Donald Trump (Foto: Reuters/Carlos Barria)
"Prometer a grandeza de sua nação e a desgraça do mundo é prometer um paradoxo surreal, irrealizável", escreve Chico Cavalcante
Chico Cavalcante
Donald Trump assumiu seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos fazendo o que melhor sabe: chamar a atenção. Suas declarações, que coincidem com as propostas de sua campanha – incluindo congelamento de preços em supermercados, sobretaxação de produtos importados e a permanência de subsídios inicialmente considerados provisórios – produzem um misto de medo e incerteza e levantam sérias preocupações entre economistas sobre a viabilidade de sua implementação e as consequências dessas medidas para a economia americana. As ideias de Trump, que remetem a práticas testadas e reprovadas na América Latina e resultaram em crises profundas, podem não apenas agravar a crise econômica nos Estados Unidos, mas também intensificar o descontentamento social e, paradoxalmente, fortalecer a China, inimiga declarada da direita mundial e maior produtora de bens do planeta atualmente.
O cientista politico Sérgio Abrantes classificou a fala de Trump como “um discurso distópico”, baseado no que Zygmunt Bauman chamou de retrotopia, uma tendência sociológica que usa incertezas e desilusões da modernidade e medo do futuro para oferecer como solução e alívio, um passado idealizado irrealizável e destrutivo. Prometer a grandeza de sua nação e a desgraça do mundo é prometer um paradoxo surreal, irrealizável, uma equação que não fecha.
Em sua primeira fala após assumir a presidência pela segunda vez, Trump se apoiou na frase que marcou sua trajetória política: "Make America Great Again" (ou "Torne a América Grande Novamente", em tradução livre). O slogan, que se tornou um dos pilares de sua campanha, foi usado tanto em sua candidatura de 2016 quanto em sua reeleição em 2024. "Este será verdadeiramente o auge dourado da América, é isso que temos. Esta é uma vitória magnífica para o povo americano, que nos permitirá fazer a América grandiosa novamente", declarou.
A expressão "Make America Great Again" (abreviada como MAGA) não é uma invenção de Trump nem uma criação de seus marqueteiros, embora tenha sido ele quem a popularizou em 2016. O slogan tem suas raízes na candidatura de Ronald Reagan, que o utilizou em sua campanha presidencial de 1980. É, por assim dizer, um slogan requentado. Naquele momento, Reagan propôs restaurar o orgulho nacional e reerguer os Estados Unidos como uma grande potência, em um contexto em que a nação enfrentava uma grave crise econômica, com inflação alta e prolongada estagnação.
Com essa fala tomada de Reagan, Trump conseguiu capturar a atenção de uma parte significativa da população, prometendo soluções rápidas e simplistas para problemas complexos. No entanto, as medidas propostas por ele têm o potencial de criar um efeito dominó negativo que pode acentuar as dificuldades já enfrentadas por muitos cidadãos estadunidenses. A promessa de que o protecionismo traria de volta empregos que foram transferidos para outros países desconsidera as nuances da globalização e a complexidade das cadeias de suprimento modernas, assim como ignora o fato de que “soluções”idênticas foram tentadas em seu primeiro mandato, sem sucesso.
Um dos pontos críticos da agenda de Trump é a promessa de deportar milhões de imigrantes ilegais, uma política que, além de gerar controvérsias, tende a produzir graves consequências econômicas. A mão de obra imigrante é essencial em setores como construção e serviços, especialmente aqueles que oferecem salários mais baixos. A redução dessa força de trabalho não apenas criaria um vácuo no mercado de trabalho, mas também poderia alimentar novas pressões inflacionárias em um momento em que a economia já luta para se estabilizar. Os trabalhadores indocumentados, para citar um termo alfandegário, frequentemente ocupam empregos que muitos cidadãos americanos não estão dispostos a ocupar, e sua ausência levará ao aumento dos custos de produção e, consequentemente, ao aumento dos preços finais para os consumidores. Segundo o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI) a economia espanhola foi a que mais cresceu em 2024, à frente até mesmo dos Estados Unidos — e, na contramão da retórica xenofóbica de Trump, a contribuição dos imigrantes para a pujança econômica da Espanha é significativa. O chefe do governo, Pedro Sánchez, disse durante uma viagem que o levou à Mauritânia, Gâmbia e Senegal em agosto que os migrantes representam "riqueza, desenvolvimento e prosperidade". A contribuição dos imigrantes para a economia, disse o líder do PSOE, “é fundamental, assim como para a sustentabilidade do nosso sistema de seguro social e previdência".
As políticas protecionistas, ao elevar as tarifas sobre produtos importados, em vez de proteger a indústria nacional, podem resultar em um aumento na dependência de bens chineses, que continuam competitivos em termos de preço e qualidade. Um estudo do Peterson Institute for International Economics sugere que, em resposta a tarifas, a China pode redirecionar suas exportações para outros mercados, enquanto os EUA enfrentam dificuldades em manter suas próprias indústrias competitivas. Essa dinâmica pode criar um ciclo vicioso, onde a tentativa de proteger a economia americana resulta em maiores perdas de competitividade. Quem viu o filme Fantasia, animação épica dos estúdios Disney, sabe o que um aprendiz de feiticeiro é capaz quando escala os bandes para fazer o trabalho de limpeza.
O impacto das tarifas sobre o comércio também será sentido em setores que dependem de insumos importados. Indústrias como a automobilística e a tecnologia, que dependem de peças e componentes fabricados no exterior, podem ver seus custos de produção aumentarem substancialmente. Esses aumentos, inevitavelmente, se traduzem em preços mais altos para os consumidores e em margens de lucro reduzidas para as empresas. A consequência é uma economia ainda mais fragilizada, com empresas lutando para se manter à tona em um ambiente de custos crescentes e demanda instável.
Além disso, a retórica agressiva de Trump em relação a parceiros comerciais pode levar a retaliações que prejudicam ainda mais a economia americana. A relação com aliados tradicionais, como a União Europeia e o México, já foi tensa sob sua primeira administração. Se essas nações decidirem retaliar com tarifas ou restrições comerciais, os efeitos podem ser devastadores, resultando em perda de empregos e fechamento de fábricas nos EUA. A interdependência econômica global é inexorável. Uma abordagem unidimensional, como o protecionismo, raramente resulta em benefícios duradouros.
Enebriado pelo tom de voz, pelo histrionismo e pela cor alaranjada de Trump, a imprensa não tem se debruçado sobre o real impacto social dessas políticas. O descontentamento gerado por um aumento nos preços e pela escassez de produtos pode alimentar um clima de insatisfação, se traduzindo em protestos e distúrbios de rua. A polarização política, já exacerbada por questões como imigração, gênero e justiça social, tende a se intensificar ainda mais com o agravamento da crise econômica. Nesse contexto, a sociedade americana pode se dividir ainda mais, com um crescente sentimento de frustração em relação ao governo e suas promessas não cumpridas.
Além do mais, as soluções simplistas apresentadas por Trump não levam em conta as complexidades do mercado de trabalho moderno e as mudanças nas dinâmicas econômicas globais. O mundo está em constante transformação, e as indústrias que uma vez foram a espinha dorsal da economia americana estão se adaptando ou desaparecendo. As promessas de reviver setores em declínio ignoram a necessidade de inovação e adaptação em um mundo cada vez mais digital e automatizado. Nos Estados Unidos real, longe dos púlpitos e palanques, 40 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Dados de novembro do Censo do país indicam que é essa a quantidade de adultos que afirmam não ter tido alimento suficiente pelo menos uma vez, na semana anterior à pesquisa. Enquanto 11% das crianças brancas nos EUA vivem na pobreza, essa taxa chega a 32% para crianças negras e 26% para crianças latinas, segundo dados do censo levantados pelo Centro de Dados Kids Count.
Diante disso, Trump, o palhaço sardônico, deveria assustar mais o público do interno do que o externo. A retórica protecionista tem não apenas o potencial de agravar a crise econômica vivida pelo país, mas também de aprofundar as divisões sociais e políticas internas, com consequências opostas ao prometido pelo slogan do 47o presidente dos Estados Unidos. Em um mundo cada vez mais conectado e multilateral, políticas que promovem o isolamento econômico e diplomático e anunciam o alinhamento com líderes extremistas como Giorgia Meloni, Viktor Orbán, Jarostaw Kaczynski e Tino Chrupalla, não indicam o caminho da prosperidade para os Estados Unidos, mas do gueto ideológico que tira um país do século XXI e o leva de volta aos anos 30 do século XX.
A impactante primeira cena de Guerra Civil, filme de Alex Garland, ilustra como a narrativa de excepcionalismo norte-americano já não convence, nem mesmo o presidente, responsável por vendê-la. No filme, no cerne da disputa política que leva à guerra civil nos EUA, está a perda de crença na imagem da “América” como invencível e a distância entre a realidade e o sonho. No filme, não precisamos conhecer os revolucionários ou o presidente; o foco é a fragilidade dos Estados Unidos, “a terra da liberdade”, armada, violenta e dividida, onde a narrativa revela-se o elemento mais mortal da história. Estamos mais perto disso do que de uma nova hegemonia global de um país liderado por um homem cor de laranja que tem como deuses Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12