Sem liberdades democráticas é impossível a práxis revolucionária das
massas, a autoeducação popular pela experiência prática, a autoemancipação
revolucionária dos oprimidos e o próprio exercício do poder pela classe
trabalhadora
Durante anos, as únicas obras de Rosa Luxemburgo
conhecidas no Brasil foram as editadas por alguns pioneiros como Mario Pedrosa
– o ensaio sobre a Revolução Russa (em 1946) – ou Lívio Xavier: Reforma
ou revolução (em 1955). Graças a Isabel Loureiro e à Editora Unesp,
pela primeira vez existe no Brasil uma edição em três volumes dos principais
escritos da revolucionária judia-polonesa-alemã e de sua correspondência,
traduzidos de suas línguas originais.1 Por que esse atraso? Tem a ver, sem
dúvida, com o peso que teve o stalinismo na história da esquerda brasileira...
Os volumes estão organizados em ordem cronológica:
o primeiro corresponde ao período que vai de 1899 a 1914. Nesse volume se
encontram textos célebres, como a polêmica contra o “revisionismo” de Eduard
Bernstein – “Reforma social ou revolução?”(1899) –, a crítica do centralismo
leninista – “Questões de organização da social-democracia russa” (1903-1904) –
ou a discussão sobre a greve geral – “Greve de massas, partido e
sindicatos”(1906) –, mas também outros menos conhecidos, sobre “A Igreja e o
socialismo”, que seguramente vai interessar aos leitores brasileiros, ou sobre
o direito de voto das mulheres. O “corte” histórico é, evidentemente, o 4 de
agosto de 1914: a adesão da social-democracia à Primeira Guerra Mundial. O
segundo vai de 1914 a 1919, isto é, desde os primeiros textos contra a guerra
imperialista até o assassinato de Rosa Luxemburgo pelos paramilitares (Freikorps)
levados a Berlim pelo ministro social-democrata Gustav Noske para esmagar a
insurreição de janeiro de 1919. Figuram nesse volume: a famosa “Brochura de
Junius” – “A crise da social-democracia”(1916) –, texto fundamental na
história do pensamento marxista, que avança a perspectiva de uma história
aberta, ainda a ser decidida: socialismo ou barbárie; o manuscrito
sobre “A Revolução Russa”, de 1918; os últimos escritos em torno da Revolução
Alemã, defendendo as posições da Liga Spartakus e do recém-fundado Partido
Comunista Alemão (1918-1919). O terceiro volume contém uma seleção da
correspondência, diretamente traduzida do alemão e do polonês, dando prioridade
às cartas de caráter pessoal, dirigidas a seus amantes (Leo Jogiches, Costia
Zetkin, Hans Diefenbach, Paul Levi) e suas amigas (Sophie Liebknecht, Luise
Kautsky, Mathilde Wurm). Só ficaram faltando os escritos econômicos, a
“Introdução à economia política”e a “Acumulação do capital”, que, por seu
volume, necessitam uma publicação separada.
Se fosse necessário escolher um traço distintivo da
vida e do pensamento de Rosa Luxemburgo, acho que se deveria privilegiar seu humanismo
revolucionário. Seja em sua crítica implacável do capitalismo como
sistema desumano, em seu combate contra o militarismo, o colonialismo e o
imperialismo, ou em sua visão de uma sociedade emancipada, sua utopia de um
mundo sem exploração, sem alienação e sem fronteiras, esse humanismo socialista
atravessa como um fio vermelho o conjunto de seus escritos políticos – mas
também de sua correspondência, suas comoventes cartas de prisão, que foram
lidas e relidas por sucessivas gerações de jovens militantes do movimento
operário (entre os quais também minha mãe, que trouxe um exemplar desse livro
quando emigrou de Viena para o Brasil em 1934).
Talvez o documento no qual o humanismo
revolucionário de Rosa Luxemburgo se manifesta da forma mais impressionante
seja o ensaio sobre a Revolução Russa, escrito na cadeia em 1918. Seu teor é
conhecido: por um lado, o apoio aos bolcheviques, que, com Lenin e Trotsky à
cabeça, salvaram a honra do socialismo internacional, ousando a Revolução de
Outubro; por outro lado, uma profunda crítica à supressão, pelos mesmos
bolcheviques, das liberdades democráticas – liberdade de imprensa, de
associação e de reunião –, que são precisamente a garantia da atividade
política das massas operárias; sem elas é impensável a dominação das grandes
massas populares. As tarefas gigantescas da transição ao socialismo – “que os
bolcheviques enfrentaram com coragem e resolução” – não podem ser realizadas
sem “uma intensiva formação política das massas e acúmulo de experiências”,
impossíveis sem liberdades democráticas. A construção de uma nova sociedade é
uma “terra nova” que suscita “mil problemas”; ora, “só a experiência é capaz de
corrigir e de abrir novos caminhos”. O socialismo é um produto histórico
“nascido da própria escola da experiência”: o conjunto das massas populares
deve participar dessa experiência, de outro modo “o socialismo é decretado,
outorgado, por uma dúzia de intelectuais fechados num gabinete”. Para os
inevitáveis erros do processo, o único corretivo, “o único sol que cura e
purifica”, é “a própria revolução e seu princípio renovador – a vida
intelectual, a atividade e a autorresponsabilidade das massas que ela suscita,
portanto a mais ampla liberdade política”. Em outras palavras: sem liberdades
democráticas é impossível a práxis revolucionária das massas, a autoeducação
popular pela experiência prática, a autoemancipação revolucionária dos
oprimidos e o próprio exercício do poder pela classe trabalhadora.
O capítulo sobre democracia desse documento de Rosa
Luxemburgo é um dos textos mais importantes do marxismo, do comunismo, da
teoria crítica e do pensamento revolucionário do século XX. É difícil imaginar
uma refundação do socialismo no século XXI que não leve em conta os argumentos
desenvolvidos nessas páginas febris.
Michael Löwy é sociólogo e diretor de pesquisa em
sociologia do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) de Paris.
Autor do La Pensée de Che Guevara (Paris, Syllepse, 1997) e co-autor,
com Olivier Besancenot, de Che Guevara: une braise qui brùle encore (Paris,
Mille et une nuits, 2007)
Ilustração: Manohead
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