
Imagem: karatara
GILBERTO LOPES*
Como em 1938, os exércitos da Europa estão de novo apontando para Moscou, a ponto de comemorem o rearmamento da Alemanha, esquecendo das consequências do rearmamento alemão para o mundo no século passado
Derrotar a Rússia ou o alto preço de perder a Ucrânia
“O que está em jogo no conflito na Ucrânia?”, perguntava Stephen J. Blank, pesquisador sênior do Foreign Policy Research Institute, uma instituição sediada na Filadélfia, cujos objetivos são fortalecer a segurança nacional e a política externa dos Estados Unidos. Stephen Blank apresenta-se como um reconhecido especialista em Rússia e na antiga União Soviética, autor de dezenas de artigos e livros, professor durante 24 anos (1989-2013) no US Army War College, ou seja, das forças armadas norte-americanas.
A ambição russa, diz Stephen Blank, não é apenas redesenhar suas fronteiras com a Ucrânia, mas também nos Balcãs e na Europa do Leste: Bielorrússia, Polônia, Romênia, Moldávia e os Estados Bálticos. “Todos correm riscos. Não somente se a Ucrânia for derrotada, mas também se não conseguir expulsar a Rússia da Crimeia e do Donbass”.
E acrescenta: “dado o número crescente de notícias assegurando que Putin está preparando-se para uma guerra geral com a Europa, qualquer mudança político-militar da situação no terreno será bem-vinda”. O que está em jogo, em sua opinião, é a oportunidade para que Washington e a Europa “derrotem a Rússia e realizem a maior transformação estratégica numa geração”.
O artigo de Stephen Blank foi publicado em 13 de dezembro do ano passado. Donald Trump já tinha sido eleito, mas ainda não tinha assumido a presidência dos Estados Unidos. A ideia de que a Rússia é uma ameaça para os países da OTAN é compartilhada por outros acadêmicos e líderes políticos europeus, da União Europeia e da OTAN.
Frederick W. Kagan, Kateryna Stepanenko, Mitchell Belcher, Noel Mikkelsen e Thomas Bergeron, pesquisadores do Institute for the Study of War (ISW) – outra instituição sediada em Washington – especulam sobre “O alto preço de perder a Ucrânia” (The High Price of Losing Ukraine) num artigo também publicado em dezembro do ano passado.
Tal movimento, afirmam, “colocaria o exército russo, golpeado mas triunfante, na fronteira da OTAN, desde o mar Negro até o oceano Ártico”. A Rússia poderia então avançar para o Ocidente e “instalar bases militares nas fronteiras da Polônia, Eslováquia, Hungria e Romênia”. Cerca de 3.000 km de fronteiras! Quase três vezes mais do que a linha da frente do atual conflito entre a Rússia e a Ucrânia.
Claude Malhuret, médico, advogado e senador francês do grupo de direita Les Indépendants – République et territoires (LIRT), disse ao Senado, na terça-feira, 4 de março, que “a derrota da Ucrânia seria a derrota da Europa. Os países bálticos, a Geórgia e a Moldávia já estão na lista”. O objetivo de Putin é voltar para Yalta, assegurou, referindo-se à conferência na qual os líderes da Rússia, Estados Unidos e Inglaterra negociaram, em fevereiro de 1945, a ordem política europeia depois da Segunda Guerra Mundial.
Mas o próprio Claude Malhuret afirma que “ao contrário da propaganda do Kremlin, a Rússia vai mal. Em três anos, o suposto segundo maior exército do mundo só conseguiu arrancar migalhas de um país três vezes menos populoso. As taxas de juros de 25%, a derrocada das reservas de moedas e de ouro, o colapso demográfico”, na opinião dele, mostram que a Rússia “está à beira do abismo”. A mesma Rússia que os acadêmicos e políticos europeus acreditam ser capaz de invadir a Europa.
A expansão da OTAN
Na Europa, estas ideias são repetidas até cansar. Não se trata apenas da Ucrânia, mas do enfraquecimento da Europa, de sua destruição, afirmou Nathalie Tocci, diretora do Instituto de Assuntos Internacionais de Roma. Todas são reflexões de caráter especulativo, sem qualquer base factual. Seria uma mobilização militar que ultrapassaria claramente a capacidade do exército russo, se não bastassem as repetidas declarações de Vladimir Putin de que não pretende avançar em território europeu.
Se observarmos os fatos e analisarmos friamente as capacidades da Rússia, vemos que não existe qualquer ameaça séria para a Alemanha, segundo o cientista político norte-americano John Mearsheimer, numa entrevista à publicação alemã Der Spiegel, em 7 de março. Quando pensamos em Putin, temos que nos fazer duas questões, diz John Mearsheimer. Uma é quais são suas intenções. A outra é quais são suas capacidades. “Em termos de suas intenções, não temos provas de que seja um imperialista que queira conquistar toda a Ucrânia e criar uma Grande Rússia, muito menos territórios adicionais na Europa do Leste”.
“Suas tropas não atacaram Kiev, Bucha e Irpin em 2022? Não continua bombardeando alvos em toda a Ucrânia, inclusive em Lviv, a menos de 60 km da fronteira com a Polônia? Não é isso uma ameaça?”, pergunta o jornalista. “Disso não há dúvida”, responde John Mearsheimer. “Mas a causa destas guerras foi a expansão da OTAN e não o suposto imperialismo de Vladimir Putin”.
Munique e Yalta?
Já nos referimos à Conferência de Yalta em 1945, na Crimeia, território que a Rússia anexou após o golpe de 2014 na Ucrânia, na qual Roosevelt, Churchill e Stalin discutiram, sem a presença do francês Charles de Gaulle, como reorganizar o mundo após a Segunda Guerra Mundial. As tropas russas já estavam a pouco mais de 60 Km de Berlim.
Mas Yalta não foi a única referência desta época, retomada no debate sobre a situação na Ucrânia. O ABC, jornal espanhol que, naquele momento, apoiou o franquismo, questionou se a história se repetiria. Estava falando do Pacto de Munique de 1938, quando os primeiros-ministros da Inglaterra e da França, Neville Chamberlain e Édouard Daladier, negociaram com Hitler a entrega dos Sudetos, então território da Tchecoslováquia. Era 30 de setembro de 1938, e os dois países sonhavam que Hitler os deixaria em paz, que a guerra seria então contra a União Soviética.
Para a diplomacia soviética, essa era a intenção. Stalin considerou o acordo como uma traição das democracias ocidentais. Estas consideravam que o objetivo dos acordos era isolar a União Soviética para lançar as tropas alemãs em direção a Moscou. Já sabemos que a Inglaterra e a França não puderam evitar a guerra, mas o principal objetivo das tropas alemãs continuava sendo Moscou. Meios de comunicação, acadêmicos e políticos europeus aproveitaram este fato para sugerir que as conversações de Donald Trump e Vladimir Putin têm objetivos semelhantes aos que atribuem aos acordos de Munique de 1938. Jornais como o ABC (e muitos outros) acusam Donald Trump de pretender apaziguar as ambições expansionistas de Vladimir Putin. Mas não fazem qualquer referência ao objetivo destes acordos, de facilitar a conquista de Moscou.
O entusiasmo pelas armas
Assim, o plano de rearmamento proposto em 6 de março pela presidente da Comissão Europeia, a conservadora alemã Ursula von der Leyen, no qual prevê investir mais de 800 bilhões de dólares, parece mais próximo dos objetivos do Pacto de Munique de 1938. É este encontro entre a União Europeia e Volodymyr Zelenski, voltado para Moscou – mais do que as conversações entre os Estados Unidos e a Rússia – que se identifica com o outro, o de Munique, em 1938, quando britânicos e franceses negociavam com os alemães.
Andrea Rizzi, jornalista do El País, escreveu de Munique, dois dias antes da reunião convocada por Macron: a conferência “evidenciou a convicção majoritária entre os líderes de dar um salto rápido nas capacidades militares, tanto para sustentar a Ucrânia como para ter força para dissuadir Vladimir Putin de outras aventuras”. “A corrida ao rearmamento faz parte da nova abordagem europeia num momento particularmente convulsivo”, disse a correspondente do El País em Bruxelas ao comentar o anúncio, com entusiasmo pela nova política armamentista que se estende por quase toda a grande imprensa europeia, incluindo o francês Libération, o inglês The Guardian ou a alemã DW.
As “ambições de Vladimir Putin, de reconstituir a todo custo o império russo ou seu equivalente comunista, são bem conhecidas”, disse Serge July, fundador do diário francês Libération. Na quarta-feira, 5 de março, Emmanuel Macron fez um discurso “solene”, afirmando que “a Ucrânia tinha se transformado num conflito global”. “A Rússia tornou-se uma ameaça para a França e para a Europa”, disse, oferecendo o guarda-chuva nuclear francês, a única potência nuclear da União Europeia, aos demais países europeus.
Dias antes, numa entrevista a jornais regionais franceses, tinha dito que “a Rússia constitui uma ameaça existencial para a Europa”. “Não pensem que o impensável não pode acontecer, incluindo o pior”, acrescentou. Emmanuel Macron falava de uma guerra nuclear contra a Rússia!
Como afirmou Céline Marangé, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar da Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, “na Rússia, a guerra marca o apogeu de um projeto político que oferece como horizonte futuro o retorno à era soviética”. “O objetivo final seria antes uma Rússia dominante e temida, que recuperou seu estatuto de grande potência e apagou a humilhação da derrota na Guerra Fria, empurrando as fronteiras da OTAN e destruindo a União Europeia”.
Tempos estranhos
O ministro das relações exteriores russo, Serguei Lavrov, lembrou da renovada tentação europeia de conquistar Moscou. Em reação ao discurso de Emmanuel Macron, Serguei Lavrov afirmou que o presidente francês tinha feito “um discurso antirrusso extremamente agressivo, chamando a Rússia de ‘uma ameaça para a França e para a Europa’”. “Já tinha dito isso antes, mas nunca de uma forma tão intensa e irreconciliável, que soava como um programa de ação russofóbico”.
Emmanuel Macron pretende convencer o público francês de que somos uma ameaça existencial para a França, disse Serguei Lavrov. Mas, de fato, “a Rússia nunca ameaçou a França. Pelo contrário, ajudou a defender sua independência e soberania em duas guerras mundiais”, recordando o conceito de Gaulle de uma segurança europeia indivisível, do Atlântico aos Urais.
Como salientou John Mearsheimer em sua entrevista ao Der Spiegel, se estamos interessados pelos fatos, pela lógica, se calcularmos friamente as capacidades da Rússia, “vemos que não há uma ameaça séria da Rússia à Alemanha”. Nem para a Europa! Apesar do entusiasmo de seus meios de comunicação pelo rearmamento.
Como em 1938, os exércitos da Europa estão de novo apontando para Moscou! “Que tempos estranhos vivemos, com a Polônia comemorando o rearmamento da Alemanha!”, afirmou o primeiro-ministro polonês Donald Tusk, outro grande entusiasta das despesas militares e do cerco a Moscou, segundo a correspondente do El País. Tempos estranhos. Uma Europa (e uma Polônia) que esquece as consequências do rearmamento alemão para o mundo no século passado.
*Gilberto Lopes é jornalista, doutor em Estudos da Sociedade e da Cultura pela Universidad de Costa Rica (UCR). Autor, entre outros livros, de Crisis política del mundo moderno (Uruk).Tradução: Fernando Lima das Neves.
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