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‘Aqui’ é o lugar da dor que o filme descreve, não é de um lugar físico com endereço e CEP, ‘aqui’ não é um lugar no espaço. O ‘aqui’ está tão presente agora quanto em 1971, mas talvez não mais para os deputados brancos, héteros e cis
Celso Lins
Pergunta estranha, não é? Mas o título do filme vencedor do primeiro Oscar da produção cinematográfica brasileira justifica essa questão peculiar pelo próprio sucesso do longa. Confesso que essa pergunta pode estar presente no enredo, no roteiro ou no trabalho artístico. Os artistas talvez assim o dissessem, mas prefiro pensar de maneira mais ampla, trazendo-a para a lupa da crônica, focando nos detalhes dos porquês — e apenas deles — sem a intenção de oferecer respostas, apenas reflexão.
O primeiro porquê está em entendermos por que comemoramos um filme realizado por uma das pessoas mais ricas do Brasil. A família Moreira Salles é, simplesmente, uma das controladoras do conglomerado Itaú, o que a coloca em outro planeta — bem distante da realidade da maioria das famílias brasileiras, que provavelmente nem sequer têm conta em banco. Outro porquê está na empresa produtora do filme, pertencente às Organizações Globo, a mesma que apoiou a ditadura, omitiu seus crimes e ainda rendeu homenagens aos generais — os mesmos que ordenaram o desaparecimento de pessoas.
Ainda há um terceiro porque, aquele relacionado ao homem branco de família rica que foi desaparecido pelo regime autoritário empresarial militar, filho de latifundiário, representante, ainda que não pela ideologia, mas pelos privilégios do paquito da branquitude brasileira.
Após toda esta dureza é preciso descobrir ‘onde é aqui’, onde este filme, esta história fala com tantas pessoas. Pessoas que comemoraram como se a festa fosse, a vitória de um prêmio dado por americanos para melhor vender seus produtos para o mundo todo.
Bem, para mim, só restou um lugar para chamar de aqui. O lugar da dor que o filme descreve, isto, o aqui, não é de um lugar físico com endereço e CEP, aqui não é um lugar no espaço. Aqui é uma presença, não há aqui sem estar presente neste ponto, e aqui o ponto é uma emoção.
A emoção da luta contra a injustiça, pela revolta contida de lutar com algo que é violento e assustador, que parece grande demais para ser combatido, que explora nossas fraquezas. Este lugar da mescla de medo e coragem, do simples seguir em frente quando só o que resta é a esperança.
O ‘aqui’ está tão presente agora quanto em 1971 — talvez não mais para os deputados brancos, héteros e cis. Mas, com certeza, ainda está para quem não se enquadra, para as Érikas, Mônicas e Najaras. Ainda está para a família de Amarildo, para as mães das comunidades cujos filhos saíram para trabalhar e não voltaram — pretos, pobres, para os indígenas emboscados. Ainda estamos aqui.
Numa esquina da história, onde as ameaças acontecem até contra chefes de Estado de nações amigas, o império da força volta a assombrar sociedades. O poder do mais forte — e forte aqui no sentido mais literal da palavra — nos paralisa. E ainda estamos aqui.
Então, uma história que narra nosso medo e nos faz crer que pode haver esperança, ao menos para sobreviver a este momento, nos mostra que é possível vencer no mundo dos mais fortes. Ela nos faz enxergar que, apesar de ainda estarmos aqui, podemos nos mover e gritar para o mundo a nossa dor.
Primeiro, para que saibam que ela existe — pois esteve desaparecida, desacreditada e apagada por mentiras na fossa digital. Segundo, para que esse grito se some a outros gritos pelo mundo afora, tornando-se um urro de luta, resiliência e resistência contra a força dos mais fortes. E, por último, para que nos lembrem que somos todos humanos, com o direito de simplesmente existir, de ter família, de poder dizer não.
Aqui, não temos mais medo. Aqui, temos luta. Aqui, temos a história de nossos ancestrais, que nos ensinaram a batalhar por justiça, respeito e vida. A vitória que é nossa é também a vitória de nossa história de resistência. Mas a história de Eunice é a história das mães de famílias destruídas pela violência do Estado brasileiro. A esperança é que essa história possa ser recontada, adaptada, cantada — até não mais acontecer.
A Walter, Fernanda e equipe, meus parabéns. Aos irmãos, irmãs, amigos, amigas e amigues, ainda estou aqui. Contem comigo.
Viva o povo brasileiro!
Celso Lins é professor, coordenador do Aqualtune Lab, militante antirracista e dos direitos digitais.
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