terça-feira, 16 de abril de 2013

O desrespeito nunca termina


http://www.cemhomens.com/ - A história da agressão de Gerald Thomas à Nicole Bahls teve desdobramentos inesperados para mim. A reação sexista e opressora era esperada, mas ao mesmo tempo vi muita gente discutindo a sério a cultura do estupro.
Por outro lado, as tentativas de justificar o que aconteceu transformam o caso numa agressão sem fim. Agora, além de lidarmos com o abuso físico sofrido por Nicole, temos de ver muita gente, capitaneada pela velha mídia, menosprezando o acontecido. O problema é que a agressão não aconteceu num vácuo. O tempo todo e no mundo inteiro pessoas são abusadas, estupradas e ameaçadas.
Quando falamos de Gerald Thomas e Nicole Bahls, não estamos nos restringindo a esse caso. Todos os textos sérios que li a respeito tratavam da cultura, de como certas atitudes consideradas não criminosas e até aceitáveis fazem parte de um panorama maior – e, juntas, normatizam a ideia de que não somos donos dos nossos próprios corpos.
Nem de longe se trata de falso moralismo. Para quem não me conhece, este blog nasceu com relatos dos meus encontros sexuais. Eu tenho um livro publicado a respeito. Falo a respeito e faço sexo com naturalidade, além de advogar pela liberdade individual e pleno exercício dos nossos corpos, com um parceiro, com mil, com nenhum; com ou sem amor; com estranhos ou com pessoas íntimas. Pra mim, só há três regras: que seja seguro, que seja prazeroso, que seja consensual. Esse consentimento deve ser ostensivo. Não deve ser ausência de não e sim um “quero” com toda a força que o desejo tem.

Por mim, discutiríamos sexo sem pudores e sem a hipocrisia social obrigatória. Contudo, o que aconteceu ali não foi sexo. Foi um toque agressivo na região genital da moça, por si só já suficiente para caracterizar o crime de estupro de acordo com a lei vigente. É a primeira vez em que uso a figura do estupro para me referir ao que aconteceu (estou falando da tipificação penal, não da cultura, porque desta última falei bastante).
É importante dizer isso porque muitos estão falando que é necessário haver penetração para o crime acontecer. A lei mudou em 2009 e, ao menos isso, abandonamos pelo menos legalmente a perspectiva falocêntrica do estupro. Antes, era necessário que houvesse penetração de um pênis numa vagina. Por conseguinte, o uso de objetos ou a penetração anal caracterizavam outro crime, diminuindo a importância da agressão.
Entendo que quem não trabalha com direito desconheça o tipo penal. Vejo a repetição do “não houve penetração” como mera má informação em alguns casos. Em outros, especialmente quando é um jornalista, entendo como uma atitude desonesta.
Assim como foi desonesto o programa Pânico de ontem. Começou com uma patética manifestação feminista fake. Não havia feministas ontem na porta da emissora de tv, assim como não houve ameaça ao diretor do programa. O que aconteceu foi uma manifestação pacífica, online, por meio de blogs e páginas do Facebook. Contratar meia dúzia de atrizes para fingir que havia ali uma manifestação é muito reprovável.
Muitos telespectadores acreditam sem pestanejar no que assistem. Ao criar o “protesto”, a produção do programa se deu uma importância que não existe, além de tentar reiterar a ideia de que nós, feministas, somos apenas umas mulheres sem ter o que fazer e que reclamam por tudo. Basta ver as perguntas toscas feitas pelo Vesgo: “desde que horas você está aqui?”. Na cabeça de muita gente deve ter ecoado o “estão lá o dia inteiro e a pia deve estar cheia de louça pra lavar”.
Isso já seria suficiente para mostrar o desrespeito com que somos tratadas. Eu sei que as bundas em profusão e as humilhações contumazes no programa já demonstram isso. Mas não é a discussão do momento (sim, feminismo também trata da cultura da objetificação dos corpos e da exploração comercial dos mesmos).
O desrespeito continuou com a presença do psicólogo Jacob Pinheiro Goldberg no longuíssimo VT sobre o caso. Ele falou em projeção e sobre como nossa sensibilidade é a responsável por acharmos que aquilo foi uma brincadeira (como se fosse possível) ou uma agressão. Esse papo de projeção como justificativa pra tudo é patético, pois tira o foco do ato e o coloca na reação do outro.
Ele mencionou repressão sexual, e este é outro discurso que não cabe aqui. Eu sou totalmente a favor de pegarem na minha buceta, inclusive gosto muito, desde que eu tenha permitido. O consentimento, aliás, é necessário para qualquer toque e até mesmo para falar com alguém fora das circunstâncias meramente sociais. Para piorar as coisas, ele ainda disse que Nicole é irresistível. Como escrevi no post anterior, não somos irracionais, movidos por uma força incontrolável que nos faz usar do corpo alheio sem permissão para tanto.
O apresentador do programa também não foi honesto quando disse que a imprensa estava perseguindo a produção. Pelo contrário: a velha mídia (jornais e sites de grandes conglomerados) trataram tudo como brincadeira. Claro! O que seria da mídia sem o jornalismo punheteiro? Além disso, pintaram Gerald Thomas como gênio e excêntrico, enquanto Nicole seria apenas a gostosa da vez. Se alguém ainda tem dificuldade de enxergar pra que lado a balança pende nesta relação…
Depois de um programa todo roteirizado para fazer chacota da moça e endeusar o diretor de teatro, o tiro saiu pela culatra. Emilio pergunta à Nicole se ela achava que era uma brincadeira. A resposta foi positiva mas, quando o apresentador já estava encerrando a transmissão, Nicole aproveita o microfone aberto e diz “se fosse na rua, eu teria feito um barraco”.
“Então por que ela não fez ali?”, perguntam muitos. A resposta não é fácil, tampouco objetiva. Só ela pode dizer o que sentiu. E não, eu não estou falando de uma declaração à imprensa, mas sobre o que ela sente no âmago. Talvez ela não tenha consciência do que lhe aconteceu.
Afirmar isso não é vitimizar a mulher, mas negar é, certamente, ignorar as relações de poder e a história de abuso (não só sexual) dos corpos de quem faz parte de minorias.
A discussão ultrapassa o fato acontecido na última semana, pois ele fala sobre nós. Uma a cada seis mulheres sofrerá abuso sexual consumado ou tentado durante a vida. Provavelmente essa estatística ainda está baixa, pois tais crimes em geral não são reportados. Uma a cada seis. Os números são suficientes para enxergarmos que isso faz parte de uma cultura em que a mulher só existe para servir ao homem.
Como venho afirmando há muito, apenas repetindo o que as feministas que vieram antes de mim já estão cansadas de saber: tomar o poder sobre o próprio corpo é essencial para a liberdade e empoderamento de todas nós.

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