Se quisermos antecipar as escolhas estratégicas da América devemos abandonar o axioma da racionalidade.
Já não existem estadistas no Ocidente. É preciso procurar no passado remoto para encontrar homens como Bismarck, Pombal, De Gaulle ou Kemal Ataturk. Hoje, na apagada e vil tristeza da União Europeia, o que grassa são vassalos mentecaptos. E nos EUA, indivíduos senis ou demagogos. Agora, para encontrar estadistas é preciso voltar os olhos para o Oriente.
A pergunta que se coloca é o porquê desta situação de facto. É ao que tenta responder Emmanuel Todd ao longo das 372 páginas do seu novo livro, “La défaite de l'occident”. O seu método e argumentação está longe do marxismo. Ainda assim, consegue apresentar respostas engenhosas e insights agudos. Mesmo que não se concorde com as relações de causa e efeito por ele apontadas, o livro pode ser lido com satisfação e proveito. É uma obra estimulante – um autêntico marco no pântano mediático e intelectual europeu, soçobrado no pensamento único, na russofobia, no unanimismo e no servilismo às ordens & modas que vêm do outro lado do Atlântico.
O método marxista privilegia a análise da infraestrutura da sociedade, o modo de produção, as relações de produção, a estrutura de classe e de dominação econômica. Isso de certa forma secundariza os fenômenos de superestrutura que, assim, são encarados como uma decorrência dos primeiros. Não é o caso de Todd que, como antropólogo, dá grande ênfase a fenômenos de superestrutura, conseguindo assim uma análise original e criativa. Louve-se também a sua coragem de ir na contra-corrente do atual (medíocre) panorama intelectual europeu.
Na introdução da obra Todd principia por alinhar o que ele considera “as dez surpresas” da guerra, referindo-se à Operação Militar Especial iniciada pela Rússia em Fevereiro de 2022 no território da Ucrânia. Ainda que os factos apontados só fossem surpresa para aqueles desinformados pelos media corporativos, eles na generalidade estão corretos. O mais surpreendente deles é provavelmente o oitavo apontado por Todd: “a indústria militar americana é deficiente; a superpotência mundial é incapaz de assegurar o aprovisionamento em obuses – ou não importa que outro ítem – ao seu protegido ucraniano”.
Na verdade, conclui Todd, “no fundo é a nossa surpresa que foi surpreendente” pois os russos fizeram aquilo que haviam anunciado, entraram em guerra. Nem todos, recorda, foram surpreendidos. John Mearsheimer, professor da Universidade de Chicago, adepto da escola realista de geopolítica, já havia prevenido deste possível/provável desenlace. No entanto, a vassalização dos países da União Europeia em relação a Washington obnubilava as mentes dos seus governantes (o que continua até hoje, como se verifica com a reeleição da hárpia de Bruxelas).
Até aqui estamos no domínio dos factos, mas o mais interessante é a explicação que Todd apresenta para os mesmos. A sua tese é de que o Estado-nação não existe mais no Ocidente, o que “torna compreensível o comportamento dos ocidentais”. Ele explica em pormenor as razões desta tese e afirma que os Estados Unidos e suas dependências vivem um Estado pós-imperial. “Se a América conserva a maquinaria militar do império, ela não tem mais no seu cerne uma cultura portadora de inteligência e é por isso que se entrega à prática de ações irrefletidas e contraditórias tais como uma expansão diplomática e militar acentuada numa fase de contração maciça da sua base industrial – sabendo que 'guerra moderna sem indústria' é um oxímoro”.
Em contraposição na Rússia, no Oriente e no resto do mundo o conceito de Estado-nação continua em vigor e é o pano de fundo que orienta as cabeças pensantes dos seus governantes. Em consequência, considera Todd, este modo de pensar divergente com o Ocidente atual gera muitas contradições e problemas não resolvidos. Ele assinala um deles: “O que é curioso é a pretensão das elites europeias de fazer coexistir a ultrapassagem da nação e a sua persistência”.
O primeiro capítulo do livro trata da pseudo-surpresa da “estabilidade russa”. Todd faz uma pergunta retórica: “Como, com uma intelligence community de cem mil pessoas só nos Estados Unidos, puderam eles imaginar que o corte do Swift e as sanções iriam deixar de rastros este país de 17 milhões de km2, dispondo de todos os recursos naturais possíveis e que, desde 2014, se havia abertamente preparado para enfrentar tais sanções?” A enormidade do erro cometido é demonstrada naquilo a que chama “estatística moral” (taxas de homicídios, de corrupção, demográficas, etc); pela recuperação económica russa e – paradoxalmente – pelas próprias sanções! É assim que “em 2012 a Rússia produzia 37 milhões de toneladas de trigo e em 2022 80 milhões, mais do que duplicando em dez anos”. Mas os responsáveis ocidentais permaneceram cegos para a realidade, cegos para a diversidade do mundo.
O capítulo seguinte trata do “enigma ucraniano”. Todd assevera que tanto os russos como os ocidentais consideravam a Ucrânia um "failed state”, corrupto e plutocrático. Isso explicaria que a Operação Militar Especial tivesse começado com apenas 120 mil soldados russos (quando a proporção habitual para uma tropa invasora é três para cada defensor). Ele assinala também que “as classes médias do Leste [da Ucrânia] emigraram para a Rússia” e considera que “a Ucrânia era incapaz de se tornar um Estado-nação”. Com o fim de uma esperança democrática para a Ucrânia, com o golpe do Maidan em 2014, restaram dois polos no país: um ultra-nacionalista em torno de Lviv, na Galícia, e outro em torno de Kiev onde decorreu a Revolução laranja e o Maidan. Estes lugares foram o caldo de cultura dos neonazis ucranianos, cujas raízes estavam na organização de Stepan Bandera que colaborou com a Wehrmacht e a SS no massacre de judeus e polacos durante a II Guerra Mundial.
O que pedia Moscovo eram três coisas. Primeiro, conservar a Crimeia (estrategicamente vital para a frota do Mar Negro); segundo que as populações russas do Donbass tivessem uma situação aceitável; terceiro que a Ucrânia tivesse um estatuto de neutralidade. Ora, conclui Todd, “uma nação ucraniana segura da sua existência e do seu destino na Europa ocidental teria aceite estas condições; ter-se-ia mesmo desembaraçado do Donbass” – tal como fez pacificamente a República Chéquia em relação à Eslováquia por ela dominada. Mas depois de 2014 Kiev continuou a guerra na vã esperança de reconquistar territórios de população russa como o Donbass e a Crimeia.
No capítulo terceiro Todd analisa a Europa oriental e a sua “russofobia pós-moderna”. Todd classifica o Leste europeu como “nosso primeiro terceiro-mundo”, pois trata-se de uma zona dependente e dominada – exportadora de produtos primários como cereais e madeira. Na Europa do Leste da pré-guerra Todd assinala um “sintoma clássico do subdesenvolvimento educativo: a sobre-representação dos judeus no seio de classes médias reduzidas”, o que explica também o anti-semitismo na Polónia, Hungria, bálticos, etc. Foi a sua libertação pelo Exército Vermelho que permitiu o florescimento educativo e o desenvolvimento, engendrando novas classes médias. Mas a russofobia prosperou, posteriormente, apesar de a Rússia se ter retirado “sem combater e mesmo com uma certa elegância”. Donde se conclui que não se deve esperar gratidão para com os benfeitores... Segundo Todd, estes países hoje “são dominados por classes médias fabricadas pelo comunismo e que, uma vez libertadas, puseram seus proletariados ao serviço do capitalismo ocidental”.
“O que é o Ocidente?” é a pergunta filosófica que intitula o quarto capítulo. O autor associa a ideia de Ocidente à democracia liberal e, como Weber, ao fator religioso. No entanto, conclui que a democracia liberal redundou em oligarquias liberais, que ignoram as maiorias (a proteção das minorias tornou-se uma obsessão no Ocidente). Assim, muito simplesmente, ainda que subsistam eleições “o povo deve ser mantido afastado da gestão econômica e da repartição da riqueza, numa palavra: enganado. Este é o trabalho da classe política, tornou-se mesmo o trabalho ao qual ela se dedica prioritariamente”. Assim, os ditos cujos políticos já “não têm mais tempo para se formarem na gestão das relações internacionais”. Começamos assim, constata, a “perceber a real inferioridade técnica de Joe Biden ou de Emmanuel Macron frente a Vladimir Putin ou a Xi Jinping, e a compreender as razões”.
O outro aspecto que definiria o ocidente, o da religião, também se desvaneceu. Segundo Todd, existem três fases da religiosidade cristã: a ativa, a zumbi e a zero. Na primeira, o comparecimento ao serviço dominical é forte. Na segunda, a zumbi, este desaparece mas perduram os ritos de passagem que acompanham o nascimento, casamento e morte. Finalmente, “a etapa cristã zero caracteriza-se pelo desaparecimento de batismo e um crescimento maciço da incineração”. Todd considera que o “marcador antropológico que permite fixar o fim absoluto do cristianismo enquanto força social” é o casamento civil, o qual tem a vantagem de ser estatisticamente mensurável. Segundo Todd, pode-se definir de modo preciso e absoluto que os anos 2000 são os do “desaparecimento efetivo do cristianismo no Ocidente”. Isto, considera, resultou numa fuga para frente rumo ao niilismo.
Não se poderia estar mais de acordo com que afirma Todd no quinto capítulo: “A União Europeia desapareceu por trás da NATO”. O capítulo intitula-se “O suicídio assistido da Europa” e constata que “o eixo Berlim-Paris foi suplantado por um eixo Londres-Varsóvia-Kiev pilotado de Washington, reforçado pelos países escandinavos e bálticos tornados satélites diretos da Casa Branca ou do Pentágono”. Todd informa também da introdução de um neologismo na língua russa: a palavra macronar, que significa “falar para não dizer nada”. Quanto aos alemães, considera “um ato de submissão prodigioso” terem aceite sem resmungar que o seu protetor dinamite um elemento essencial do seu sistema energético”, o Nord Stream. Em suma, considera que “O projeto europeu está morto” e a Europa do Euro é constituída por “agregados atomisados, povos de cidadãos apáticos e de elites irresponsáveis”. Chega a alertar para a “evolução das elites europeias rumo a uma submissão de tipo latino-americano” diante do servilismo imperante.
Quanto ao belicismo britânico, considera-o “ao mesmo tempo triste e cômico” (cap. 6). As proclamações do seu Ministério da Defesa “dão a impressão de reviver, num modo de paródia, a batalha da Inglaterra ou a do Atlântico”. A sua megalomania cinematográfica recorda velhos filmes do James Bond. Um país em implosão. O seu belicismo concentra-se em instigar os outros, o regime de Kiev no caso. No entanto, só foi capaz de lhe fornecer 14 tanques Challenger 2. “Sente-se sobretudo perfilar-se uma moralidade zero, à qual também poderíamos atribuir a entrega à Ucrânia de munições a urânio empobrecido”, afirma.
Quanto à Escandinávia (cap. 7), a par do fim do protestantismo Todd dá uma explicação psicológica para a adesão da Suécia e da Finlândia à NATO: “não era a necessidade de serem protegidas contra o russo; era uma necessidade de pertença em estado bruto” (!?).
“É próprio de um império já não poder separar aquilo que, na sua evolução, é interno do que é externo”, reflete Todd acerca dos Estados Unidos. Ali, o fim do Estado-nação redundou na oligarquia e no niilismo, que é o título do capítulo 8. “A sua dependência econômica do resto do mundo tornou-se imensa; a sua sociedade decompõe-se”. O autor dá como exemplo do niilismo aplicado a evolução da mortalidade nos Estados Unidos, por alcoolismo, suicídio e adição a opióides, recordando que a alta da mortalidade segue a par com as despesas de saúde mais elevadas do mundo.
Pode-se considerar que Todd faz uma inversão da relação de causa e efeito quando atribui a decadência estado-unidense, assim como o seu declínio intelectual, ao “protestantismo zero” – no entanto, não se pode deixar de considerar como corretas muitas das suas constatações. Tem interesse ver o que ele diz do modo como a classe dominante encara a meritocracria: “Mas eis que chega a etapa final do apodrecimento da democracia americana, o fim do sistema meritocrático, o encerramento sobre si mesmas das classes superiores, a passagem ao estágio oligárquico. Os privilegiados estão cansados de jogar o jogo da meritocracia, ainda que saiam ganhando. Os mais ricos, qualquer que fosse o nível intelectual dos seus pais, sempre estiveram em condições de comprar lugares em Harvard, Yale ou Princeton. Em contrapartida, os demais das categorias médias superiores deviam sofrer, muitas vezes com êxito, o ritual dos [testes] SAT”.
No capítulo da economia estado-unidense (o nono), Todd trata – corretamente – de “desinchar” o PIB apregoado pelo país. E chega a propor um novo conceito: o de PIR, ou Produto Interno Real. Assim, menciona as vicissitudes da produção de petróleo e gás no país, com os seus altos (devido ao efémero fracking) e baixos – mas com a incapacidade de preencher o resto do espectro: “a fabricação de objetos, ou seja, a indústria no sentido tradicional”. Na verdade, está a falar das janelas vazias da matriz de insumo-produto, embora não use expressão. Isto foi posto em evidência, afirma, “por uma muito banal incapacidade de produzir suficientes obuses de 155mm, a norma da NATO”. Compreende-se assim, conclui, porque “nada mais pode ser produzido em quantidade suficiente [nos EUA], mísseis de todos os tipos inclusive”. A guerra é portanto o “grande revelador” que mostra o afastamento cavado entre a percepção que temos da América (e que a América tem de si mesma) e a realidade do seu poder”.
Na realidade, o PIB dos EUA é constituído em grande medida por serviços cuja eficácia ou utilidade nem sempre é perceptível. Ele menciona os remédios por vezes assassinos como no caso no caso do opióides (e acrescento eu as chamadas “vacinas” Covid com tecnologia mRNA), advogados pagos regiamente, financeiros predadores, guardas de presídio, agentes de serviços de inteligência, etc. Assim, será preciso desinchar o PIB dessa massa de rendimentos parasitas para chegar a algum valor real do produto interno. Ele analisa a dependência dos EUA das mercadorias importadas, o acréscimo do défice comercial apesar da orientação protecionista oficial e verifica o “caráter irrevogável do declínio americano”. Todd menciona ainda os “meritocratas improdutivos e predadores”, a multiplicação de diplomados [em coisas inúteis] que cria uma multidão de parasitas, a dependência dos trabalhadores importados e, finalmente, “a doença incurável do dólar”. Assim, conclui que “a América produz a moeda do mundo, o dólar, e a capacidade que ela tem de extrair riqueza monetária do nada paralisa-a”.
O “bando de Washington” merece um capítulo à parte (o décimo). “Vamos agora examinar à lupa e com o olhar de um antropólogo o grupo de indivíduos que, concretamente, conduz a política externa da potência doente em que se tornou a América”, propõe. Tal como se estuda uma comunidade primitiva no seu meio natural, o objeto de estudo será agora a cidade de Washington. Será particularmente o seu establishment geopolítico, popularmente descrito como o “Blob” (que poderia ser traduzido como a “Gosma”).
É aqui que analisa o fim da elite do poder WASP, tão querida de Wright Mills. Basta ver os atuais manda-chuva em Washington (Biden, Sullivan, Blinken, Nuland, Austin), nenhum deles WASP. Nas universidade igualmente os WASP estão sub-representados. “O fim da elite do poder, num clima de moralidade zero, é acompanhado pela volatilização de todo ethos comum ao grupo dirigente. A elite WASP indicava uma direção, objetivos morais, bons ou maus. O grupo dirigente atual (não ouso chamá-lo elite) não propõe nada disso. No seu seio subsiste só uma dinâmica de poder puro que, projetada sobre o mundo exterior, transmutou-se numa preferência pela potência militar e a guerra”, afirma.
O nome “Blob” designa “um organismo unicelular de aspecto viscoso que se encontra na floresta, onde se multiplica absorvendo as bactérias e os cogumelos que o cercam. Ele é destituído de cérebro". Assim, “o Blob washingtoniano corresponde à minha visão de um grupo dirigente desprovido de referências intelectuais ou ideológicas externas a si próprio”, explica. Os seus integrantes têm um interesse pessoal em que os EUA tenham uma política mundial ambiciosa pois isso cria mais postos de trabalho. Dele fazem parte, por exemplo, figuras como a Nuland e a família Kagan. No entanto, Todd rejeita a noção de Estado profundo (deep state), propondo em alternativa a de “Estado superficial” (shallow state). Assim, monstros burocráticos como o Exército, a Marinha, a USAF, a CIA, a NSA são povoados pelo pequeno bando de semi-intelectuais que habitam o Blob, uma sub-aldeia de Washington.
O título do capítulo 11 é provocador: “Porque o resto do mundo escolheu a Rússia”. Como ele destacou a princípio, a Rússia e o resto do mundo mantêm a noção de Estado-nação bem como as noções tradicionais de família. Por outro lado, após a grande recessão de 2007-2008 o Ocidente deixou de ser um vencedor admirável. Além disso, observa, “o narcisismo ocidental, a cegueira que se segue, tornou-se um dos trunfos estratégicos da Rússia”. Isso explicará porque a grande massa dos países do resto do mundo simplesmente não condenou a Rússia. É o caso dos BRICS, refratário à dominação económica americana, constituído em 2009. Mas o campo ocidental continuou a pensar e a agir como se fosse sempre o senhores do mundo e os seus media continuam a considerá-lo como a única “comunidade internacional”.
Assim, “os ocidentais não reconheceram que ao deslocalizar a sua indústria eles se propunham a viver como uma espécie de burguesia planetária, como exploradores do trabalho sub-pago do resto do mundo”, diz Todd. Numa afirmação ousada, considera que “o proletariado laborioso dos anos 1950 transmutou-se na plebe dos anos 2000, por instigação dos teóricos e práticos da economia globalizada”. Isso teve consequências ao nível da superestrutura mental, que ele aponta. Vale a pena citar por extenso a sua explicação:
“Já mencionei o desconcerto moral dos operários americanos. A ablação do seu valor enquanto produtores privou-os de utilidade social e empurrou-os para o alcoolismo, a se encherem de opióides e, no desespero, a suicidarem-se. Resta explicar porque a maioria deles escolheu votar por Trump ao invés de por fim ao seus dias; porque os meios populares da Europa ocidental também tombaram no voto “populista, xenófobo, de estrema-direita” mesmo nos lugares onde uma imigração maciça e descontrolada não os ameaça. Por que as populações que sobreviveram ao desmantelamento da sua indústria são agora de direita? É muito simples: Os partidos de esquerda, sociais-democratas ou comunistas, apoiavam-se nas classes operárias exploradas. Os partidos populistas apoiam-se nas plebes, cujo nível de vida decorre em grande medida do trabalho sub-pago dos proletários da China, do Bangladesh, do Maghreb ou de alhures. Surpreendo-me pensando o que se segue: os eleitores populares do Rassemblement national são, ao olhar da teoria marxista mais elementar, extratores de mais-valia à escala mundial. Eles são portanto muito normalmente de direita. Assim como Engels e Lenine haviam pressentido, o livre-comércio (libre-échange) corrompe, mas podemos acrescentar: o livre comércio absoluto corrompe absolutamente.
“Esta análise cruel permite-nos também compreender porque é tão difícil reindustrializar. Se bem que a deslocalização de numerosas atividades produtivas tenha contribuído para definhar cada vez mais nossas províncias e periferias, o livre-comércio cumpriu sua promessa: favorecer o consumo a expensas do produtor, transformar o produtor em consumidor e o cidadão produtivo em plebeu parasita, no fundo dificilmente desejoso de reencontrar o caminho e a disciplina da fábrica”.
O fracasso da guerra econômica dos Estados Unidos e dos seus vassalos contra a Rússia é notável, embora na Ucrânia haja uma verdadeira guerra e o seu povo sofra um martírio. Mas já na década de 1920, quando a Sociedade das Nações preconizava sanções econômica como substituto para a guerra, elas haviam fracassado. Para funcionar, a sanção econômica teria de abolir a neutralidade dos não-beligerantes e obter a sua participação – mas isso não se verificou no caso da Rússia. Todd reconhece mesmo que “o resto do mundo apoiou a Rússia no seu esforço para quebrar a NATO”. E com uma agravante de peso: “A apreensão ilegal dos haveres russos no estrangeiro levantou uma vaga de terror entre as classes superiores do resto do mundo. Ao capturar o dinheiro e os iates dos oligarcas russos, o Estados Unidos (e seus vassalos) ameaçaram, de facto, os bens de todos os oligarcas do mundo”, considera Todd. E conclui ironicamente: “Saudamos assim o efeito democrático que tiveram as sanções que, na prática, aproximaram o resto do mundo dos seus povos”.
Finalmente, a conclusão do livro analisa “Como os Estados Unidos caíram na armadilha ucraniana, 1990-2022”. Ele considera que a queda da URSS recolocou a história num movimento duplo, desencadeando-se uma vaga de expansão da América para o exterior enquanto no interior dos EUA verificava-se um acréscimo da pobreza e da mortalidade. Ao mesmo tempo, todos os atores da guerra, Rússia inclusive, tendem a um estado de religião zero. Este nem sempre se manifesta pelo surgimento de um estado de espírito niilista (como em França, como ele aponta), que nega a realidade do mundo e conduz a taxas de fecundidade reduzidas entre todos (EUA, RU, França, Escandinávia, Alemanha e Rússia). Quanto aos EUA, “hoje não é mais um Estado-nação”, afirma. É assim que a guerra na Ucrânia “fecha o círculo aberto em 1990. A vaga expansionista, que continua a esvaziar a América da sua substância e energia, veio se embater contra a Rússia, nação inerte mas estável”.
Todd distingue quatro grandes etapas deste período. A Fase 1, nos anos que se seguem à queda da URSS, o ator central, os EUA aceitam a perspectiva de uma paz geral. Na Fase 2 (1999-2010) decorrem dez anos de arrogância, em que a fração destinada às despesas militares aumenta e os EUA põem-se a sonhar com o domínio absoluto sobre o mundo. Nesta fase sucedem-se os fracassos militares (Iraque, Afeganistão). Na Fase 3 vem o tempo do recuo, no tempo da crise das subprimes (2008). Por fim chega a quarta e última fase, que ele intitula “a saída do real”. Os Estados Unidos caem na armadilha da guerra na Ucrânia, arrastado pelo “sonho niilista dos nacionalistas ucranianos”. Ele diz-se convencido de que “os esforços dos Estados Unidos para separar a Alemanha da Rússia – uma das suas obsessões estratégicas desde 1990 – acabarão por fracassar”. Assim, a derrota americano-ucraniana abrirá o caminho para a sua reaproximação (o que explica, em parte, o comportamento fugidio do chanceler Scholz). Por outro lado, afirma, “a expansão da UE é claramente um sub-produto da da NATO”.
O livro conclui com um postscript escrito em 30/Out/23, em que considera Gaza como a confirmação do niilismo americano. “As três semanas que se seguiram à retomada do conflito entre Israel e o Hamas, em 7 de Outubro de 2023, fizeram-nos ver, em estado bruto, como pulsão, a preferência de Washington pela violência. Confrontados com uma guerra que matava sobretudo civis, dos dois lados, os Estados Unidos pesaram imediatamente em favor de um agravamento do conflito”. Deslocaram um primeiro porta-aviões para o Mediterrâneo oriental a fim de apoiar Israel, mas “esta reação instintiva não correspondia a nenhuma necessidade militar”. Biden efetua a seguir uma visita de solidariedade a Tel Aviv e pronuncia no retorno um discurso de uma simplicidade infantil e recusa na ONU uma resolução para instaurar “uma trégua humanitária imediata”. Com este voto “os Estados Unidos decidem, em plena guerra da Ucrânia, alienar-se imediatamente e duravelmente do mundo muçulmano”, observa. E conclui: “Se quisermos antecipar as escolhas estratégicas da América devemos portanto, com toda urgência, abandonar o axioma da racionalidade. Os Estados Unidos não estão em busca de ganhos, avaliando custos. Na aldeia de Washington, no país dos tiroteios em massa, na hora da religião zero, a pulsão primária é uma necessidade de violência”.
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