quinta-feira, 27 de junho de 2024

A ELITE DO ATRASO - da escravidão à lava jato ( gota 05 - "a" )



A CORRUPÇÃO REAL E A CORRUPÇÃO DOS TOLOS


A corrupção real e a corrupção dos tolos: uma reflexão sobre o Patrimonialismo

A classe média, malgrado sua heterogeneidade, é dominada por ideias semelhantes, o que dificulta enormemente a construção de uma concepção alternativa e crítica de nossa sociedade. Foi isso que fez com que, quando a Rede Globo e a grande mídia conservadora chamaram seu público cativo – a fração protofascista da classe média – às ruas entre 2013 e 2016, frações significativas das outras frações também reagissem ao apelo. Toda a manipulação política desses setores é marcada pelo prestígio da noção de patrimonialismo e por consequência da corrupção apenas da política e nunca do mercado. A não ser que o empresário tenha cometido o crime capital de ter se associado ao governo do PT. Para estes não há perdão. Devem ficar, inclusive, como exemplos para o futuro. Mas todos os outros não apenas estão soltos, como também, como Joesley Batista, culpam a política como se tivessem sido forçados por estes e não o contrário. Como é possível tamanha desfaçatez na inversão da captura da política pelo mercado?

Isso se deve, a meu ver, à carga de prestígio associada à noção de patrimonialismo como a pseudoexplicação mais importante para tudo o que acontece na sociedade brasileira. A noção de populismo, também muito importante para legitimar o ódio e o desprezo aos pobres, é uma noção auxiliar. A ideia de patrimonialismo é ainda mais fundamental, já que eivada de prestígio acadêmico e repetida por todos os intelectuais orgânicos dessas frações. A grande imprensa, depois, envenena seus leitores distribuindo a distorção sistemática da realidade que essa leitura implica, por assim dizer, em pílulas todos os dias. Por conta disso, iremos neste capítulo examinar mais de perto essa noção sob o ponto de vista de sua (in)capacidade explicativa. Como esse capítulo é inevitavelmente um debate mais teórico, o leitor menos interessado nessas questões pode pulá-lo e passar diretamente ao capítulo mais político da conclusão. No capítulo da conclusão, iremos ver mais de perto como o conluio entre a grande mídia e a Lava Jato, legitimando sua ação com a noção de patrimonialismo, preparou o terreno para nossa elite do atraso, mais uma vez, praticar seu saque e sua rapina às custas de toda a população.

Como pesquisador, acho importante se comprovar empiricamente o que se diz. Por conta disso vou realizar um experimento empírico que possa comprovar, para qualquer um, a influência avassaladora dessa ideia-força, falsa e superficial como ela é, na nossa sociedade. Reunirei aqui as ideias de figuras públicas de destaque na vida brasileira que expressam o quadro heterogêneo que montamos da classe média, ou seja, a classe que é responsável pela reprodução da sociedade, assumindo tanto as funções de controle e supervisão material quanto as funções de justificação e legitimação da ordem social. E isso tanto no mercado quanto no Estado. Veremos como a ideia-força do patrimonialismo efetivamente conseguiu dominar todas as frações da classe média e se tornar o principal obstáculo para qualquer percepção efetivamente nova e crítica da sociedade brasileira.

Assim, tomei como exemplos recentes intervenções públicas de três figuras que são referência para todas as frações da classe média que analisamos até agora: o procurador Deltan Dallagnol, o intelectual da Lava Jato, como expoente da fração protofascista da classe média; o ministro Luis Roberto Barroso, do STF, como representante das frações do centro, a liberal e a classe média de Oslo; e, finalmente, o ex-prefeito Fernando Haddad, como representante da fração crítica, mais à esquerda. O que existe de comum em todos eles é o fato de pensarem a sociedade brasileira sob a égide da noção de patrimonialismo.

Esse fato mostra a força espantosa dessa ideia que se naturalizou entre nós de tal forma que pessoas tão diferentes, com interesses até opostos, expressam sua visão de mundo com uma mesma ideia. Como vimos, a elite econômica que logrou consolidar uma visão de mundo hegemônica em seu benefício fez com que mesmo a crítica social seja feita segundo seus próprios termos, enfraquecendo, obviamente, o alcance e a radicalidade de qualquer crítica. A ausência de perspectivas efetivamente críticas que vivemos advém desse fato mais que de qualquer outro.

Entre os três exemplos quem está mais em casa no tema do patrimonialismo é o intelectual da Lava Jato, o procurador Deltan Dallagnol. A fração que ele expressa, a fração protofascista da classe média, que logrou nos últimos anos sair do armário e se assumir enquanto tal, gritando em alto e bom som seus preconceitos e seus ódios antes escondidos, tem na corrupção seletiva do suposto Estado patrimonial sua legitimação mais importante. Retirei o texto que exponho a seguir de Dallagnol de sua página do Facebook. Um texto entre literalmente centenas com exatamente o mesmo conteúdo. Percebemos, facilmente, por que não a reflexão, mas sim a repetição de uma suposta certeza faz parte do núcleo de justificação dessa fração de classe.


Post de 8 de janeiro de 2016, um entre tantos com mesmo conteúdo.

 

No post de 25 de dezembro (que encontra aqui:

https://www.facebook.com/deltan.dallagnol/posts/99420770728960), vimos que a ausência de organização da sociedade e da formação de uma identidade nacional permitiu um Estado controlado por elites corruptas, os “donos do poder”, num ambiente favorável a práticas como clientelismo, coronelismo, nepotismo.

 

Além disso, o estamento aristocrático, na clássica avaliação de Raymundo Faoro, desenvolveu-se em um “estamento burocrático”, formado por autoridades públicas que são espécies de “seres superiores” que não se subordinam à lei: fazem o que querem e não são punidos. A autoridade é transferida dos cargos aos seus ocupantes, como se o poder irradiasse da pessoa e sem limites, em vez de irradiar de sua função e dentro dos limites de seu exercício – o que explicaria a comum, mas infeliz, pergunta: “você sabe com quem você está falando?”. Some-se, dentro desse contexto, que, analisando as características do brasileiro, o célebre Sérgio Buarque de Holanda, em seu consagrado Raízes do Brasil, definiu-o o “homem cordial”. O tecido social teria por base relações de afetividade, paixão ou sentimento, criando o “jeitinho brasileiro”.

A concepção vira-lata do brasileiro que estamos criticando mostra-se aqui à luz do Sol. Sérgio Buarque e Raymundo Faoro como legitimação perfeita do protofascismo brasileiro. O brasileiro é malformado de nascença por uma herança cultural pensada como estoque do mesmo modo e com os mesmos objetivos que o racismo da cor da pele antes cumpria. A manipulação midiática da conjuntura política concreta faz com que essa fração seja a tropa de choque perfeita da elite econômica, a qual se pode dar ao luxo de se manter à sombra sem precisar se envolver nas disputas políticas de rua.

Os “camisas amarelas”, tão explorados como todas as outras classes e setores sociais por essa mesma elite, dispõem-se a defender seus interesses econômicos devidamente travestidos em princípios morais precisamente para dirigir o ódio dessa classe a qualquer liderança popular. A operação Lava Jato foi desde seu começo uma caça aos petistas e a seu líder maior, como forma de garantir e assegurar a mesma distância social em relação aos pobres que não os torne tão ameaçadores como eles haviam se tornado com Lula. O maior perigo representado pelos pobres foi quando eles começaram a poder entrar para a universidade pública, reduto dos privilégios da classe média, pois durante a administração do PT aumentou de 3 para 8 milhões o número de matriculados.

Se não fosse essa a razão, o que faria os “camisas amarelas” – versão nacional dos “camisa negra” de Mussolini – ficarem em casa quietinhos, agora, em meados de 2017, quando a corrupção real mostra sua pior face? Se fosse a corrupção o que indignasse esse povo, o panelaço deveria ser ensurdecedor agora, não concorda, leitor? Onde estão os “camisas amarelas”? É a seletividade da corrupção não só apenas no Estado, mas apenas dos partidos de esquerda, que querem diminuir a distância entre as classes sociais, o que verdadeiramente move e comove nossos “camisas amarelas”. Deltan Dallagnol é sua mais perfeita expressão: líder tosco, primitivo, cheio de certezas e verdades seletivas.

Mas o patrimonialismo, como leitura social dominante dos brasileiros acerca de si mesmo, não comove apenas os protofascistas. Os liberais e os “classe média de Oslo” também são dominados por essa leitura. O ministro Luis Roberto Barroso é um perfeito exemplo dessa fração. Para uma comunicação no dia 8 de abril de 2017, em uma universidade americana, o ministro do STF prepara uma fala que condensa sua imagem do Brasil moderno. O título da fala é sugestivo: “Ética e jeitinho brasileiro: por que a gente é assim?”. Retirei os seguintes parágrafos, os quais são os pilares da argumentação do ministro Barroso:


O patrimonialismo remete à nossa tradição ibérica, ao modo como se estabeleciam as relações políticas, econômicas e sociais entre o Imperador e a sociedade portuguesa, em geral, e com os colonizadores do Brasil, em particular. Não havia separação entre a Fazenda do rei e a Fazenda do reino, entre bens particulares e bens do Estado. Os deveres públicos e as obrigações privadas se sobrepunham. O rei tinha participação direta e pessoal nos tributos e nos frutos obtidos na colônia. Vem desde aí a difícil separação entre esfera pública e privada, que é a marca da formação nacional. O cor ou cordis vem de coração e revela o primado da emoção e do sentimento nas relações interpessoais, acima dos formalismos e do verniz superficial da polidez. A cordialidade, nesta acepção, reconduz à versão positiva do jeitinho, manifestado na pessoalização das relações sociais pela afetuosidade, informalidade e bom humor. Mas esta é, também, a raiz das disfunções apontadas acima, que se materializam na indisciplina, no desapreço aos ritos essenciais, no individualismo que se sobrepõe à esfera pública.

Como mostrei, exaustivamente, no decorrer deste livro, patrimonialismo e personalismo, assalto ao Estado e o “jeitinho brasileiro” do “homem cordial” estão umbilicalmente ligados, e um não existe sem o outro. Os dois parágrafos do ministro não me deixam mentir. Um explica o Brasil na dimensão institucional e o outro na dimensão subjetiva e interpessoal. Obviamente, de modo muito conveniente, a instância do mercado é tornada invisível e só resta o Estado como amálgama institucional e prolongamento do jeitinho supostamente brasileiro do homem cordial. É a crítica mais desprovida de consequências práticas que se pode fazer e, ao mesmo tempo, a que aparenta maior radicalidade. Investe-se contra uma elite abstrata que pode ser todos e ninguém, inclusive o próprio ministro, mantendo-se a consciência tranquila e ganhando a boa vontade de qualquer plateia.

Isso deve-se ao fato de que o que distingue essa fração dos protofascistas é sua maior ligação com os valores da “civilização europeia”, em termos de abertura aos princípios democráticos abstratos. O ministro chega a falar em desigualdade como um elemento fundamental de nossa sociabilidade, algo, por exemplo, completamente ausente do discurso tacanhamente moralista e moralizador de Dallagnol e dos protofascistas. No entanto, como no discurso falsamente emancipador da Rede Globo, ou a desigualdade é pensada na chave identitária – que não contempla a divisão de riquezas  das minorias ou a questão central da redistribuição de rendas e riquezas assume importância marginal e sem consequências reais para a análise.

Ainda assim, ao contrário dos protofascistas que encontraram agora o que procuraram a vida inteira, um discurso de ódio para chamar de seu, midiaticamente repetido todos os dias para fornecer a ilusão de segurança e certeza compartilhada, os liberais e os integrantes da “classe média de Oslo” estão em posição diferente. Eles são boa parte dos incomodados com a situação atual, os que se sentem enganados pela onda de soberania virtual criada pela mídia comprada pela elite financeira. Afinal, o mundo que receberam em troca por seu apoio ao golpe foi muito pior que o anterior. Estão atarantados, bestializados, sem discurso alternativo, sem compreensão do quadro como um todo, e, pior, sem comprometimento afetivo com uma mudança política efetiva.

Mas, infelizmente, essa leitura conservadora da sociedade brasileira não é privilégio das frações conservadoras e liberais da classe média. Ela atinge também a fração crítica dessa mesma classe. Até mesmo um refinado e sofisticado intelectual como o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, defende posições muito próximas do ministro Barroso e do procurador Dallagnol. Em artigo na revista Piauí do mês de junho de 2017, denominado de “Vivi na pele o que aprendi nos livros: um encontro com o patrimonialismo brasileiro”, Haddad reflete sobre sua trajetória utilizando-se dos mesmos conceitos e os mesmos autores, levando, não por acaso, a visões muito próximas. Senão vejamos:


O patrimonialismo é, antes de mais nada, uma antítese da república. O despotismo é outra antítese da república. Entre nós, brasileiros, nenhuma obra do pensamento social e político descreve melhor o patrimonialismo, hoje com suas entranhas expostas no noticiário do país, do que Os donos do poder, de Raymundo Faoro. O texto, publicado em 1958, deveria ser relido, cum grano salis, como veremos.


“Na peculiaridade histórica brasileira”, escreve Faoro, “a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal.” Não há sutileza aqui: ele afirma que o Estado no Brasil é objeto de posse, tomado pela camada dirigente como seu. E prossegue: a comunidade política comanda e supervisiona todos os negócios relevantes, “concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle de crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. E conclui: “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios como negócios privados seus, na origem como negócios públicos, depois em linhas que se demarcam gradualmente.”

 

A essa forma acabada de poder, institucionalizada num certo tipo de domínio, Faoro chama de patrimonialismo. E nota que, ao contrário do mundo feudal, que é “fechado por essência, não resiste ao impacto com o capitalismo, quebrando-se internamente”, o patrimonialismo se amolda “às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do mundo externo”. Ou seja, Faoro já percebia que o patrimonialismo brasileiro – que segundo sua tese remonta à dinastia portuguesa de Avis (1385–1580) durante a expansão comercial lusitana para a África, Índia e Brasil – adaptou-se à chegada do capitalismo. Ou seja, ele o concebia como um modelo arcaico que sobreviveu à modernização.


Em um artigo publicado na revista Reportagem em janeiro de 2003, logo após a primeira eleição de Lula, eu alertava que o PT ainda não havia feito o diagnóstico adequado sobre a natureza do que chamei de “patrimonialismo moderno”. Argumentei que, dada a natureza patrimonialista do Estado brasileiro, “a mera chegada ao poder de um partido de esquerda, por si só, ainda que prometesse respeitar todos os direitos constituídos e os contratos celebrados, seria percebida como um ato em si mesmo expropriatório”. E, portanto, passível de forte reação contrária. Mas que o nó da questão era, como o próprio Faoro apontava em sua obra, a possibilidade histórica de um patrimonialismo social-democrata, que empreendesse “uma política de bem-estar para assegurar a adesão das massas”.


Ainda que o texto denote a capacidade do autor de reflexão pessoal e de apropriação autônoma de conceitos, o que inexiste nos exemplos anteriores, temos um exemplo perfeito de como uma leitura naturalizada e não refletida nos seus pressupostos essenciais pode comprometer a capacidade de análise até mesmo das mentes mais brilhantes. Falar de “patrimonialismo moderno”, como faz Haddad, é um contrassenso conceitual. Por boas razões, como veremos a seguir, para Max Weber, o inventor do conceito e de quem se retira o “prestígio científico” para tornar a ideia “respeitável”, o patrimonialismo é inseparável de precondições que são pré-modernas.

Se existem fenômenos modernos que parecem semelhantes àqueles a que a dominação patrimonial se referia, então vale a pena não só um outro termo, para evitar as confusões que nada ajudam a ciência, mas, muito mais importante, se requer outra análise e outros pressupostos. Muitas vezes, o que parece igual não o é efetivamente em reflexão mais cuidadosa. Depois, ainda se corre o risco de se pensar a apropriação privada da política nos termos subjetivados e pessoalizados que a tese do patrimonialismo nasceu para implementar e legitimar. Com isso, esconde-se ainda mais a relação já obscura entre economia e política.

Como os exemplos mostram, da direita à esquerda, a sociedade brasileira é colonizada por uma mesma interpretação. Como não se tem prática social alternativa sem uma compreensão da realidade também alternativa, a questão é de vida e morte para a crise brasileira. Ou a atravessamos sem nenhum aprendizado real, que é a ameaça mais real, ou repensamos nossa herança e nossa sociedade de modo radicalmente novo. Por conta disso, é que pretendo contribuir, nas próximas páginas, para esse processo de aprendizado, desconstruindo o conceito de patrimonialismo e desvelando as razões mais profundas de sua influência ubíqua para que nossas velhas questões possam ser percebidas de modo novo.

O conceito de patrimonialismo é a noção explicativa mais importante – importante como um juízo de fato e não de valor – para a compreensão do Brasil moderno. E isso acontece tanto na dimensão intelectual dos especialistas quanto na dimensão do senso comum compartilhado pelas pessoas comuns e leigas na análise da realidade social. A sua trajetória de sucesso é sem igual e logra ser dominante tanto na direita quanto na esquerda do espectro político. Para mim, esse sucesso tão acachapante reflete a vitória do liberalismo conservador entre nós, levando à colonização, inclusive, do pensamento crítico e de “esquerda” no Brasil.

Sérgio Buarque é o pai do liberalismo conservador brasileiro ao construir as duas noções mais importantes para a autocompreensão da sociedade brasileira moderna: a noção de homem cordial e a noção de patrimonialismo. O homem cordial é a concepção do brasileiro como vira-lata, ou seja, como

conjunto de negatividades: emotivo, primitivo, personalista e, portanto, essencialmente desonesto e corrupto. O homem cordial deve ser tornado pelo mercado e pela industrialização um homem tão democrático, produtivo, puro e honesto como os americanos, o exemplo de homem-divino para Sérgio Buarque e para a esmagadora maioria dos brasileiros, intelectuais ou não. O desmascaramento do fabuloso esquema de corrupção planetário do capitalismo financeiro americano a partir da crise de 2008 não parece ter enfraquecido as bases do viralatismo nacional.

Já o patrimonialismo é uma espécie de amálgama institucional do homem cordial, desenvolvendo todas as suas virtualidades negativas dessa vez no Estado. Por alguma razão, Sérgio Buarque não constrói o mercado como marcado pela mesma viralatice. Aliás, o mercado sequer existe como configuração de interesses organizados, sendo a única instância institucionalizada e organizada, percebida pelo autor e apartada dos indivíduos, o próprio Estado. Além dele só existem indivíduos privados, sem que uma lógica da propriedade privada e sua tendência à acumulação ampliada, levando a oligopólios e monopólios, seja sequer mencionada. A lógica de funcionamento do mercado é tornada invisível e a noção de elite dominante, portanto, restringe-se à esfera estatal.

A partir da obra de Sérgio Buarque, temos a possibilidade de articular de modo convincente uma concepção de mundo liberal conservadora, como a interpretação dominante de toda a sociedade brasileira acerca de si mesma. Como essa visão contempla uma crítica da elite supostamente incrustada apenas no Estado, a visão de Sérgio Buarque passa a ter toda a aparência de uma visão crítica da sociedade brasileira como um todo. Isso acontece ainda que seu homem cordial suponha existir no Brasil um tipo social genérico e compartilhado, malgrado todas as nossas marcadas distâncias sociais entre as classes. Como a ideia liberal do sujeito genérico – a noção de um indivíduo sem passado, sem família e sem classe social – esconde a origem social de todos os privilégios individuais, negar todas as distinções sociais e ainda passar-se de crítico não é para qualquer um. Mas a criação de Sérgio Buarque já comemora quase cem anos de domínio indisputado, enquanto interpretação dominante do Brasil moderno.

A prova da enorme influência dessa ideia, tanto na vida intelectual quanto concreta e prática da sociedade brasileira, pode ser vista e comprovada na obra dos mais respeitados e influentes pensadores brasileiros a partir de então. Como as ideias influentes de uma sociedade não ficam nos livros, mas ganham as salas de aula das escolas e universidades, inspiram programas de governo, dão o mote para os artigos dos jornais, estimulam o que é dito nas TVs e o que é discutido em todas as conversas entre amigos nos botequins país afora, então estamos lidando com a forma como toda uma sociedade se percebe e age em conformidade a isso. Isso não é pouco. Afinal, toda decisão prática e concreta, em qualquer área da vida, é motivada por uma ideia ainda que normalmente esta se mantenha implícita e não articulada.

A sacada genial de Sérgio Buarque de construir uma visão de mundo liberal conservadora – posto que esconde as verdadeiras razões da desigualdade e da injustiça social – com a aparência e o charme de uma suposta crítica social é a ideia-força mais importante para a compreensão da manutenção da desigualdade e da injustiça social no Brasil. Afinal, a injustiça flagrante dos privilégios que se tornam permanentes tem que ser – no contexto de uma sociedade que diz ter acabado com todos os privilégios de nascimento – legitimada para que possa se reproduzir.

Essa legitimação tem de esconder o mundo social injusto como ele é e também, se possível, ainda deslocar a atenção para aspectos falsamente importantes – ou, pelo menos, de importância secundária com relação às questões mais importantes –, de modo a perceber o mundo social escondendo o essencial e enfatizando o secundário. A forma mais importante de como o essencial é reprimido em nome da ênfase no acessório na sociedade brasileira é por meio da repressão dos conflitos de classe em favor do deslocamento da questão da corrupção sempre estatal para o núcleo da análise social. Como esse deslocamento é, a meu ver, objetivamente falso, então é possível demonstrá-lo, com as armas da argumentação científica, para qualquer leitor de boa vontade – ou seja, aquele que ame a verdade – de modo irrefutável.

Se Sérgio Buarque é o filósofo do liberalismo conservador brasileiro, ao construir o esquema de categorias teóricas nas quais ele pode ser pensado de modo pseudocrítico, Raymundo Faoro é seu historiador oficial. É Faoro, afinal, quem cria a narrativa histórica de longa duração desde o início do Estado português unitário e sua suposta transposição para o Brasil. Sua inegável erudição criou um efeito de convencimento que foi capaz de ganhar, não apenas o coração dos leigos, mas, também, da imensa maioria dos intelectuais e homens de letras do Brasil contemporâneo. Devido à importância de sua visão, não superada até hoje, iremos reproduzir e criticar em detalhe seus argumentos, tentando, como sempre, ser claros o bastante para que qualquer leitor de boa vontade, mesmo sem ser treinado em ciências sociais, possa compreender.

A tese do livro de Faoro é clara desde o início: sua tarefa é demonstrar o caráter patrimonialista do Estado e, por extensão, de toda a sociedade brasileira. Esse caráter patrimonialista responderia, em última instância, pela substância intrinsecamente não democrática, particularista e baseada em privilégios que sempre teria marcado o exercício do poder político no Brasil. Ou seja, o conceito de patrimonialismo passa a ocupar o lugar que a noção de escravidão e das lutas de classe que se formam a partir dela deveria ocupar. A corrupção patrimonial substitui a análise das classes sociais e suas lutas por todos os recursos materiais e imateriais escassos. Faoro procura comprovar sua hipótese buscando raízes que se alongam até a formação do Estado português no remoto século XIV de nossa era. Um argumento central que perpassa todo o livro é o de que o Brasil herda a forma do exercício do poder político de Portugal. Como em Sérgio Buarque, a herança ibérica que supostamente fincaria fundas raízes na nossa sociedade passa a ser responsável por nossa relação exterior, e para inglês ver, com o processo de modernização capitalista.

O Brasil seria uma sociedade pré-moderna, pois reproduz a forma patrimonialista, que vigorava em Portugal, de exercício do poder. Como nas várias centenas de páginas de seu livro Faoro procura demonstrar, precisamente, a correção histórica e sociológica de seu argumento, é no embate com suas ideias que poderemos perceber a fragilidade teórica dessas ideias teleológicas, ou seja, construídas para validar uma única tese política: a ação intrinsecamente demoníaca do Estado contraposta à ação intrinsecamente virtuosa do mercado. Essa é a ideia-força fundamental do liberalismo brasileiro por boas razões. Afinal, nas poucas vezes em que se verificou historicamente qualquer preocupação política comas demandas das classes populares, estas sempre partiram do Estado. É aqui que começa, portanto, o deslocamento da questão secularmente principal da sociedade brasileira, sua abissal desigualdade e a atmosfera de conflito abafado/generalizado que ela produz, como a mais importante peculiaridade social brasileira, em nome do falso conflito mercado/Estado. Esse conflito é falso por vários motivos que aprofundaremos mais tarde. Por enquanto examinemos como Faoro constrói seu argumento.

Iremos reconstruí-lo, para posteriormente criticá-lo, partindo das suas duas teses principais que são intimamente relacionadas: 1) o Brasil herda de Portugal, para nossa desgraça, sua singularidade social e política; 2) o principal elemento que prova essa herança é a estrutura patrimonial do Estado e, por consequência, de toda a vida social. A síndrome do liberalismo conservador construída por Sérgio Buarque é continuada e avançada por Faoro em todas as suas virtualidades com exceção, como também no caso de Sérgio Buarque, do racismo de classe antipopulista que é criação posterior.90

Para Faoro, a formação do Estado português possui singularidades importantes dentro do contexto europeu. Portugal é o primeiro país da Europa a unificar seu território sob o comando indisputado de um único rei. Enquanto na maior parte dos países europeus a luta pela primazia e comando entre os vários grandes senhores territoriais ainda duraria séculos, até que o poder e prestígio de apenas um pudesse se impor em relação a todos os outros como um fato indisputado, a situação em Portugal foi bem outra.

A guerra da reconquista do território português ao mouro possibilitou a incorporação de terras do inimigo à propriedade pessoal do senhor do reino e dos exércitos. O patrimônio do rei no século XIV já era maior do que o do clero e três vezes maior do que o da nobreza.91 Note o leitor que isso não significa qualquer confusão entre público e privado, já que a própria noção de público é posterior historicamente. Mesmo como simples ideia, a noção de soberania popular, que dá ensejo à oposição público x privado como conhecemos hoje, é muito mais tardia, sem falar na sua efetivação concreta como ideia política. Se a ideia de soberania popular começa no século XVII, sua efetivação concreta é ainda mais tardia. Faoro usa, portanto, uma ideia a-histórica e fora de contexto para fundamentar sua tese. Algo como fazer filmes sobre a Antiguidade e imaginar neles tramas de amor romântico que foram criadas historicamente 2 mil anos depois. Assim como é a-histórica a noção de poder total do rei como negativa, já que é ela que antecipa o Estado democrático moderno.

De certo modo, o sucesso de Portugal, sua unificação prematura que o predispôs a grandes conquistas, é a causa última, para Faoro, de seu fracasso como sociedade moderna. Assim sendo, desde a prematura centralização e unificação do Estado português medieval, o qual, se por um lado permite a concentração de recursos necessários à aventura ultramarina, guarda em si um efeito não esperado e perverso: impede as condições propícias para o desenvolvimento do capitalismo industrial. Ou, em outras palavras, impede a constituição mesma de uma sociedade moderna, visto que o Estado, ao se substituir à atividade empresarial individual baseada no cálculo, intervém inibindo o exercício das liberdades econômicas fundamentais. Com isso, não apenas a atividade econômica é comprometida, mas o próprio exercício das liberdades públicas básicas, acarretando, também, a tibieza da vida democrática enquanto tal.

Nesse sentido, a grande oposição ideológica do livro será aquela entre uma sociedade guiada e controlada pelo Estado, de cima, e as sociedades onde o Estado é um fenômeno tardio e o autogoverno se combina com o exercício das liberdades econômicas. O conceito central para dar conta da singularidade sociopolítica luso-brasileira é a noção de Estado ou estamento patrimonial. O estamento seria uma camada social cuja solidariedade interna é forjada a partir de um estilo de vida comum e de uma noção de prestígio compartilhado, seguindo a lição weberiana. De modo a-histórico e conceitualmente frágil, como veremos em breve, Faoro equipara o caso português com o dos mandarins chineses, em uma sociedade muito diferente da portuguesa, inclusive em relação ao aspecto decisivo do desenvolvimento da economia monetária.92

Mas as filigranas conceituais não são o objeto principal da atenção de Faoro, mais interessado em criar a imagem de um “estamento incrustado no Estado” – a tal “elite”, como se ela estivesse até hoje no Estado e não no mercado – a qual se apropria do aparelho de Estado e usa o poder de Estado de modo a assegurar a perpetuação de seus privilégios. Historicamente, o estamento se teria consolidado a partir da crise política portuguesa de 1383/85. O novo contexto de poder daí resultante consolida um novo equilíbrio entre a nascente burguesia e a nobreza lentamente decadente. Desse equilíbrio de forças,93 temos a estruturação de uma comunidade dentro do Estado que fala em nome próprio: o estamento. Básico para o conceito de estamento é a noção de honra. Honra é o conceito central das sociedades pré-capitalistas tradicionais. Ela funda-se no prestígio diferencial e na desigualdade. Para Faoro:

 

Os estamentos florescem, de modo natural, nas sociedades em que o mercado não domina toda a economia, a sociedade feudal ou patrimonial. Não obstante, na sociedade capitalista, os estamentos permanecem, residualmente, em virtude de certa distinção mundial, sobretudo nas nações não integralmente assimiladas ao processo de vanguarda [...] O estamento supõe distância social e se esforça pela conquista de vantagens materiais e espirituais exclusivas. As convenções, e não a ordem legal, determinam as sanções para a desqualificação estamental, bem como asseguram privilégios materiais e de maneiras. O fechamento da comunidade leva à apropriação de oportunidades econômicas, que desembocam, no ponto extremo, nos monopólios de atividades lucrativas e de cargos públicos. Com isso, as convenções, os estilos de vida incidem sobre o mercado, impedindo-o de expandir sua plena virtualidade de negar distinções pessoais. Regras jurídicas, não raro, enrijecem as convenções, restringindo a economia livre, em favor de quistos de consumo qualificado, exigido pelo modo de vida. De outro lado, a estabilidade econômica favorece a sociedade de estamentos, assim como as transformações bruscas, das técnicas ou das relações de interesse, os enfraquecem. Daí que representem eles um freio conservador, preocupados em assegurar a base de seu poder. Há estamentos que se transformam em classes e classes que evolvem para o estamento – sem negar seu conteúdo diverso. Os estamentos governam, as classes negociam.94

Temos, nessa citação, o denso resumo do argumento que será desenvolvido no decorrer de todo o livro. Temos a ideia do resíduo (de outras épocas) estamental que se torna permanente e fragiliza a atividade do livre mercado (para o liberalismo radical de Faoro, o mercado enquanto tal, e não o mercado temperado e controlado, é a base tanto do capitalismo quanto da democracia). A referência a situações de instabilidade, quando ocorrem mudanças bruscas, ajuda a esclarecer a dialética de constante desaparecimento/reaparecimento da realidade estamental, sob a forma do eterno retorno do mesmo, o famoso “vinho novo em odres velhos” na metáfora antissociológica – posto que nega a influência dos ambientes institucionais cambiantes – tão repetida no decorrer do livro pelo autor. De resto, para completar o quadro, a definição da função do estamento como sendo a de governar. É esse seu trabalho. O Estado é o seu negócio.

O ponto fundamental da definição, no entanto, que responde tanto por sua fragilidade em última instância como conceito, quanto por sua extraordinária eficácia menos como instrumento de convencimento intelectual, mas, especialmente, como mensagem política, é a intencionalidade que lhe é atribuída. Aí, precisamente, creio eu, reside sua enorme força de convencimento. Ela possibilita encontrar um culpado para nossas mazelas e nosso atraso. Em oposição ao uso histórico e dinâmico da categoria de patrimonialismo em Weber, seu uso por Faoro é estático e tendencialmente a-histórico. Faoro se interessa pouco pelas transformações históricas do que ele chama de estamento burocrático e procura sempre ressaltar, ao contrário, a permanência inexorável do mesmo sob mil disfarces que são apenas uma aparência de diferença. Isso resulta, creio eu (sem prejuízo da primorosa historiografia política, especialmente do período que vai de 1822 a 1922, que ele, apesar de tudo, consegue realizar), da forma teleológica e esquemática de como ele constrói seu argumento.

Seu argumento é teleológico, ou seja, antecipa um fim estranho à argumentação que coloniza e subordina todos os argumentos utilizados. Isso acontece na medida em que ele, a partir de sua primeira intuição influenciada pela leitura de Joaquim Nabuco acerca da influência da elite de funcionários letrados no Brasil da segunda metade do século XIX, alonga essa influência retrospectivamente a um período de quase oito séculos.95 Nesse caminho, o leitor atento percebe muitas vezes a camisa de força que significa a transposição para as situações históricas as mais variadas de uma ideia que deixa, ao limite, de ser uma categoria histórica e assume a forma de uma maldição, uma entidade demiúrgica que tudo explica e assimila.

É ele que irá explicar de que modo a categoria a-histórica de estamento patrimonial que o autor constrói possa transmutar-se, quase que imperceptivelmente, na noção pura e simples de Estado interventor. Toda a argumentação do livro baseia-se nessa transfiguração: sempre que temos Estado, temos um estamento que o controla em nome de interesses próprios impedindo o florescimento de uma sociedade civil livre e empreendedora.

Apesar da narrativa elegante e erudita, literalmente todos os pressupostos, tanto os históricos quanto os sociológicos, da análise de Faoro são falsos. Eles repetem também passo a passo a síndrome conceitual do liberalismo conservador, cuja fragilidade conceitual e histórica é clara como a luz do Sol de meio-dia: o Brasil não herda de Portugal sua estrutura social, mas sim da escravidão que não existia em Portugal. O patrimonialismo ou a existência de um estado forte não se contrapõem ao desenvolvimento capitalista, como mostra o exemplo precisamente dos EUA, o qual desde meados do século XIX deve sua expansão territorial e econômica não só ao poderio militar estatal, mas também à intervenção do Estado na construção de ferrovias e de universidades em todo o país para turbinar o desenvolvimento tecnológico e produtivo. É a partir dessa época de forte intervenção estatal, inclusive com protecionismo e tarifas alfandegárias que vigoraram até a Segunda Guerra Mundial, que os EUA se tornam potência mundial, como aliás todos os exemplos históricos concretos antes e depois dele.

Frágil e absurda como essa ideia é, ela continua a ser a ideia-força principal do liberalismo conservador brasileiro que permanece vivo no imaginário social cotidiano de todos nós. Episódios como os escândalos de corrupção no Estado – todos, sem exceção, estimulados por interesses de mercado – na sua subjetivação e novelização infantilizada dos conflitos políticos, que passam longe de qualquer discussão racional dos conflitos sociais e políticos verdadeiramente em jogo, aludem à tese do patrimonialismo. É essa tese superficial e sem qualquer fundamento conceitual sério que serve de contraponto para a pobreza do debate público político entre nós.

Assim sendo, vale a pena uma pequena digressão conceitual e histórica dessa noção em Max Weber, de quem todos, inclusive Faoro, vão buscar o prestígio científico. O leitor menos afeito a esse tipo de debate pode tranquilamente pular essas páginas. Mas como é a suposta referência a Weber – o autor que estudei mais tempo e mais apaixonadamente que qualquer outro, por haver me ensinado a importância da dominação ideal e simbólica no mundo social – que confere prestígio a essa noção, essa discussão é incontornável. A discussão weberiana acercada da noção de patrimonialismo é complexa e multifacetada. No sentido mais formal, o patrimonialismo é uma variação do tipo de dominação tradicional.96 Ao contrário das formas primárias de dominação tradicional, como a gerontocracia e o patriarcalismo, caracterizadas pela ausência de um quadro administrativo, o patrimonialismo se caracteriza pela presença de um quadro administrativo, o que traz para Weber as consequências mais importantes para o exercício da dominação política.97

É que na estrutura tripartite, a partir da qual Weber pensa a dinâmica interna às esferas sociais,98 a esfera social responsável pela política articula-se e define-se enquanto tal a partir do peso relativo da relação também triádica entre líder, quadro administrativo e os dominados. A entrada, portanto, do quadro administrativo em cena inaugura, de certo modo, a política em toda a sua complexidade. Isso porque entra em cena também o tema central da delegação do poder, já que o exercício do poder sobre grande número de pessoas e sobre extenso território exige um quadro administrativo como elo intermediário entre a liderança e os liderados.

A partir da forma específica que o quadro administrativo intermediário assume na relação entre dominador e dominados, teremos o exercício do poder mais ou menos controlado pelo líder; ou ainda do exercício mais ou menos de fato nas mãos de quem tem a delegação do poder, ainda que não o poder formal. Por conta disso, Weber irá definir também as diversas subdivisões do subtipo de dominação patrimonial precisamente a partir da maior importância relativa do líder ou do quadro administrativo.

Quando atentamos para a contextualização histórica em Weber, queremos, acima e antes de tudo, enfatizar o fato de que o patrimonialismo não é compatível com esferas sociais diferenciadas, ou seja, nas palavras de Weber e como ele preferia se referir, “esferas da vida”. As esferas da vida diferenciadas implicam que cada qual possui um princípio valorativo ou critério regulador que lhe é próprio e que serve de padrão para a conduta dos sujeitos nessa esfera. Implica também que todo o conjunto de papéis sociais, expectativas de comportamento, construção organizacional e padrões de institucionalização vão se guiar e ser avaliados precisamente pelo mesmo critério regulador. Toda a sociologia weberiana pode, inclusive, ser compreendida como uma tentativa de explicar de modo genético e causal por que apenas no Ocidente moderno logrou-se uma configuração social que não só possibilita, mas, também, estimula a diferenciação entre as diversas esferas sociais e o ganho em eficiência e racionalidade (instrumental) que essa mesma diferenciação social implica.

Também essa ideia é passível de ser compreendida por qualquer leitor de boa vontade. Pensemos na economia. É só, por exemplo, quando a economia se liberta da religião, que impedia a prática da usura, ou seja, o empréstimo de dinheiro a juros, que a economia pode se desenvolver como esfera própria sema intromissão de princípios e valores de outras esferas. O mesmo processo ocorreu com o direito. O direito autônomo nasce historicamente como garantia de procedimentos formais – esses que a Lava Jato aboliu para regredir o direito brasileiro em séculos – que são universais, precisamente para que a política, ou seja, o direito do mais forte, não seja a regra. A diferenciação das esferas da vida existe para que elas se desenvolvam sem a intromissão dos princípios das outras esferas. No mundo pré-moderno, a indiferenciação das esferas da vida, que comprometia sua eficiência, era a regra.

Toda a explicação weberiana do patrimonialismo em todos os seus casos concretos parte precisamente da impossibilidade da existência de esferas sociais diferenciadas no contexto patrimonial. Isso não quer dizer que não existam aspectos políticos ou aspectos econômicos da ação social nesses campos, mas essas ações são situadas e contextualizadas, crescendo, por exemplo, em tempos de guerra, para voltar a inexistir em tempos de paz, não desenvolvendo, portanto, todas as virtualidades de um campo diferenciado. Nesse sentido, o patrimonialismo para Weber representa, antes de tudo, um simples aumento quantitativo da economia doméstica (Hausgemeinschaft),99 que no mundo pré-moderno abarcava todas as esferas em si, ainda que existam pressupostos ideais novos, como a necessidade de legitimação carismática do líder patrimonial.100

Mesmo que o aumento quantitativo de novas conexões e funções para o exercício do poder seja requerido nessa grande comunidade doméstica, o que acontece, como nota Thomas Schwinn em sua excelente discussão acerca precisamente do caráter necessariamente indiferenciado das esferas sociais no patrimonialismo,101 é a mera substituição do princípio segmentado-horizontal da comunidade doméstica em favor de uma segmentação verticalizada com caráter hierárquico no patrimonialismo.102

O aspecto decisivo aqui é que todos os aspectos da vida estão amalgamados de modo radical, especialmente, mas não apenas, os aspectos econômicos e políticos. Mesmo que possam existir empreendimentos de grande vulto econômico no contexto patrimonial, como os assegurados por privilégios de monopólio de comércio e manufatura, os mesmos podem ser retirados de modo mais ou menos arbitrário, impedindo cálculo e previsibilidade que são indispensáveis à institucionalização da esfera econômica. Está pressuposto no argumento weberiano que é precisamente a irremediável confusão entre as diversas esferas sociais que garante a apropriação do excedente social nos termos patrimoniais: precisamente como “botim livre para a formação de fortunas” dos setores privilegiados.103

Como a interpretação dominante do suposto patrimonialismo brasileiro104 enfatiza a variante onde o estamento (stand), ou seja, onde o quadro administrativo e não a liderança assume a proeminência e o efetivo exercício do poder – em próprio interesse e em desfavor tanto da liderança quanto dos liderados –, então nada mais razoável que ilustremos nossa crítica a essa apropriação indébita pela comparação com o caso histórico analisado em detalhe por Weber, e por ele considerado o caso mais puro de patrimonialismo estamental.105

Se prestarmos atenção na análise que Weber desenvolve em seu estudo sobre o confucionismo e taoísmo nas suas relações com o império patrimonial chinês,106 podemos perceber facilmente o quanto seu conceito de patrimonialismo é contextual e historicamente determinado. Como o patrimonialismo jamais se reduz à esfera da política stricto sensu, já que a esfera política em sentido diferenciado e estrito ainda não existe, a dominação social implica uma articulação específica de diversos interesses além dos estritamente políticos. Em primeiro lugar, a confusão entre as diversas esferas sociais, da qual o patrimonialismo retira sua própria condição de possibilidade, exige a existência de uma série de fatores socioeconômicos externos ao que chamaríamos hoje em dia de dominação política em sentido estrito. Alguns desses fatores importantes são: a inexistência de uma economia monetária desenvolvida, a existência de um direito não formal e uma legitimação em grande medida mágico-religiosa do poder político. Todos esses elementos marcam a sociedade chinesa patrimonial.

O ponto central em todos esses casos parece-me a impossibilidade de cálculo racional que todos esses fatores envolvem e estimulam reciprocamente. A extração do excedente social concentrado no estamento patrimonial dos mandarins só pode ser obtida em um contexto onde não apenas existe enorme dificuldade de controle pela autoridade central, mas, também, onde a possibilidade de cálculo da atividade econômica e do produto do trabalho, precisamente pelo pouco desenvolvimento da economia monetária, é reduzida ao mínimo. Toda a possibilidade de cálculo entre receita e despesa, planejamento e racionalização da vida depende da existência dessas precondições que, no caso chinês, não estavam dadas. Sendo uma forma política a extração do excedente social via tributo, o patrimonialismo vive da impossibilidade de se saber o quanto se produz e quais são os custos da produção. Daí ser a tradição a única barreira efetiva aos impostos excessivos. Os mandarins retiravam seu poder desse desconhecimento dos fatores de produção, tanto para iludir o poder do imperador que desconhecia quanto era produzido, quanto para forçar ao máximo permitido pela tradição o pagamento de impostos dos camponeses pobres.

No caso brasileiro, só em meados do século XX se constitui uma verdadeira burocracia com os meios para a atuação em todo território nacional. Mas aqui já num contexto de desenvolvimento capitalista intenso e rápido. O caso brasileiro era, portanto, muito diferente sob todos os aspectos do caso chinês. Primeiro, tomando o caso brasileiro como ilustração, jamais existiu no período colonial qualquer coisa semelhante ao estamento burocrático chinês. A colonização do país foi deixada nas mãos de particulares que eram verdadeiros soberanos nas suas terras onde o Estado português, apenas de modo muito tênue, conseguia impor sua vontade. A ênfase de Faoro em uma dominação de longe de Portugal no Brasil, que atravessava praias e sertões com seus olhos de Big Brother que tudo via e controlava, equivale a uma quimera. Portugal era um país pequeno e pouco populoso, e sua estratégia de delegar a particulares a colonização das novas terras era um imperativo de sobrevivência. Aqui, como em outros lugares, a fantasia histórica serve apenas para corroborar uma tese política sem qualquer fundamento na realidade.

Além disso, entre 1930 e 1980, o Brasil foi um dos países de maior crescimento econômico no mundo, logrando construir um parque industrial significativo sem paralelo na América Latina. Como se pode exibir tamanho dinamismo econômico em um contexto, como o do patrimonialismo, que pressuporia indiferenciação da esfera econômica e, portanto, ausência de pressupostos indispensáveis e ausência de estímulos duradouros de toda espécie à atividade econômica? Essa questão por si só seria um desafio intransponível para os defensores do patrimonialismo brasileiro. Mas ela nunca é feita. Daí essa noção funcionar até hoje como pressuposto central e nunca explicitado de como funciona a realidade brasileira. Para seus defensores de hoje, ela seria tão óbvia que dispensaria explicitação.107

Na sociologia brasileira, portanto, o conceito de patrimonialismo perde qualquer contextualização histórica, fundamental no seu uso por Max Weber, e passa a designar uma espécie de mal de origem da atuação do Estado enquanto tal em qualquer período histórico. Em Faoro,108 que fez, como vimos, dessa noção seu mote investigativo com extraordinário impacto e influência até hoje – enquanto na maioria dos intelectuais brasileiros ela é um pressuposto implícito embora fundamental –, a noção de patrimonialismo carece de qualquer precisão histórica e conceitual. Historicamente, na visão de Faoro, existiria patrimonialismo desde o Portugal medieval, onde não havia sequer a noção de soberania popular e, portanto, se não havia sequer a ideia da separação entre bem privado (do rei) e bem público, o rei e seus prepostos não podiam roubar o que já era dele de direito.

Em segundo lugar, no âmbito de suas generalizações sociológicas, o patrimonialismo acaba se transformando, de forma implícita, em um equivalente funcional para a mera intervenção estatal. No decorrer do livro de Faoro, o conceito de patrimonialismo perde crescentemente qualquer vínculo concreto, passando a ser substitutivo da mera noção de intervenção do Estado, seja quando este é furiosamente tributário e dilapidador, por ocasião da exploração das minas no século XVIII, seja quando o mesmo é benignamente interventor, quando d. João cria, no início do século XIX, as precondições para o desenvolvimento do comércio e da economia monetária, quadruplicando a receita estatal e introduzindo inúmeras melhorias públicas.

A imprecisão contamina até a noção central de estamento, uma suposta elite incrustada no Estado, que seria o suporte social do patrimonialismo. O tal estamento é composto, afinal, por quem? Pelos juízes, pelo presidente, pelos burocratas? O que dizer do empresariado brasileiro, que foi, no nosso caso, o principal beneficiário do processo de industrialização brasileiro financiado pelo Estado interventor desde Vargas? Ele também é parte do estamento estatal? Deveria ser, pois foi quem econômica e socialmente mais ganhou com o suposto Estado patrimonial brasileiro. Como fica, em vista disso, a falsa oposição entre mercado idealizado e Estado corrupto?

A aplicação da noção de patrimonialismo ao caso brasileiro é, portanto, uma óbvia fraude conceitual, destinada a usar o prestígio científico de um dos mais importantes pensadores de todos os tempos, para legitimar uma ideia extremamente conservadora e frágil conceitualmente e lhe dar uma falsa aparência de rigor científico e de crítica social. O nosso liberalismo, falso e conservador como sempre foi, consegue com esse contrabando conceitual passar-se por interpretação inovadora e erudita. Na verdade, a noção de patrimonialismo aplicada à realidade brasileira não vale um tostão furado.

Aliás, a noção de patrimonialismo passa a ser fundamental exatamente por sua imprecisão conceitual. Ela está no lugar da noção de escravidão e serve para tornar invisíveis as relações sociais de humilhação e subordinação criadas nesse contexto. Além disso, tenta criar uma aparência de crítica social, um charminho crítico falso, ao apontar o dedo moralizador contra a elite. No caso, no entanto, a elite falsa, posto que comprada pela elite econômica que permanece invisível na análise, mostrando seu potencial mistificador.

Não é que Faoro nem os outros liberais não falem de escravidão. Eles falam sim. Muito se fala sobre a escravidão e pouco se reflete a respeito. Fala-se na escravidão como se fosse um nome e não um conceito científico que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal. Somos, nós brasileiros, portanto, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força para acumular capital, como acontece até hoje, e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana. Isso é herança escravocrata e não portuguesa. O patrimonialismo, percebido como herança portuguesa, substitui a escravidão como núcleo explicativo de nossa formação. Essa é sua função real. Por conta disso, até hoje, reproduzimos padrões de sociabilidade escravagistas, como exclusão social massiva, violência indiscriminada contra os pobres, chacinas contra pobres indefesos que são comemoradas pela população, etc.

Mas isso ainda não é o pior. O patrimonialismo esconde as reais bases do poder social entre nós. Ele assume que interesse privado é interesse individual privado, de pessoas concretas, as quais se contraporiam aos interesses organizados apenas do Estado. Tudo como se houvesse interesses organizados apenas no Estado, suprema estratégia de distorção da realidade. Uma noção de senso comum do leigo que não percebe os interesses privados organizados no mercado e sua força, ou seja, que não percebe, em suma, como o capitalismo funciona. Daí decorre a noção absurda, mas tida como verdade acima de qualquer suspeita entre nós: a noção de que a elite poderosa está no Estado, com isso invisibilizando a ação da elite real, que está no mercado, tanto nos oligopólios quanto na intermediação financeira.

Se compararmos nosso capitalismo com o narcotráfico, o político corrupto é o aviãozinho do tráfico, quem fica com as sobras; a boca de fumo que faz o dinheiro grande é o mercado da rapina selvagem que temos aqui. O conceito de patrimonialismo serve, precisamente, para encobrir os interesses organizados no mercado, que funcionam para se apropriar da riqueza social, já que a noção de privado é absurdamente pessoalizada, permitindo todo tipo de manipulação. A real função da noção de patrimonialismo é fazer o povo de tolo e manter a dominação mais tosca e abusiva de um mercado desregulado completamente invisível.




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