Pressão contra Haddad envolve soberania popular e democracia
Muitas vezes, os
golpes contra a democracia são
movimentos óbvios e visíveis, ilustrados por tanques de guerra,
baionetas e generais. Vivemos tempos em que a consciência democrática dos povos
rejeita ataques frontais a seus direitos e é capaz de sair às ruas para
defender conquistas históricas e
permanentes.
São tempos de judicialização, quando forças conservadoras,
sem voto, batem a porta dos tribunais
para ameaçar a soberania popular, ignoram a vontade do cidadão e procuram
resolver, às suas costas, o que é melhor
para um país, um Estado, uma cidade.
A Constituição diz, no artigo 1, que todos os poderes emanam
do povo, e são exercidos através de representantes eleitos – ou diretamente, na
forma da lei.
Penso nisso diante da mais recente cena do Superior Tribunal
Federal. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, eleito de forma límpida e
clara em 2012, foi obrigado a apresentar recurso para Joaquim Barbosa anular
uma liminar da Justiça de São Paulo que proíbe a cobrança do aumento no IPTU,
principal fonte de recursos da prefeitura da maior cidade do país.
Vamos combinar: já é absurdo que um prefeito que recebeu 55%
dos votos no segundo turno seja obrigado a fazer uma caravana até Brasília para
fazer valer seu direito de definir como pretende governar São Paulo.
É ainda mais absurdo, no entanto, que a palavra final fique
com a Justiça.
Não há nenhum aspecto, neste debate, que envolva matéria
constitucional. Do ponto de vista eleitoral, Haddad pode estar até ajudando a
colocar uma pedra na reeleição de Dilma Rousseff, como acreditam tantos
petistas de olho em 2014, mas este é um debate entre o prefeito e seu partido.
A questão aqui envolve princípios e nunca é demais lembrar a
visão que explica que os bons princípios são aqueles que podem ser defendidos
inclusive quando contrariam nossos interesses.
O IPTU é um imposto tradicional das cidades brasileiras, com
alíquotas que sobem e descem de acordo com as prioridades de cada prefeito.
Minha opinião é que o STF tem obrigação de devolver o assunto a quem foi eleito
para isso – o prefeito e a Câmara de Vereadores, que já tomou posição a favor
do aumento, também.
Essa situação elimina o mais maroto dos argumentos
favoráveis a judicialização, aquele que admite que é um caminho errado, mas diz
que a Justiça só entra em cena por causa da omissão dos demais poderes.
Qualquer passo em falso, nessa matéria, representará um
ataque à vontade popular.
O recurso alternativo, de cozinhar o assunto numa sopa de
oportunidades durante meses sem fim, será, na prática, uma forma de atender a
pressão contra o aumento do IPTU, privando a cidade de recursos que o prefeito
julga serem necessários – foi ele o escolhido por 3,3 milhões de eleitores para
resolver isso.
Ao dar a liminar contra o aumento, o Tribunal de Justiça de
São Paulo alegou, como causa principal, a “falta de debate público” sobre o
tema.
Desculpe mas pensei que isso tinha ocorrido na eleição. Quer
dizer que tivemos o horário político, os debates eleitorais em todos os canais
de TV e é possível alegar que “faltou debate?”
Depois de protestos de junho, onde a questão do transporte
coletivo teve um destaque óbvio, será razoável bloquear receitas para
investimentos que, por caminhos diversos, irão enfrentar este problema?
Nem nos tempos de George Bush, pai, aquele presidente dos
EUA que mandou a população fixar o olho em seu lábios enquanto ele dizia
vagarosamente não-haverá-mais-impostos durante a campanha, para mudar de ideia
depois da posse na Casa Branca ouviu-se um argumento desses. Tão subjetivo,
digamos assim.
O debate sobre impostos maiores e menores faz parte do
cotidiano político das democracias e, salvo nas ditaduras, sempre foi resolvido
pelo eleitor. Fernando Henrique Cardoso fez a carga tributária subir de 24% do
PIB para 35%. Foi assim que seu governo conseguiu manter o célebre equilíbrio
fiscal. O Supremo não deu um pio, nem
poderia nem deveria.
Dilma Rousseff desonerou vários setores da economia. Nos
Estados municípios, governadores e
prefeitos criam e eliminam incentivos fiscais. É possível debater a
oportunidade de cada uma dessas medidas. Mas seria absurdo questionar o direito
de autoridades eleitas de resolver uma questão fundamental do funcionamento do
Estado.
O Estado do bem-estar europeu não foi construído com
recursos espirituais, mas com impostos
retirados dos mais ricos – inclusive sobre grandes fortunas – para beneficiar
os mais pobres. Imagine se eles fossem bater as portas dos tribunais para
revogar as decisões? Como mostra o grande pensador Tony Judt, a Europa estaria
nos braços negros do fascismo até hoje.
A contra revolução conservadora patrocinada por Ronald
Reagan, nos EUA, tinha como base o corte de impostos da classe média alta e dos
ricos. Ninguém foi à Corte Suprema por
causa disso. Podemos até não gostar, mas era
o voto que naquele momento dava autoridade a Reagan. O mesmo aconteceu na Inglaterra, nos anos de
Margareth Thatcher. A população chegou a fazer uma revolta popular quando ela
criou uma taxa que tungava fundo no orçamento da população dos bairros mais
pobres – a palavra final coube ao eleitor.
A questão do IPTU
paulistano foi levada ao Supremo por esses caminhos que sempre são percorridos
por quem não tem respaldo na vontade popular. Não foi por acaso de Haddad
mencionou a eliminação da CPMF, ocorrida no segundo mandato do governo Lula.
Naquele momento, a mesma FIESP já presidida pelo mesmo Paulo
Skaf participou da operação que acabou com a CPMF através do Congresso. A ação
nada teve de democrática. Os deputados tinham medo de não conseguir reeleger-se
no pleito seguinte depois de apoiar uma medida tão perniciosa para a população
mais pobre e queriam dinheiro para mudar de lado. Foi um escândalo, conforme
apurou a Polícia Federal na Operação Castelo de Areia.
Com base na investigação do caixa 2 de uma das maiores
empreiteiras do país, descobriu-se o pagamento de propinas imensas a uma larga fatia do
Congresso. Feito o serviço com os parlamentares, chegou a hora de pedir ajuda a
Justiça para se impedir a punição dos responsáveis.
Havia montanhas de diálogos gravados, comprometedores e
vergonhosos. Mas as principais peças de acusação foram anuladas, pois haviam
sido obtidas sem autorização judicial. Resultado: o STF anulou as provas e
ficou tudo por isso mesmo. Está certo? Está, por mais que seja chato admitir
isso. A democracia tem seus rituais, e um deles informa que os direitos dos
cidadãos, mesmo aqueles acusados de crimes gravíssimos, devem ser respeitados.
E é em nome dos mesmos rituais que ( putz! ) ajudaram a
salvar até aqueles tubarões que derrubaram a CPMF, mas em função de uma causa
muito melhor, que se deve devolver as prerrogativas democráticas a quem tem o
direito de falar pelo povo.
A alternativa é a ditadura judicial. Este é um sistema que
até pode conviver com algumas franquias democráticas mas, toda vez em que os
ricos e poderosos se consideram atingidos em seus direitos, oferece acesso
especial e personalizado para revogar medidas que não são de seu interesse.
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