali a poucos dias todos saberiam de sua situação como assessora-fantasma no gabinete de Flávio.
Desde dezembro de 2018, tanto os promotores fluminenses que investigavam o assassinato de Marielle Franco quanto o grupo que estava atrás do caso da rachadinha já sabiam que Flávio Bolsonaro havia nomeado a ex-mulher e a mãe de Adriano da Nóbrega, Raimunda Veras Magalhães, para seu gabinete. Mas era uma operação sigilosa. Em 28 de dezembro de 2018, a Divisão de Laboratório de Combate à Lavagem de Dinheiro e à Corrupção produziu um relatório detalhado sobre Raimunda e Danielle.
Ao longo de 21 páginas, duas analistas do MP do Rio discorreram sobre quem eram as duas mulheres. Dados pessoais, endereços, locais onde trabalharam durante o período em que constaram como assessoras de Flávio, relações de parentesco e amizade. O documento incluiu até dados de redes sociais e a proximidade de alguns parentes com familiares do major Ronald Pereira, outro integrante do grupo de matadores conhecido como Escritório do Crime e um dos líderes de uma milícia que dominava a comunidade de Rio das Pedras, na Zona Oeste, mas ainda não era conhecida da população em geral. Por fim, um esquema explicitava as relações pessoais e financeiras das duas. No centro, Adriano da Nóbrega e, ao lado, no alto, Fabrício Queiroz. Todas as peças do quebra-cabeça iam se encaixando e deixando cada um dos envolvidos com menos margem de explicações no futuro.
DEPOIS DE UMA SEMANA de denúncias diárias no noticiário, Jair Bolsonaro orientou Flávio a pedir ajuda a Paulo Marinho, seu suplente na chapa recém-eleita para o Senado. O empresário carioca sempre fora muito próximo do advogado Gustavo Bebianno, coordenador da campanha presidencial, e já havia tirado o presidente de outros apuros jurídicos. Marinho costuma contar que ele e Bebianno, morto em março de 2020, foram os primeiros a acreditar nas chances do capitão e a sondar empresários, economistas e pessoas do mundo jurídico para apoiar a campanha. A proximidade com o clã foi tanta que a casa de Marinho, no Jardim Botânico, passou a funcionar como um QG da campanha. Bolsonaro usou o espaço para receber aliados e gravar seus programas de tevê.
Mas quem convive no entorno de Jair Bolsonaro sabe que entre o clã impera a desconfiança. Em certo momento, sobretudo a partir de constantes reclamações de Carlos nos ouvidos do pai, Marinho e Bebianno começaram a virar alvo. Mesmo assim, como Marinho já tinha ajudado Jair Bolsonaro a arrumar um advogado para cuidar de um processo por racismo no STF, Flávio decidiu se socorrer com o empresário, e na tarde de 12 de dezembro de 2018 lhe telefonou. Os Bolsonaro queriam um advogado de referência que não custasse nada aos bolsos da família. Alguém que atuasse pro bono. O próprio Flávio admitiu que estava fazendo contato com Marinho porque “não teria recurso para pagar o advogado”.1 Ele morava num apartamento de 3 milhões de reais, tinha uma loja de chocolates, salário de 25 mil reais na Alerj, fora os vencimentos de sua mulher, a dentista Fernanda Bolsonaro. Mas não tinha condições de arcar com a despesa de um advogado.
No telefonema, Flávio pediu para encontrar o interlocutor.2 Na sequência, transcrevo os diálogos conforme o empresário descreveu, detalhadamente, dois anos mais tarde, quando denunciou o caso ao Ministério Público Federal: “Meu pai pediu para que eu lhe procurasse, para que você me ajudasse numa questão jurídica, eu tô precisando de um advogado. E eu gostaria de te encontrar amanhã, você pode?”
“Posso. Que horas você gostaria?”
“Você pode me receber amanhã às 8h30?”
Na manhã seguinte, o advogado Christiano Fragoso chegou cedo, às oito horas da manhã, na casa de Marinho. Meia hora depois o carro de Flávio Bolsonaro estacionou. O senador vinha com o advogado e amigo Victor Granado Alves, o mesmo que o acompanhara ao condomínio de Bolsonaro no dia da notícia sobre a conta de Queiroz. O anfitrião e os três visitantes se acomodaram ao redor de uma mesa no escritório. Fragoso ficou de frente para Granado, Marinho ficou de frente para Flávio.
Feitas as apresentações, o senador eleito expôs o motivo daquele encontro: “Olha, eu tô muito preocupado, porque o Victor procurou o Queiroz. E nós estamos muito preocupados com a loucura que o Queiroz fez, essa traição que o Queiroz fez, e eu estou muito preocupado com as consequências desse fato do Queiroz em relação ao governo do meu pai, que ainda nem começou”. Marinho diz que, ao falar do pai, o parlamentar se emocionou e seus olhos começaram a lacrimejar.
“Flávio, calma, você está aqui com um grande advogado. Você não tem culpa, conforme você está me dizendo, isso aí foi o Queiroz que traiu a tua confiança. Você tá me dizendo aqui que você não tem nenhum envolvimento com isso, com os fatos. Então fica tranquilo, não fica desse jeito, não é bom. Isso não ajuda”, argumentou Marinho, tentando acalmar o então aliado.
Na sequência, Victor Granado relatou seu encontro com o policial, na véspera: “Ontem estive com o Queiroz e obriguei o Queiroz a me repassar todas as senhas das contas bancárias dele. E eu passei essa madrugada toda entrando nas contas do Queiroz, e os montantes que eu descobri, e que eu informei agora de manhã para o Flávio, são muito superiores a esses que a imprensa está noticiando, inclusive porque ele se refere a anos anteriores a esses que a imprensa está noticiando”.
Àquela altura, estimava-se que o total da movimentação pudesse chegar a vários milhões. Sem entender direito como tudo aquilo podia ter ocorrido, Paulo Marinho perguntou: “Ô Victor, como é que esse troço aconteceu?”.
“Porra, um dia o [coronel] Braga recebe um telefonema de uma pessoa, lá na Assembleia, de uma pessoa supostamente se intitulando um delegado da Polícia Federal, querendo falar com o Flávio. O Braga disse a essa pessoa que o Flávio estava ocupado e não costumava falar com quem não conhecesse. Aí ele disse: ‘Olha, então, é o seguinte, é um assunto de interesse do senador’.”
Esse suposto delegado da Polícia Federal então teria deixado um contato e Flávio determinou que os assessores o procurassem na sede da PF, na praça Mauá, no centro do Rio. Foram à reunião com o tal delegado o coronel Miguel Braga, chefe de gabinete de Flávio, Victor Granado e ainda uma assessora chamada Valdenice de Oliveira Meliga, ex-tesoureira do partido da família Bolsonaro no Rio. Antes do encontro, os três deveriam avisar por telefone que estavam no local e o delegado sairia do prédio da PF. O movimento seria a confirmação de que ele era quem dizia ser.
Paulo Marinho ouviu de Victor Granado que o suposto delegado teria alertado os assessores de Flávio sobre a existência de informações que poderiam atrapalhar o futuro da família Bolsonaro porque uma operação iria esbarrar em Queiroz e numa filha dele. Mencionou que o policial tinha alguma movimentação bancária e financeira suspeita. Apresentando-se como simpatizante de Bolsonaro, ele ainda contou que a operação não iria mais ocorrer entre o primeiro e o segundo turno, em outubro de 2018, para “não criar nenhum embaraço durante a campanha”.
No entanto, a Operação Furna da Onça, que foi desencadeada em 8 de novembro daquele ano e prendeu dez deputados, nunca teve Queiroz ou a filha como alvos. Mas o que tornou a narrativa de Marinho verídica foi a exoneração do policial e de sua filha no mesmo dia, 16 de outubro, no meio do segundo turno. E esse fato, que a própria considera suspeito desde o momento em que teve que apurar uma denúncia sobre esse vazamento de informações, nem Queiroz nem Nathália conseguiram explicar direito.
A conversa na casa de Marinho já terminava. Fragoso disse que o mais urgente era arrumar um advogado para Queiroz. Assim, ficou sob responsabilidade de Victor Granado encaminhar o policial a um advogado. Escolheram o criminalista Ralph Hage, e ainda naquela semana Queiroz foi ao escritório dele, onde se impressionou com a quantidade de mármore. Nas conversas que havia tido com Cezar Tanner, ele sabia que seu ex-colega da PM não iria seguir em sua defesa.
Outro ponto acordado pelos quatro na casa de Marinho foi uma nova reunião com outros advogados que auxiliariam Flávio, em São Paulo, à qual Gustavo Bebianno também compareceria. Agendaram essa segunda reunião para 14 de dezembro de 2018.
No novo encontro, ocorrido no restaurante do Hotel Emiliano em São Paulo, os advogados discutiram algumas estratégias e chegaram a um acordo sobre um tópico: Queiroz precisava depor logo ao MP. Uma narrativa qualquer sobre o episódio relatada aos promotores podia evitar que a história do relatório contaminasse toda a família Bolsonaro. Era essa a visão do grupo naquela sexta-feira de dezembro.
ENTRE 15 E 16 DE DEZEMBRO DE 2018, quem desembarcou no Rio de Janeiro foi o advogado paulista Frederick Wassef, que logo procurou Jair Bolsonaro para oferecer seus conselhos e serviços jurídicos para defender Flávio. Os dois se conheciam havia alguns anos e Wassef nem precisou gastar muita lábia para convencê-lo. Os Bolsonaro já tinham posto na cabeça que não podiam confiar em Marinho. A teoria conspiratória do momento era de que, em uma eventual cassação do senador, quem assumiria a cadeira no Senado seria justamente o empresário, que era o suplente do filho mais velho do presidente.
Assim, Wassef escanteou a equipe de advogados de Marinho em um fim de semana. A decisão foi comunicada em um rápido encontro após a diplomação de Flávio no dia 18 de dezembro. O parlamentar agradeceu e informou ao empresário, sem meias palavras, que estava optando por um novo “esquema jurídico” a pedido de seu pai.
O cérebro do novo esquema era Wassef, e a estratégia inicial consistia em tirar Fabrício Queiroz de circulação e escondê-lo. Ele também já articulava a ideia de ir ao STF questionar a validade do relatório do Coaf e ainda pensava como invalidar a investigação no Rio de Janeiro. Queiroz não iria depor. Ninguém saberia que era Wassef quem estaria dando as cartas nos bastidores para tentar conter o escândalo. E o advogado permaneceria anônimo por alguns meses. Situação suficientemente confortável para que ele pudesse, mais do que resolver os problemas da família Bolsonaro, ganhar espaço e influência para atuar por si e pelos seus. Inclusive apontando seus nomes preferidos para ocupar as vagas no Judiciário.
Alguns dias depois que Wassef assumiu o “esquema jurídico” de Flávio, ele participou de um jantar no shopping center VillageMall, na Barra. Estava acompanhado de Edevaldo de Oliveira, seu amigo de longa data, da mulher deste e de um outro homem do mundo jurídico, o desembargador Kassio Nunes Marques. Apesar de ser um local badalado, o grupo não parecia ter receio de que fosse visto junto. Tanto que eles se sentaram a uma mesa externa, junto aos corredores do shopping, e conversaram alheios a que pudessem ser ouvidos.
Ao longo do jantar, Wassef apresentou Nunes Marques como futuro ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e relatou detalhes do caso de Flávio, além de suas estratégias jurídicas. Wassef ainda disse a Nunes Marques que gostaria de levá-lo à casa de Jair Bolsonaro. Depois, o advogado teve que voltar sua atenção às precauções que deveriam envolver Queiroz, seu novo protegido. Ou cativo. Poucos além dele sabiam onde o policial estava. Na linha de defesa traçada por Wassef, o policial precisava se manter fora de circulação. Desaparecer.
ANTES DE VOLTAR PARA SÃO PAULO, Wassef ainda tinha alguns assuntos a resolver no Rio de Janeiro. Era preciso cuidar da situação dos outros ex-assessores de Flávio. Então ele marcou encontros com as pessoas que constavam do relatório sobre a movimentação bancária do policial. E foi assim, meio sem entender, que Luiza Souza Paes chegou no Windsor Barra Hotel para conversar com o advogado na tarde do dia 20 de dezembro de 2018. Prestes a depor e ao ver seu nome citado no noticiário, ela havia procurado o pai, Fausto Paes, amigo de Queiroz havia anos e companheiro de muitas peladas em Oswaldo Cruz no time “Fala tu que eu tô cansado”. Antes de ir ao hotel, Luiza tinha sido orientada a procurar o advogado Luis Gustavo Botto Maia em seu escritório. De lá ela seguiu, com o pai e o advogado para o encontro. Wassef, por sua vez, estava com Victor Granado Alves, o advogado e amigo de Flávio que acompanhava o caso desde o início.
Wassef não se apresentou como advogado de Flávio Bolsonaro. Como é de seu costume, iniciou um monólogo. Dizendo-se “poderoso”, afirmou que cobrava milhões nas causas em que atuava, mas estava na defesa de Flávio de graça porque considerava que aquilo tudo era uma “covardia” contra a família Bolsonaro.
Luiza tinha sido convocada para depor no MP sobre os repasses para Queiroz, naquela mesma data. Os advogados a orientaram a não comparecer, justificando que nenhum outro assessor convocado iria fazê-lo. De fato, os promotores haviam convocado oito pessoas para a última semana antes do Natal e nenhuma foi.
Naqueles dias, todos os outros oito assessores citados no relatório nunca estavam em casa, como Queiroz. Era como se todas aquelas pessoas tivessem desaparecido. Ou fugido. Mas acabei descobrindo um vínculo do policial com a família de uma assessora.
Foi no início de uma tarde de domingo, ainda naquele dezembro de 2018, que fui a Oswaldo Cruz, bairro na Zona Norte do Rio, procurar uma moça chamada Luiza Souza Paes. A própria. Com 28 anos à época, Luiza havia estudado estatística e constara como assessora no gabinete de Flávio Bolsonaro de 2011 até 2012. Depois disso, ela teve outros cargos na Alerj. Chegou a ser lotada na da Casa e ficou por lá até 2017.
No relatório sobre Queiroz, Luiza é citada por repassar cerca de 3 mil reais para o policial. Eu e outros colegas do Globo já tínhamos tentado falar com ela por telefone: a mãe dela atendia irritada e desligava assim que nos identificávamos. Sem muita alternativa, fui até sua casa num domingo. Cheguei devagar. O motorista estacionou o carro e eu desembarquei para bater no portão de uma casa na rua Felizardo Gomes. Nenhuma resposta. Da rua, só se enxerga parte da casa, que fica nos fundos. Um vizinho me viu e gritou que não havia ninguém. Dona Leonora, a mãe de Luiza estava em um bar ali perto. Era só descer uma quadra.
Fui ao bar. Tocava um samba no rádio, algumas pessoas bebiam cerveja. Mal perguntei por dona Leonora e uma senhora respondeu. Eu me identifiquei como jornalista e ela concordou em conversar. Logo de cara ficou na defensiva, sua filha não tinha nada a ver com o que eu estava perguntando. Não seria alguma homônima?
“Tá dando a maior confusão na vida dela por causa disso. Eu não sei, inclusive, veio uma outra pessoa aqui em casa também, e não tem nada a ver.” Mas não havia erro: a pessoa citada no relatório era a filha dela. Eu tinha conferido endereço, e, inclusive, o nome da mãe da Luiza antes de ir ao local. Apesar disso, deixei que ela continuasse sua história. Foi aí que a dona Leonora acabou contando que realmente conhecia o Queiroz.
“Na verdade, justamente na tentativa de esclarecer, não ter nenhum erro, é importante a gente conversar com as pessoas, entendeu?”, argumentei.
“Eu entendo.”
“Não tô aqui pra acusar sua filha de nada. Na verdade…”
“Minha filha não tem de ter acusação nenhuma.”
“Mas eu quero deixar claro isso. Não é nenhuma acusação à sua filha. Quem trabalhava lá no gabinete, quem parece que fez alguma coisa errada, foi aquele rapaz que estão falando, o tal de Queiroz.”
“Que era morador daqui da rua também”, contou Leonora, com uma expressão de ironia.
“Era morador daqui da rua, é?”, perguntei.
“É, há muitos anos atrás. Entendeu? Não tem nada a ver, a gente se conhece e uma coisa não tem nada a ver com a outra, entendeu?”
Mas, talvez por ter notado meu interesse no detalhe, ela logo se irritou e a conversa não evoluiu bem: “Vocês ficam insistindo, ficam ligando na minha casa, toda hora essa perturbação, isso já virou uma perturbação, e eu até, inclusive, falei pro meu ex-marido que eu vou começar a xingar todo mundo. Isso já tá dando no saco, entendeu?”.
“Tá bom então. Dona Leonora, a senhora quer ficar com meu telefone? Se em algum momento…”
“Não.”
“Tem certeza?”
“Absoluta.”
“Eu não tô aqui acusando.”
“Não, você não tá acusando, você tá me perturbando. Eu tô em um dia de lazer e você tá me perturbando.”
Como ela já parecia muito estressada, resolvi ir embora antes que a coisa desandasse. Apesar de aquela conversa não ter resultado em nada concreto, não esqueci que ela disse que conhecia o Queiroz. Eu não sabia ainda, mas a proximidade era importante e ia explicar muita coisa sobre aquela lista de assessores que faziam repasses e sobre o esquema que existia no gabinete de Flávio Bolsonaro.
Dois anos depois, Luiza se tornaria crucial para o caso. Ela acabaria confessando que nunca havia trabalhado de verdade e que era obrigada a devolver o salário. Mas isso aconteceria mais tarde. Naquele momento, só me restava acompanhar os eventos. E, em dezembro de 2018, Luiza era orientada por seu pai, Fausto Paes, que recebia instruções de Queiroz. Ela chegou a ir à Alerj assinar folhas de ponto antigas, para tentar forjar que trabalhava no local.
Ao mesmo tempo, nas conversas com Queiroz, Fausto recebeu dicas do que Luiza deveria dizer em um depoimento futuro. Primeiro, o pai da moça chegou a pedir à filha todos os seus extratos bancários, para que ele contabilizasse o total. Depois, ele e Queiroz bolariam uma explicação para o dinheiro repassado, que era muito superior ao que aparecia no relatório do Coaf. Da conta dela, haviam saído cerca de 155 mil reais — que foram parar nas mãos ou nas contas de Queiroz.
Era uma tentativa de combinar uma versão. Queiroz tinha pedido a Luiza que dissesse que entregava dinheiro a ele para um suposto investimento na compra e venda de carros. Uma história que pai e filha consideraram esquisita, mas acataram. Esse detalhe sobre venda de carros faria mais sentido para ela dias depois.
A SAGA DE QUEIROZ atrás de um defensor enquanto fugia da imprensa e do MP teve uma importante virada uma semana antes do Natal. Naquele momento, ele já havia desistido do criminalista Ralph Hage, advogado indicado pela equipe que Paulo Marinho havia começado a organizar. Em 18 de dezembro, o policial dispensou os serviços do advogado Cezar Tanner, a quem pagou 5 mil reais. No dia seguinte, o experiente criminalista Paulo Klein apresentou no MP uma procuração do policial, que o constituía seu advogado a partir daquele dia. Klein já trabalhara em alguns casos de grande repercussão. Representara, por exemplo, no auge da delação da JBS, o ex-procurador da República Marcelo Miller, acusado de usar informações da PGR para ajudar os irmãos Batista a formular o acordo de delação que envolvia o ex-presidente Michel Temer e o deputado federal Aécio Neves.
Com a troca de advogados, o depoimento então esperado para aquela data não ocorreu. Em seguida, Queiroz desapareceu. Enquanto toda a imprensa procurava por ele no Rio de Janeiro, o policial já estava bem longe. Ainda no dia 19 de dezembro, o advogado Frederick Wassef, nos bastidores da defesa de Flávio Bolsonaro, ajudava Queiroz a deixar a capital fluminense para, em princípio, cuidar de sua saúde em São Paulo. Depois, para facilitar o controle de Wassef sobre ele.
Enquanto os advogados se movimentavam no Rio, Queiroz seguiu para uma consulta com Wladimir Alfer Jr. no Hospital Israelita Albert Einstein, na unidade do Morumbi. Pesquisador de urologia pela Harvard Medical School, Alfer Jr. é doutor pela Universidade de São Paulo. Não saía por menos de setecentos reais uma consulta com ele, que tinha entre seus pacientes o próprio Wassef. Depois de avaliar Queiroz, Alfer Jr. o encaminhou ao conceituado cirurgião e gastroenterologista Pedro Custódio de Mello Borges, em cuja lista de pacientes já esteve o ex-jogador Sócrates. Tudo bastante longe da realidade financeira de Queiroz.
Os exames detectaram
um câncer no intestino. Essa descoberta fez com que o policial e seus
familiares sentissem que, não fosse o escândalo do relatório do Coaf,
possivelmente a doença não teria sido identificada no início. Ou seja, por pior
que tenha sido, a confusão acabou salvando sua vida. Mais que isso, o cuidado recebido
deixou Queiroz eternamente grato a quem o ajudou.
Naqueles dias, ele teve a impressão de estar protegido por um “anjo”. E foi justamente assim que o policial, sua família e até o grupo mais próximo no entorno de Bolsonaro passaram a chamar Wassef. O Anjo até andava armado com uma pistola, dia e noite, enquanto estava com Queiroz. Dependendo da perspectiva, podia ser um reforço na proteção ou mesmo um modo de intimidação.
O diagnóstico de câncer, por mais assustador que pudesse ser, naquele momento ajudava a todos, sobretudo à sua defesa. Dava aos advogados e aos Bolsonaro tudo de que precisavam: tempo. Podia-se explicar, e até comprovar, o sumiço do policial, que àquela altura já virara meme na internet — “Cadê o Queiroz?”, o país indagava. Uma pergunta que se espalhou na internet e em pichações nas ruas das grandes cidades brasileiras.
O jornalista Lauro Jardim chegou a noticiar que ele ficou escondido por um tempo, no início de dezembro de 2018, em Rio das Pedras, comunidade sob domínio do grupo criminoso Escritório do Crime.
Internamente, os advogados passaram a se aconselhar com experientes assessores de imprensa e avaliaram que era preciso criar uma situação “controlada” para mostrar Queiroz ao Brasil. Como parte da estratégia de defesa, Wassef marcou uma entrevista com o SBT para o dia 26 de dezembro de 2018. Só que para tanto era preciso montar uma estrutura, e essa logística foi feita com ajuda do também advogado Edevaldo de Oliveira. Criminalista, Oliveira é ex-policial rodoviário federal e tem um escritório em Atibaia, no interior de São Paulo, mesma cidade onde mora. Como Wassef, tem um sítio na cidade.
Logo depois dos exames na capital paulista, Queiroz foi levado por Wassef para o Faro Hotel, no centro de Atibaia.3 Eles chegaram de madrugada: 1h26. Queiroz ficou e Wassef saiu para retornar horas mais tarde. Naquela data, uma quarta-feira depois do Natal, Wassef voltou ao hotel com Oliveira para encontrar Queiroz. O advogado de Flávio solicitou uma sala ao hotel para conversar com Oliveira e Queiroz pouco antes da primeira aparição pública do policial.
Depois da reunião, o advogado Paulo Klein, que atendia Queiroz na época, chegou ao hotel para encontrar o cliente e ir ao encontro dos jornalistas, junto com Oliveira, em outro local. A entrevista ia ser gravada em um imóvel de dois andares, com uma parede de pedra em uma das salas e um grande terraço. Foi nesse lugar que Queiroz tentou dar suas explicações. Ensaiou uma versão de que “fazia rolos” e que isso justificaria o dinheiro na sua conta: “Eu sou um cara de negócios, eu faço dinheiro, compro, revendo, compro, revendo, compro carro, revendo carro”, afirmou, com um sorriso forçado. Parecia que nem ele acreditava no que dizia.
Mas até na visão dos apoiadores de Bolsonaro a entrevista piorou uma situação que já era muito ruim. Queiroz contou que os valores altos de sua conta vinham também de vendas e compras de carros, embora tudo que se achou em seu nome foram dois carros antigos — um Del Rey Belina, marrom, modelo 1985/86, e um Voyage preto, modelo 2009/2010. A narrativa do policial era arrematada por uma defesa dos antigos patrões: “Meu problema é meu problema, não tem a ver com o Flávio Bolsonaro. Não tem a ver com ninguém. Eu vou responder pelos meus atos”.
Queiroz não podia explicar como é que o dinheiro entrava e saía. Mas dizia receber valores de modo informal, por meio de “rolos”. Ora era um homem humilde, ora tinha dinheiro de origem desconhecida. Também tentou explicar o desaparecimento dos dias anteriores: “Em momento algum eu estou fugindo. Quero muito esclarecer. E depor na frente do promotor. Agradecê-lo por acatar, por não pedir minha prisão. Eu falei, vou ser preso. No terceiro depoimento, eu estava sendo atendido, eu tenho aí em mãos, eu faço questão de entregar depois para você ler, tirar foto, mostrar para a imprensa, para o Brasil, eu sendo atendido por um dos melhores… doutor Wladimir (Alfer). Foi constatado um câncer”.
Dias depois do encontro com Wassef, Luiza e o pai viram Queiroz se explicando na tevê e comentaram no WhatsApp: “Você chegou a ver ou ouvir a entrevista do nosso amigo no SBT? Depois eu vou conversar contigo se você não ouviu. Se você tiver gravado aí manda pra mim porque eu queria ouvir. Ouvi um pedaço, mas não ouvi o teor inteiro. Que ali, pela parte que eu ouvi já muda algumas coisas bem interessantes. Isso deve ter sido orientação daquele maluco lá, né? Que nós encontramos com ele lá. Porque aquilo é\ louco de pedra…”.
O “louco de pedra”
era Wassef. E ele manteria Queiroz sob sua vigilância por mais de um ano.
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