por Miguel do Rosário, em O Cafezinho
No livro de Gore Vidal sobre Abraham
Lincoln, o presidente pede a seu secretário de estado que invente pretextos
para prender os editores de jornais de Nova York e Washington que lhe faziam
oposição. O país estava em guerra civil, e se entendia a batalha na opinião
pública como estratégica para a vitória do norte industrial sobre o sul
escravista.
E agora ficamos sabendo, através do filme
de Spielberg sobre a mesma figura, que Lincoln autorizou um grupo de lobbistas
a usarem “todos os meios” para convencer deputados da oposição a votarem em
favor da lei da abolição. Há um trecho do filme em que o seu secretário
pergunta-lhe, com espanto algo fingido, se o presidente pretendia “comprar”
deputados. O presidente responde, também meio que cinicamente, que não se
tratava de comprar, mas de oferecer oportunidades. Empregos, cargos, verbas,
Lincoln usou todo seu imenso poder para mudar a opinião de alguns deputados do
então escravagista Partido Democrata e ganhar a votação mais importante e mais
simbólica da história dos Estados Unidos.
Lincoln tinha pressa em aprovar a lei
porque entendia que somente ela poderia pôr fim à guerra civil, pois automaticamente
produziria um enorme movimento de fuga e deserção de negros tanto dos exércitos
confederados como de suas fazendas, desestruturando o inimigo, militar e
economicamente.
Os lobistas de Lincoln procuravam
representantes democratas e ofereciam-lhe mundos e fundos para votarem em favor
da lei. O próprio Lincoln entra na jogada, conversando pessoalmente com alguns
deles.
Que lições devemos tirar desses
exemplos, ambos comprovados em documentos históricos? Certamente não que
devemos mandar prender editores, embora no Brasil há casos em que isso não
apenas seria moral e constitucionalmente aceitável como até louvável. Da mesma
forma, seria ridículo justificar a corrupção de deputados com o exemplo de um
filme de Spielberg.
As lições são as seguintes:
- A guerra da comunicação não deve jamais ser
subestimada por um governante. Se é errado, sob as perspectivas morais e
legais, ferir as regras democráticas, é igualmente equivocado, do
ponto-de-vista político, abandonar a luta ideológica no campo do
simbólico.
- A luta democrática envolve dilemas éticos
extremamente complexos, que só mesmo o velho Maquiavel poderia entender.
O que Lincoln deveria fazer?
Os abolicionistas de seu partido
tratavam-no, desde algum tempo, como um traidor de sua causa, por causa das
constantes hesitações quanto ao momento certo de enviar a décima terceira emenda constitucional ao
Congresso. Segundo historiadores, Lincoln não queria fazê-lo antes de ter a
certeza de que poderia ganhar, e para isso esperava uma boa conjuntura militar
na guerra civil.
Por fim, o momento chegou, e Lincoln
autorizou o envio da emenda à Casa dos Representantes, para ser votada pelos
deputados, e não antes de negociar controversos acordos com dissidentes da
oposição, afim de garantir a maioria e ganhar.
De fato, Lincoln não “comprou” nenhum
deputado. Ele simplesmente agiu como qualquer governo democrático desde que
estes começaram a existir: usou o poder que o povo lhe concedeu para aprovar
uma lei que interessava ao povo.
Estas são situações que nos fazem
pensar quão triste tem sido a criminalização da política no Brasil, o que não
significa que não seja necessário combater o crime político. Em diversos
legislativos estaduais e municipais, há casos de mensalão explícito, e não
seria difícil descolar provas concretas: bastaria acompanhar a variação
patrimonial de deputados e vereadores em todo país, quebrar alguns sigilos (com
autorização da Justiça) e praticar a saudável luta judicial, como cumpre às
polícias, corregedorias e Ministério Público.
Tão difícil, porém, como combater o
crime político, será combater a manipulação da ignorância em relação à
política. Na verdade, mesmo sem a mídia, já viveríamos situações difíceis. A
democracia tem defeitos. Os sistemas democráticos são falhos, cheios de
brechas, lentos, às vezes tão ou mais burocráticos que as piores autocracias;
e, na América ao sul do Rio Grande, sofrem com uma crônica e antiga falta de
recursos, além de todas as mazelas do subdesenvolvimento. Com as mídias
assumindo o papel de principal força conservadora na região, todos esses
defeitos parecem hiper-ampliados e as brechas são mais exploradas que nunca.
Uma dessas brechas, por exemplo, são leis falhas quando o tema é a concentração
da mídia. No caso do Brasil, assistimos inertes a meia dúzia de corporações
dragarem quase todos os recursos de publicidade no país, privados e púbicos.
Apesar dos bons presidentes, a nossa guerra civil ainda está sendo vencida
pelos escravagistas.
Assim como Lincoln só venceu a guerra
civil após decretar a abolição, pois isso lhe granjeou o apoio dos 4 milhões de
negros que sustentavam a economia do sul, a esquerda apenas poderá conquistar
uma vitória estável quando libertar os milhares de jornalistas que são
obrigados, por razões estritamente financeiras, a venderem suas consciências e talento
a empregadores reacionários.
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