Imagem: Andreea CH
Por PEDRO PENNYCOOK*
Uma língua que me abraça e, com a mesma força, me empurra para fora
Lembro do lançamento de meu primeiro livro.
Era uma pequena coletânea de poesias, agrupadas sem revisão e bancada a custos pessoais. Foi lançado numa livraria de shopping. Adquiria sua dignidade literária artificialmente. Uma mesa deslocada, cortando o que cotidianamente cumpria função de corredor, um terno comprado às pressas, uma caneta-tinteiro emprestada de colegas. Seriedade que, à sua forma, buscava camuflar as palavras mal escritas que eram celebradas ali. A dignidade possível.
Nunca havia visto minha avó com um livro em mãos. O meu era o primeiro. Ela o olhava sem saber muito bem o que fazer com aquele objeto estranho. Segurava-o com um misto de zelo e estranhamento, apego profundo ao mesmo tempo em que distante. Ela o segurava com as mesmas mãos que me abraçava.
Era uma extensão de mim, meu corpo enfim folheado, misto de quem precisa agarrá-lo pelas palavras para que não a escape e empurrão para confluí-las ao inevitável. Minha infância toda eram aquelas mãos me abraçando como objeto estranho. Família era não saber o que fazer exatamente de mim. Amor como pertencimento indecifrável.
Meu primeiro trabalho de filosofia saiu em língua estrangeira.
Era necessário que fosse assim. E me espantava saber que, embora tecnicamente desconhecesse o inglês, a familiaridade com a qual minha avó impunha-o era a mesma que a vi segurar aquele folheto de poemas. Quinze anos atrás. Ela o segurava com a segurança de quem não precisava ler para entendê-lo, uma segurança que jamais tive mesmo quando os escrevi. Lia-me com as mãos.
Aprendi com minha avó que se lê com as mãos.
Como cafuné.
Era a gratuidade com a qual aquela língua me despossuía que me assombrava. Meu primeiro “trabalho de verdade”, estreia em filosofia, e não falava a língua em que nasci. Espantava que aquele livro me lembrava não falar a língua da minha família. Talvez nunca tê-la falado.
Dépaysement.
Agora somente sua estrangereidade exacerbava em letras o que sempre me foi experiência solitária e interna. Como sonhei com aquele dia, como perscrutei aquela língua. Obstinadamente. Eu a desejei todos os dias, sentindo seus ritmos, encostando em seus gestos, desenhando seus sons. Fazia de minha boca terra arrasada da qual ela pudesse finalmente brotar.
Aprendi inglês como quem conquista para si uma voz.
Foi preciso aprender outra língua para tal.
Minha.
Não era conquistá-la a lembrança de ter em mãos aquilo que por tanto tempo sonhei? E, no entanto, ainda era a mesma sensação das mãos que há quinze anos as carregavam. Era o mesmo estranhamento e, de certa forma, eram as mesmas palavras que ali se continham. Continuavam a nascer numa língua permanentemente estranha. Nasce-se sempre como membro duma língua. Família é saber falar uma língua que não lembramos de aprender. As mãos me entendiam.
Talvez sempre tenham entendido.
Falavam numa língua estranha que entendia perfeitamente.
Uma língua que me abraça e, com a mesma força, me empurra para fora.
*Pedro Pennycook é doutorando em filosofia na University of Kentucky.Veja neste link todos artigos de
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