sábado, 28 de dezembro de 2024

O pensamento único nos cursos de economia

Imagem: Fidan Nazim qizi

GUILHERME GRANDI*

O mal-estar acadêmico e a tentativa de redução da pesquisa em história econômica

Não é de hoje que o pensamento único ronda os estudantes de economia. O assim chamado mainstream segue pautando a visão de muitos docentes, alunos e economistas dentro e fora dos círculos universitários no Brasil e no exterior. Fundamentado pela teoria econômica neoclássica, o pensamento dominante presente nos cursos de economia tem causado distorções na formação dos estudantes por conta de uma percepção limitada e, por vezes, inconsistente acerca do conhecimento histórico.

Uma pergunta relevante que qualquer interessado em economia e em ciência econômica deve se fazer é: o que é história? Suponho que muitos adeptos dessa concepção neoclássica de ciência econômica nunca se fizeram tal pergunta. Já, para nós, historiadores econômicos, a avaliação sobre o que é e como se produz história é central e faz parte de nossa rotina de trabalho.

Não pretendo aqui discorrer sobre os elementos epistemológicos da pesquisa em história, mas quero apontar as idiossincrasias que tenho observado no âmbito do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo, a FEA-USP, no qual atuo desde 2014, como docente e pesquisador da área de história econômica.

Uma parcela representativa de meus colegas de departamento tem defendido um tipo específico de pesquisa em história (e, portanto, de produção historiográfica) que, em sua origem, remonta ao início dos anos 1960, quando se deu a chamada “revolução cliométrica”. A partir dos trabalhos pioneiros de Alfred Conrad, John Meyer e Robert Fogel, sobre os impactos da escravidão e do transporte ferroviário na economia estadunidense do século XIX, surgiu uma nova vertente de estudos de história econômica caracterizada pelo uso intensivo de métodos quantitativos (estatística e econometria) e pela aplicação de conceitos e modelos oriundos da teoria econômica convencional.

Esse tipo de abordagem se difundiu e se consolidou não apenas nos Estados Unidos, mas também em outros centros acadêmicos de excelência, principalmente da Europa. Atualmente, periódicos especializados em história econômica e editados em particular nos Estados Unidos e na Inglaterra dão demasiada preferência à publicação de trabalhos que seguem a proposta cliométrica ou, pelo menos, que se constituam de algum exercício empírico realizado nos moldes das chamadas história quantitativa e economia aplicada.

Não há o que questionar sobre a importância dos dados quantitativos para os estudos de história econômica. Hoje em dia, o que tem sido mais frequentemente debatido pelos pesquisadores do campo se relaciona à validade e utilidade de determinados recursos de análise (softwares, aprendizado de máquina, inteligência artificial etc.) e de conjuntos de dados estatísticos, além do desafio de se encontrar o critério mais adequado para a quantificação de um aspecto histórico-econômico específico.

O que gera maior oposição não é a quantificação propriamente dita, mas as eventuais formalizações matemáticas que ela enseja. Isto se deve ao caráter por vezes considerado ortodoxo das conclusões encontradas, segundo a aplicação de modelos importados de outras ciências sociais, como a própria ciência econômica.

Nesse sentido, defender como válido e cientificamente robusto, como têm feito alguns de meus colegas de departamento, apenas um tipo de abordagem metodológica em história econômica é, certamente, uma postura reducionista desse campo de investigação que, por sua natureza intrínseca, deve ser amplo e aberto a outras perspectivas de análise. Ademais, não é o uso de dados quantitativos que define se um trabalho segue ou não a vertente historiográfica da cliometria. François Simiand e Ernest Labrousse já promoviam pesquisas históricas com extensos conjuntos de dados econômicos nas décadas de 1930 e 1940, muito antes, pois, do surgimento da cliometria.

Portanto, não se deve associar a mera utilização de extensos bancos de dados estatísticos, ou o uso de séries de tempo, com os estudos cliométricos, pois estes se definem por algo particular, por um modelo de análise específico conhecido como modelo contrafactual. É este o elemento definidor de um estudo pautado por essa vertente da historiografia, denominada cliometria. É preciso ter isso muito claro para que não se confunda, como vem acontecendo no departamento do qual faço parte, a defesa da utilização de alentadas bases de dados com a defesa da cliometria como a única perspectiva de análise aceitável em história econômica, numa visão reducionista que limita as possibilidades de outros recortes epistemológicos.

Tal postura acadêmica de estreitamento, de tentativa de fechamento do campo da história econômica, vai inclusive na contramão da própria história dessa área de pesquisa no Departamento de Economia da FEA-USP. Se, inicialmente, os trabalhos de história desenvolvidos pelos docentes da FEA seguiam as orientações básicas dos estudos da professora Alice Canabrava, com o tempo, outras perspectivas, embora também fortemente subsidiadas por fontes primárias e dados brutos como a própria Canabrava exigia de seus orientandos, foram sendo gradativamente introduzidas, tendo aumentado assim o rol de possibilidades das análises históricas produzidas na FEA.

Estudos não somente sob influência da Escola dos Annales, mas também derivados de outras perspectivas teórico-metodológicas como a marxista, a institucionalista, a da economia evolucionária, a weberiana, a schumpeteriana, a keynesiana, a neoinstitucionalista, dentre outras, foram sendo sistematicamente elaboradas e divulgadas em formatos de teses, dissertações e artigos científicos.

A visão reducionista em relação ao aprendizado historiográfico e à formação histórica dos alunos tem gerado mal-estar na comunidade acadêmica da FEA. A tentativa de fechamento do campo passou do discurso à prática com a recente publicação do edital de um concurso de duas vagas para professores doutores destinadas à área de história econômica.

Mais do que o direcionamento em favor de um perfil específico de docente que demonstre domínio dos conteúdos selecionados – no edital há indicações bibliográficas, o que não é comum nos concursos realizados na FEA –, o que é mais chocante é o perfil dos membros elencados para compor a banca examinadora do concurso: dos cinco indicados como membros titulares, apenas um tem produção acadêmica em história econômica. Mais ainda, os currículos desses indicados evidenciam que se trata de pesquisadores da área de microeconomia aplicada, área esta a mais bem servida atualmente no Departamento de Economia da FEA, com significativa quantidade de docentes que exibem esse perfil acadêmico.

Com exceção da hipótese de um consciente sequestro das duas vagas originariamente destinadas à área de história econômica e a duras penas conseguidas, hipótese na qual prefiro não acreditar, não é fácil entender o que pode ter balizado a escolha da referida comissão. O que frequentemente se coloca nas reuniões departamentais é que as bancas de concurso devem reunir acadêmicos cujas agendas de pesquisa são relevantes para o tipo de profissional que se quer selecionar. Isto posto, quando se indica para uma banca de um concurso de história econômica cinco professores dos quais quatro ensinam e pesquisam na área de microeconomia aplicada, o que pensar?

Ora, é evidente, dado o perfil de docente que um tal concurso vai selecionar, que se trata de efetivamente reduzir o campo da história econômica a um tipo específico de “fazer história”, o qual se define mais pelos recursos metodológicos empregados do que por outros aspectos científicos igualmente importantes.

A baixa valorização, ou o não devido reconhecimento, de outras formas de fazer história econômica indica uma postura antidemocrática e avessa à própria trajetória do departamento, marcada pela pluralidade de visões e em consonância com perspectivas humanistas que reforçam o fato de a economia ser, antes de tudo, uma ciência social aplicada, isto é, um campo de estudos voltado para a solução de problemas sociais cujas temporalidades são variadas e determinadas historicamente.

Em suma, não compactuo com a visão hegemônica presente na FEA, e em outras instituições brasileiras de ensino de economia, que, no meu entender, seguem presas a um passado acadêmico caracterizado por uma espécie de neopositivismo dogmático, que se reflete em posturas e visões acadêmicas reificadas, alienadas, monolíticas e a-históricas. Simular um cenário fictício para validar (ou não) hipóteses quantitativamente testáveis é importante aos estudos de história econômica? Sim, sem dúvida alguma e, nesse sentido, não me oponho ao modelo contrafactual tão propalado pelos cliometaristas.

Mas essa não pode ser a única forma considerada cientificamente relevante a ser empregada pelos pesquisadores. Nas áreas de ciências sociais aplicadas, os temas abordados não são apenas socialmente determinados; eles se inserem sempre num ambiente de incertezas e cujos resultados são condicionados, além de tudo, pelas forças do imponderável, marca indelével da realidade humana e, portanto, dos desafios que se impõem a tais pesquisadores.

A história e seu estudo são imprescindíveis à formação de profissionais nessas áreas e sua abordagem não pode ficar reduzida a uma única vertente, sob pena de se reduzir o próprio escopo das investigações impedindo que essa disciplina faça seu papel de ampliar não só o tipo de reflexão que se produz, mas sobretudo o universo de questões que motiva a própria pesquisa.

*Guilherme Grandi é professor do Departamento de Economia da FEA-USP. Autor, entre outros livros, de Estado e capital ferroviário em São Paulo (Alameda).



 

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