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Imaginem um mundo
saturado de ruído a tal ponto que um barulho de alguns decibéis poderia
provocar explosões destruidoras. Esse é o tema de uma história em quadrinhos
publicada na revista Kripta (1976-1981, editora RGE), que embalou a imaginação
de uma geração de adolescentes nos anos 70. Esse conto de ficção científica
inscreve-se em um gênero temático que só ia crescer a partir dali: o
agravamento das mais diversas formas de poluição que estariam levando o planeta
a situações catastróficas. Poluição sonora, atmosférica, da água, do solo, dos
alimentos, doa utensílios e ferramentas que utilizamos cotidianamente.
Lembrei-me dessa história para falar de um outro tipo de poluição que vem
assumindo proporções dramáticas: a proliferação desenfreada de opiniões sobre
tudo e todos, especialmente (mas não só) nas chamadas redes sociais. O paralelo
deve-se também ao fato de que cresce assustadoramente o volume de opiniões,
palavras que não passam, na verdade, de ruídos bloqueadores da reflexão e do
sentido.
O silêncio é uma condição necessária para que as palavras ganhem sentido
e se transformem em algo mais do que sinais físicos. Silêncio interior e
exterior, de minutos, não segundos. Convivemos hoje com uma proliferação
desenfreada de palavras que vêm ao mundo cercadas de barulho e urgências
discutíveis. Há um sistema de comunicação e de entretenimento em expansão
ininterrupta que trabalha diariamente contra o silêncio, a reflexão e o
sentido, oferecendo velocidade, euforia, instantaneidade, celebridade ou,
simplesmente, alguma distração.
Somos convocados a emitir opiniões rápidas sobre os “fatos do dia”, quer
sejam ele fatos reais ou meros boatos ou especulações. E, de um modo geral,
essa convocação vem sendo atendida com entusiasmo, alimentando um exército de
opinadores e opinadoras, comentadores e comentadoras, mais ou menos avessos à
reflexão, que não se intimidam a “compartilhar” seus pontos de vista e convicções
sobre os temas mais variados. Há pouco lugar para a dúvida ou a reflexão neste
campo de batalha repleto de pessoas apaixonadas pela própria voz, de egos
inflados e/ou desesperados.
E, de um modo crescente, há pouco lugar também para bons modos rudimentares.
Não é preciso muito para a agressão, a intolerância, a irracionalidade, a
proliferação de imperativos e o obscurantismo assumirem o comando de certos
“debates”. Novos tipos de “especialistas” e “ativistas” surgem a cada dia. É
difícil não utilizar aspas para designar esses personagens virtuais, pois não
se trata estritamente de especialistas, ativistas ou debatedores, ao menos nos
termos mais ou menos estabelecidos até aqui.
Exércitos de um homem (ou mulher) só também proliferam, lançando
campanhas, abaixo-assinados, cartas dirigidas a autoridades, divulgando frases
e fatos muitas vezes atribuídos falsamente a determinadas personalidades. A
fauna é variada e crescentemente diversificada. Essa nova realidade não é
resultado de nenhuma propriedade maligna das redes sociais ou de outras
inovações tecnológicas na área da comunicação. Como ferramentas tecnológicas,
elas podem servir para distintas finalidades. A poluição opiniática não nasce
nas ou das redes sociais. O problema é bem mais complexo e está associado à
indústria da comunicação de um modo mais geral que vem se dedicando com afinco
a transformar desde as mais singelas e primitivas formas de expressão em
mercadoria.
A questão aqui não é o direito de termos opiniões e de expressá-las do
modo que achamos mais conveniente, mas sim a transformação desse direito em um
fenômeno bizarro e com implicações nada inocentes. Não somos mais apenas
convidados e convocados a consumir, mas também a compartilhar, a curtir, a
enviar torpedos, a participar de campanhas interativas, a dizer o que estamos
pensando a cada instante, o que estamos fazendo, não importa se é lendo um
livro de Platão ou escovando os dentes. E, por trás desses convites, cada vez
mais, há uma iniciativa destinada a ganhar dinheiro. Por trás de toda essa
poluição semântica há uma dimensão de acumulação econômica. Uma nova fronteira
de acumulação monetária e de esvaziamento semântico.
As consequências desse “mundo novo” ainda são imprevisíveis. O que é
perceptível, por enquanto, é um crescente desconforto que já vem levando muita
a gente a se desconectar ou ao menos se afastar desses espaços. De modo similar
à história de ficção científica sobre o mundo saturado pelo ruído, é como se
estivéssemos respirando um ar cada vez mais pesado, carregado de opiniões,
frases, citações sobre todo e qualquer tema, sobre tudo e sobre nada, tudo ao
mesmo tempo agora. Uma saída, assim como na história do mundo insuportavelmente
barulhento, seria recusar essa realidade em busca de um território onde o
silêncio e a reflexão não estejam soterrados por debates que não são debates,
pautas que não são pautas, campanhas que não são campanhas, palavras que não
chegam a ser palavras, pois não chegam a constituir sentido. A tentação é
grande. O ruído está ficando insuportável.
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