http://www.cemhomens.com/ - A história da agressão de Gerald
Thomas à Nicole Bahls teve desdobramentos inesperados para mim. A reação
sexista e opressora era esperada, mas ao mesmo tempo vi muita gente discutindo
a sério a cultura do estupro.
Por outro lado, as tentativas de
justificar o que aconteceu transformam o caso numa agressão sem fim. Agora,
além de lidarmos com o abuso físico sofrido por Nicole, temos de ver muita
gente, capitaneada pela velha mídia, menosprezando o acontecido. O problema é
que a agressão não aconteceu num vácuo. O tempo todo e no mundo inteiro pessoas
são abusadas, estupradas e ameaçadas.
Quando falamos de Gerald Thomas e
Nicole Bahls, não estamos nos restringindo a esse caso. Todos os textos sérios
que li a respeito tratavam da cultura, de como certas atitudes consideradas não
criminosas e até aceitáveis fazem parte de um panorama maior – e, juntas,
normatizam a ideia de que não somos donos dos nossos próprios corpos.
Nem de longe se trata de falso
moralismo. Para quem não me conhece, este blog nasceu com relatos dos meus
encontros sexuais. Eu tenho um livro publicado a respeito. Falo a respeito e
faço sexo com naturalidade, além de advogar pela liberdade individual e pleno
exercício dos nossos corpos, com um parceiro, com mil, com nenhum; com ou sem
amor; com estranhos ou com pessoas íntimas. Pra mim, só há três regras: que
seja seguro, que seja prazeroso, que seja consensual. Esse consentimento deve
ser ostensivo. Não deve ser ausência de não e sim um “quero” com toda a força
que o desejo tem.
Por mim, discutiríamos sexo sem
pudores e sem a hipocrisia social obrigatória. Contudo, o que aconteceu ali não
foi sexo. Foi um toque agressivo na região genital da moça, por si só já
suficiente para caracterizar o crime de estupro de acordo com a lei vigente. É
a primeira vez em que uso a figura do estupro para me referir ao que aconteceu
(estou falando da tipificação penal, não da cultura, porque desta última falei
bastante).
É importante dizer isso porque
muitos estão falando que é necessário haver penetração para o crime acontecer. A lei mudou em 2009 e, ao menos isso,
abandonamos pelo menos legalmente a perspectiva falocêntrica do estupro. Antes,
era necessário que houvesse penetração de um pênis numa vagina. Por
conseguinte, o uso de objetos ou a penetração anal caracterizavam outro crime,
diminuindo a importância da agressão.
Entendo que quem não trabalha com
direito desconheça o tipo penal. Vejo a repetição do “não houve penetração”
como mera má informação em alguns casos. Em outros, especialmente quando é um
jornalista, entendo como uma atitude desonesta.
Assim como foi desonesto o
programa Pânico de ontem. Começou com uma patética manifestação feminista fake.
Não havia feministas ontem na porta da emissora de tv, assim como não houve
ameaça ao diretor do programa. O que aconteceu foi uma manifestação pacífica, online, por meio de blogs e páginas do Facebook.
Contratar meia dúzia de atrizes para fingir que havia ali uma manifestação é
muito reprovável.
Muitos telespectadores acreditam
sem pestanejar no que assistem. Ao criar o “protesto”, a produção do programa
se deu uma importância que não existe, além de tentar reiterar a ideia de que
nós, feministas, somos apenas umas mulheres sem ter o que fazer e que reclamam
por tudo. Basta ver as perguntas toscas feitas pelo Vesgo: “desde que horas
você está aqui?”. Na cabeça de muita gente deve ter ecoado o “estão lá o dia
inteiro e a pia deve estar cheia de louça pra lavar”.
Isso já seria suficiente para
mostrar o desrespeito com que somos tratadas. Eu sei que as bundas em profusão
e as humilhações contumazes no programa já demonstram isso. Mas não é a
discussão do momento (sim, feminismo também trata da cultura da objetificação
dos corpos e da exploração comercial dos mesmos).
O desrespeito continuou com a
presença do psicólogo Jacob Pinheiro Goldberg no longuíssimo VT sobre o caso.
Ele falou em projeção e sobre como nossa sensibilidade é a responsável por
acharmos que aquilo foi uma brincadeira (como se fosse possível) ou uma
agressão. Esse papo de projeção como justificativa pra tudo é patético, pois
tira o foco do ato e o coloca na reação do outro.
Ele mencionou repressão sexual, e
este é outro discurso que não cabe aqui. Eu sou totalmente a favor de pegarem
na minha buceta, inclusive gosto muito, desde que eu tenha permitido.
O consentimento, aliás, é necessário para qualquer toque e até mesmo para falar
com alguém fora das circunstâncias meramente sociais. Para piorar as coisas,
ele ainda disse que Nicole é irresistível. Como escrevi no post anterior, não
somos irracionais, movidos por uma força incontrolável que nos faz usar do
corpo alheio sem permissão para tanto.
O apresentador do programa também
não foi honesto quando disse que a imprensa estava perseguindo a produção. Pelo
contrário: a velha mídia (jornais e sites de grandes conglomerados) trataram
tudo como brincadeira. Claro! O que seria da mídia sem o jornalismo punheteiro?
Além disso, pintaram Gerald Thomas como gênio e excêntrico, enquanto Nicole
seria apenas a gostosa da vez. Se alguém ainda tem dificuldade de enxergar pra
que lado a balança pende nesta relação…
Depois de um programa todo
roteirizado para fazer chacota da moça e endeusar o diretor de teatro, o tiro
saiu pela culatra. Emilio pergunta à Nicole se ela achava que era uma
brincadeira. A resposta foi positiva mas, quando o apresentador já estava
encerrando a transmissão, Nicole aproveita o microfone aberto e diz “se fosse
na rua, eu teria feito um barraco”.
“Então por que ela não fez ali?”,
perguntam muitos. A resposta não é fácil, tampouco objetiva. Só ela pode dizer
o que sentiu. E não, eu não estou falando de uma declaração à imprensa, mas
sobre o que ela sente no âmago. Talvez ela não tenha consciência do que lhe
aconteceu.
Afirmar isso não é vitimizar a
mulher, mas negar é, certamente, ignorar as relações de poder e a história de
abuso (não só sexual) dos corpos de quem faz parte de minorias.
A discussão ultrapassa o fato
acontecido na última semana, pois ele fala sobre nós. Uma a cada seis mulheres
sofrerá abuso sexual consumado ou tentado durante a vida. Provavelmente essa
estatística ainda está baixa, pois tais crimes em geral não são reportados. Uma
a cada seis. Os números são suficientes para enxergarmos que isso faz parte de
uma cultura em que a mulher só existe para servir ao homem.
Como venho afirmando há muito,
apenas repetindo o que as feministas que vieram antes de mim já estão cansadas
de saber: tomar o poder sobre o próprio corpo é essencial para a liberdade e
empoderamento de todas nós.
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