sábado, 8 de junho de 2024

União Europeia: Da paz à belicosidade

© Foto: Wikimedia

Hugo Dionísio
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Pertencer à União Europeia começa a assemelhar-se àqueles sonhos que nos encantam enquanto dormimos, mas quando acordamos percebemos que são apenas isso, sonhos.

Uma parte importante das tensões criadas na Europa de Leste, perto das fronteiras da Rússia, tem a ver com uma ilusão que se cria, segundo a qual a entrada, por si só, na União Europeia, produz um conjunto de benefícios inquestionáveis, que são caso contrário, não seria alcançável. Mas serão esses benefícios tão inquestionáveis?

Numa União Europeia cuja economia é cada vez mais canibalizada e contida pelos EUA, cuja cimeira do poder esconde muitas vezes o facto de esta ameaça ser a mais grave e limitante de todas, atualmente, o futuro realista que este bloco representa para os países aderentes, não vão além das previsões muito anêmicas de crescimento econômico e, o que é ainda mais grave, coroadas com a exigência de confronto com a Rússia, que afastam completamente a suposição, segundo a qual, a adesão ao clube restrito da Europa Ocidental representava, acima de tudo, uma garantia de paz e segurança.

O caso ucraniano é o mais extremo, mas quer se trate da Geórgia, da Moldávia, da Sérvia, do Montenegro ou de qualquer outro país que tenha pertencido à URSS ou ao “bloco socialista”, o pedido é sempre o mesmo: aderir à UE significa aderir à NATO, aderir A NATO significa ser inimiga da Rússia. De forma cada vez mais pronunciada, ser inimigo da Rússia significa também abrir mão de relações livres com aquela que é atualmente a maior fonte de crescimento econômico, científico e tecnológico do mundo, que é a China. E esta é, talvez, depois da inimizade com o mundo russo, a moeda de troca mais cara que uma nação tem de pagar para pertencer ao seleto “jardim” ocidental.

O Ocidente há muito que deixou de representar a maior fonte de crescimento econômico. Décadas de desindustrialização proposital, neoliberalismo e economia FIRE reverteram esta realidade. De uma posição de expansão, o Ocidente passou para uma posição de contenção da expansão de outros povos. Hoje, a maior garantia de crescimento econômico, para qualquer nação, consiste nas suas relações com os BRICS (Índia, China e Rússia serão os 3 países que mais crescerão em 2024, segundo o FMI).

Se para países como Portugal, Grécia ou Espanha a moeda de troca se media na liberalização dos mercados e na privatização dos recursos nacionais, para que as transnacionais ocidentais pudessem entrar e adquirir o que antes estava na posse do país; como resultado da sua condição geográfica e da sua identidade histórica partilhada com a Rússia e os países da Europa de Leste, as exigências econômicas vêm acompanhadas de uma autêntica declaração de inimizade.

Este requisito tem efeitos dramáticos nestes países. A Ucrânia está aqui para demonstrar isso. Como a Geórgia prova agora e como a Moldávia provará amanhã, como também sente a Sérvia. Concordar em aderir à UE significa declarar guerra a uma parte, muitas vezes uma parte considerável ou mesmo a maioria, da sua própria população. Por outras palavras, nem crescimento, nem paz, nem segurança, nem mesmo direito à memória. Será que alguém consegue extrair algo de construtivo do facto de centenas de milhares de russos que vivem na Estônia já não serem capazes de falar, ler e celebrar a sua língua e a sua história? Eu acho isso difícil de acreditar.

Tal como no caso ucraniano, o que se propõe a estas pessoas é que abram mão da sua história passada, dos seus fundamentos culturais e até religiosos e os substituam por um futuro, apresentado como radiante, mas, na realidade, incerto. Nem mesmo os mais cegos podem negar o processo de destruição da cultura russófona e russófila na Ucrânia, particularmente após o golpe de Estado euroMaidan. Porque não podem negar a perda de influência do Ocidente no mundo e a crise que surge no seu horizonte.

Neste contexto, a organização que se apresenta como a garantia da paz na Europa, constitui, nesta nova era, um caminho quase certo para a guerra. Podem dizer que “a culpa é da Rússia, que os impede de aderir às estruturas ocidentais porque não quer perder o seu domínio”. Mas, depois de a própria Rússia, em tempos de ilusão própria, ter tentado aderir ao clube ocidental e ter sido negada, não é normal que este país tenha começado a olhar com desconfiança para quem compete, aliás, por espaço perto das suas fronteiras? Algum país gosta de estar cercado de inimigos?

Assim, esta vertigem ou ilusão de que, ao pertencer à UE, um país pertence automaticamente à elite e terá o seu futuro repleto de riquezas abundantes envolvidas nos mais elevados “valores europeus”, ameaça despedaçar nações inteiras. A exigência de que, para aderir, seja necessário renunciar ao passado é simplesmente inaceitável para muitas pessoas. O que é compreensível: que tipo de futuro pode ser baseado num passado vazio, renegado e amaldiçoado? A adesão à UE significa, para os países da Europa Oriental, uma guerra permanente com o seu passado. Vejamos o caso da Bulgária ou da Eslováquia.

Mas não pensem que, para os países do sul da Europa, não exigindo tal moeda de troca, tudo resulte em ganhos certos e inegáveis. Do ponto de vista econômico, a história está longe de ser unívoca. Podemos dizer que as economias destes países foram unidas, não pela adesão, mas pela incorporação no seleto clube ocidental. Quanto ao seu próprio povo e às suas condições de vida, ainda aguardam a tão desejada “convergência”.

Contudo, também não é sério dizer que a entrada destes países na União Europeia representou um retrocesso absoluto desde o início . É um pouco como ser pobre entre ricos. Ser pobre, entre os pobres, é muito pior. Portugal, por exemplo, quando entrou na Comunidade Econômica Europeia, estava a debater-se com brutais lacunas infra-estruturais. A população ativa era muito pouco qualificada, em termos salariais, estava entre as mais pobres de toda a Europa. Neste sentido, o potencial de aproveitamento do acesso a um mercado de centenas de milhões de pessoas era muito elevado. Essa realidade acabou se refletindo em prateleiras repletas de produtos inéditos, ainda que muitas vezes a maioria das exchanges não conseguisse comprá-los. Mas, no início, mesmo este problema parecia promissor e parecia estar resolvido. Para tal, a União Europeia disponibilizou milhões em fundos estruturais, o que traria o desenvolvimento nacional.

Para um país como Portugal, os fundos comunitários recebidos foram acompanhados por uma exigência de destruição da sua indústria, agricultura e pescas. Tudo isto em troca da transformação numa economia de serviços. Como alguém disse uma vez, as estradas que foram construídas com os fundos não foram construídas para os portugueses; Foram feitos para que a Europa Central aqui colocasse os seus produtos e turistas.

De 1986 a 2029, Portugal e a UE terão “investido” mais de 200 mil milhões de euros em fundos estruturais. Não seria sério dizer que não servirão para nada. Mas sendo um valor aparentemente desconcertante, a verdade é que o país pagou muito mais do que a mera aquisição de produtos e serviços do norte e centro da Europa.

Atualmente, quando olhamos para o contraste visual proporcionado pela passagem de carros muito antigos, rodeando outros, tão caros quanto raros… Não podemos deixar de sentir um sabor agridoce. No melhor! Portugal é o país da UE com mais trabalhadores empregados a viver abaixo do limiar da pobreza, muitos também ficando sem-abrigo, dormindo nas ruas com os melhores hotéis e os apartamentos mais competitivos para aluguer turístico.

A eterna crise e a austeridade constituem o legado da segunda fase da adesão europeia, que resultou da entrada na Zona Euro. Redução do crescimento econômico e salarial, desregulamentação das leis laborais e do direito à habitação, ao mesmo tempo que se multiplicaram as privatizações, as parcerias público-privadas e os benefícios para os monopólios ocidentais. Tudo justificado pela nova ambição: “contenção orçamental”. O objectivo declarado já não era a paz, o crescimento e o desenvolvimento. Tornaram-se as “contas nacionais certas”.

Embora seja verdade que a taxa de câmbio ainda não foi, de longe, tão grave e destrutiva como a exigida aos países da ex-URSS, é importante compreender que os fundos recebidos não têm custo zero. Pelo contrário, são acompanhados por um processo de substituição, formatação e condicionamento econômico e sociocultural, que visa afastar estes países da sua dimensão “sul” e aspirar, como um burro a uma cenoura, a pertencer ao norte. Anexados aos fundos vêm os bastões de condicionalidades, recomendações, orientações e exigências inconfessáveis ​​e inconfessáveis, que hipotecam o futuro prometido.

O poder de Bruxelas cresce à medida que enfraquece o dos Estados-membros periféricos, que se viram sem moeda para influenciar a política cambial, sem poder para definir a taxa de juro, que passou a ser fixada pelo BCE, e acorrentados aos critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento. A tudo isto Bruxelas, e os partidos de submissão, fazem da fome a cura para a anorexia. A vítima precisa ganhar peso e o Doutor Von Der Leyen prescreve uma cura para perder peso.

A verdade é que a Comissão Europeia nunca ouviu uma recomendação exigindo contenção nas Parcerias Público-Privadas para a saúde ou para as autoestradas, que garantem rentabilidades anuais até 13% ao ano; nunca exigiu cortes nos indultos e isenções fiscais para grandes empresas ou impostos sobre os seus lucros pornográficos. As recomendações do Semestre Europeu, ao apelarem à “contenção orçamental”, referem-se à contenção salarial, ao emagrecimento dos serviços públicos e às privatizações, muitas privatizações, numa gula sem fim por cada vez mais dinheiro fácil.

No final de tudo isto, cabe perguntar: se os países do Sul receberam tantos fundos, se para os receber tiveram que cumprir as condições impostas (condicionalidades de política econômica e fiscal, revisões constitucionais e adoção de medidas econômicas e políticas instrumentos de regulação) e se os receptores não atingiram, em mais de 30 anos, os níveis de desenvolvimento dos países da Europa Central e do Norte, apesar de isso estar prometido, então a resposta só pode ser uma: é porque não foi suposto!

E é isto que dói ouvir dos euroentusiastas e dos fanboys de Bruxelas. Mas, como é que o seu conto encantador preferido não passa de um sonho adiado, cujos pressupostos indicam que, afinal, esse adiamento é eterno, porque, no quadro da divisão europeia do trabalho, não cabe aos periféricos países desenvolvam atividades de elevado valor acrescentado? E nada realça mais esta realidade do que os dados relativos à convergência salarial: face à promessa de convergência futura, não foi apenas a economia portuguesa que não a cumpriu, mas todas as economias periféricas da União Europeia. Ao crescerem, nunca conseguiram convergir, com as distâncias entre os do sul e os do centro e do norte da Europa quase sempre se mantendo ou aumentando.

O facto é que o único país pequeno e periférico que ousou romper com esta lógica foi a Grécia. Hoje, todos sabemos onde foi parar a Grécia. Acusaram o país de roubar, mentir, falsificar, tudo porque o respectivo governo cometeu o “crime” de querer pagar ao seu povo o mesmo que ganhavam os trabalhadores dos países do centro e do norte da Europa. Os maiores países europeus, que excedem constantemente os limites do défice, nunca foram sujeitos ao “procedimento de défice excessivo” e às medidas de austeridade para corrigi-lo.

Além disso, no caso português, entre os fundos recebidos e a aquisição de produtos e serviços fornecidos pelo centro e norte da Europa, entre 1996 e 2023, este país deu mais do que recebeu, explicando o real significado desta aventura europeia. Segundo o Banco de Portugal, entre o que entrou e o que saiu, o país teve um saldo negativo de 61 mil milhões de euros.

Concluindo, a cenoura que atrai o burro, os fundos estruturais europeus, nada mais são do que empréstimos disfarçados, disfarçados em forma de “investimento”, mas cujo retorno vale mais para quem os concede – os países do Norte e Centro da Europa – do que para aqueles que os recebem. O “investimento” em fundos constitui assim um duplo benefício: controlo econômico e político sobre os beneficiários dos subsídios; retorno econômico a médio e longo prazo.

O facto de estes fundos serem atribuídos no âmbito de estratégias (estratégia de Lisboa; Estratégia 2020 e 2030) desenhadas em Bruxelas, determina que não visam resolver os problemas reais dos países periféricos. Os fundos europeus visam resolver os problemas que os países periféricos têm para que possam ser utilizados como instrumentos para enriquecer os países centrais. A instrumentalização que os países da Europa Central e do Norte fazem dos países de Leste, no que diz respeito à estratégia de dominação das terras russas e eslavas, encontra paralelos nos países da Europa do Sul e do Mediterrâneo, nomeadamente aproveitando as ligações geográficas intercontinentais que a esses países se referem, para além da sua importância como mercados de destino e como reservas de mão-de-obra qualificada e barata, que se formam, de forma satisfatória, com fundos próprios da União Europeia.

É, portanto, imperativo desmantelar e denunciar este ciclo de exploração, cujos benefícios não são distribuídos equitativamente e que tende a manter diferenças relativas ao longo do tempo, diferença que visa manter este ciclo intocável. Além disso, a esta dimensão político-econômica acrescenta-se outra, que o conflito que ocorre na Ucrânia desmascara. Países periféricos e distantes foram subitamente eleitos como inimigos da Rússia, sem que o seu povo fosse levado em conta, que assistia inconscientemente à transferência dos seus fundos para o esforço de guerra.

O mais trágico é que quem denuncia o fracasso deste projeto europeu é acusado de ser “antieuropeu”, como se esta fosse a única formulação possível, como se a história humana não tivesse cemitérios cheios de histórias inevitáveis. Quando esta União Europeia entra na sua fase belicosa, é mais fundamental do que nunca falar de uma Europa de paz, cooperação e amizade entre os povos. Uma Europa em que abertura não signifique submissão.

As próximas eleições para o Parlamento Europeu serão mais um momento em que muito pouco se falará sobre a União Europeia, o seu carácter autocrático, o seu macrocefalismo. Em vez disso, será cantada uma Europa inexistente que, ao mesmo tempo que celebra os “valores europeus”, exige a fractura da Europa continental. Ao celebrar a “união”, força um país a desistir da sua história e substituí-la por um revisionismo que encobre o seu passado fascista. Ao mesmo tempo que exige a renúncia da sua economia, substitui-a pela eterna dependência do poder político dos monopólios, representados em Bruxelas.

Pertencer à União Europeia começa a assemelhar-se àqueles sonhos que nos encantam enquanto dormimos, mas quando acordamos percebemos que são apenas isso, sonhos. O projeto europeu não consegue sobreviver nem à luz do dia, muito menos quando se acorda.





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