Em artigo exclusivo para o 247, o jornalista Breno Altman
desmistifica a tese de que os militares derrubaram João Goulart, há 50 anos,
porque a esquerda planejava implantar um regime totalitário no País; "O
que ocorreu naquele primeiro de abril foi a vitória de uma mentira que
disfarçava um plano sólido. A conquista de consenso para a modernização
conservadora, conduzida pela ditadura dos generais, passou pelo ataque ao
espantalho do autoritarismo de esquerda. A função dos meios de comunicação, à
época, era agigantar esse boneco e a situação de suposto caos que o cercava,
para justificar que as tropas tomassem as ruas e tivessem as mãos livres para o
serviço sujo", diz ele; "O mais curioso são as pontes erguidas por
Fernando Henrique Cardoso e José Serra, vítimas e adversários do golpe, em
direção à teoria da dualidade demoníaca, provavelmente no intuito de manter os
atuais laços entre a nova e a velha direita", afirma; íntegra
Por Breno Altman, especial para o 247
O cinquentenário do golpe militar traz à baila narrativa que
a direita gloriosamente fabrica para enquadrar o episódio. Núcleo fundamental
do teorema: os militares romperam a Constituição e tomaram o poder, com amplo
da burguesia brasileira, para se anteciparem a supostos planos golpistas de
João Goulart e seus aliados.
Setores mais lúcidos e malandros do conservadorismo (entre
os quais, obviamente, não estão correntes abertamente fascistas) até reconhecem
crimes e atropelos da ditadura. Mas a alternativa fardada é apresentada como um
demônio que a outro se contrapunha.
Os artífices desta explicação reconhecem que a truculência
do diabo verde-oliva, de posse dos aparatos de Estado, excedeu a violência de
seu inimigo vermelho. Resolvem esse detalhe, porém, valorando a sedição dos
quartéis como remédio amargo e exagerado à doença que estaria tomando conta do
corpo pátrio e se preparava para o bote final.
O roteiro se completa com uma determinada dissertação sobre
os desdobramentos de 1968, quando a ditadura impõe o Ato Institucional nº 5.
Até então, segundo os teóricos das opções infernais, vivia-se período de
autoritarismo brando, que teria sido desafiado pelo surgimento da resistência
armada. O endurecimento do regime militar, assim, seria consequência dos
mau-modos da besta vermelha, que teriam provocado o descontrole do belzebu das
casernas.
Nos últimos dias, esta tese tem sido brandida por diversas
vozes, com uma ou outra variação. Está presente, por exemplo, nos editoriais da
Folha e do Estado, nos quais a mea-culpa vem maquiada e travestida por estas
supostas condições históricas. Pesquisadores mequetrefes e penas de aluguel, da
extirpe de Marco Antônio Villa, também cantam nesse coro. Sequer um jornalista
renomado como Elio Gaspari escapa da tentação de flertar com esta interpretação
fuleira.
O mais curioso são as pontes erguidas por Fernando Henrique
Cardoso e José Serra, vítimas e adversários do golpe, em direção à teoria da
dualidade demoníaca, provavelmente no intuito de manter os atuais laços entre a
nova e a velha direita, aliança que corresponde ao núcleo duro da oposição
contra os governos liderados pelo PT.
A questão central é que a ladainha dos infernos está apoiada
sobre uma dupla mentira. Não havia qualquer plano ou operação em curso,
dirigida por Jango ou os demais protagonistas de esquerda, com o objetivo de
executar as reformas prometidas por fora da via institucional e das
possibilidades previstas na Constituição. Tampouco a luta armada foi
efetivamente implementada, apesar de moralmente legítima desde o putsch
militar, antes que os caminhos legais tivessem sido fechados pela decretação do
AI-5.
O levante de 1964 foi urdido aos poucos, ao longo de quinze
anos. Quem estiver interessado, basta ler sobre a fundação da Escola Superior
de Guerra, em 1949, depois que o general Salvador César Obino regressa de uma
visita ao National War College, nos Estados Unidos, no alvorecer da tensão com
a União Soviética.
A ESG logo se pautou pelo binômio "segurança e
desenvolvimento", indo muito além do estudo de questões corporativas. Foi
sendo forjada, no seu interior, a doutrina pela qual o salto adiante no capitalismo
brasileiro pressupunha não apenas a liquidação da esquerda como também a
derrota das correntes nacionalistas e a subordinação dos partidos políticos da
burguesia a um cesarismo de tipo militar.
Não é à toa que seus dois primeiros comandantes foram
Cordeiro de Farias e Juarez Távora. Ex-lideres tenentistas, convertidos ao
conservadorismo após a revolução de 1930, mantinham desde a época da Coluna
Prestes, da qual fizeram parte do estado maior, a convicção que a velha
política parlamentar e institucional, intrinsecamente corrupta e repartida por
interesses privados, era grande obstáculo para o avanço nacional.
Nas salas desta instituição foi sendo formada ou reciclada
uma geração de altos oficiais que mesclavam anticomunismo com uma noção de
destino sobre o papel que caberia aos militares no comando do país. Esta
oficialidade foi tecendo sua própria rede de relações internacionais,
compromissos empresariais, vínculos com os meios de comunicação e alianças
políticas.
A primeira tentativa golpista foi barrada pelo suicídio do
presidente Getúlio Vargas, que provocou intensa mobilização popular e animou
resistência de setores progressistas dentro das próprias Forças Armadas. Levou
quase dez anos para que emergisse nova conjuntura favorável ao bonapartismo dos
generais.
Os sediciosos retomaram a ofensiva na renúncia de Jânio
Quadros, em 1961, quando imaginaram impedir a posse do vice João Goulart,
eleito pelo voto direto e popular. Sucumbiram à Cadeia da Legalidade e às
divisões internas nos quartéis. Mas as dificuldades para consolidar a hegemonia
das forças progressistas, dentro e fora das instituições, mantiveram abertas
avenidas ao fortalecimento do golpismo.
O governo Goulart foi sabotado desde o primeiro dia, por
forças locais e internacionais. Preparava-se sua derrubada. Criavam-se
adversidades, obstáculos, impedimentos. Bloqueadas as reformas, por falta de
maioria parlamentar, a coalizão cívico-militar de direita conseguiu enfraquecer
o presidente e paralisá-lo.
Jamais esteve no cardápio de Jango, contudo, a virada de
mesa. O testemunho de Almino Afonso, ex-ministro do Trabalho, negando
taxativamente qualquer plano de "golpe comunista", é bastante
representativo do que se passava. O chefe de Estado e seus parceiros estudavam
soluções, algumas delas passavam por mudanças constitucionais, mas nunca foi
colocada qualquer hipótese de atropelar a legalidade.
Ao contrário, as críticas que cabem ao líder deposto
possivelmente seriam mais honestas se dissessem respeito à sua incapacidade ou
indisposição de recorrer a instrumentos políticos e institucionais que poderiam
derrotar a sedição. João Goulart tinha compromisso com reformas, mas não era de
sua índole ou origem de classe liderar resistência à contra-revolução burguesa
que se tecia a olhos vistos.
O que ocorreu naquele primeiro de abril foi a vitória de uma
mentira que disfarçava um plano sólido. A conquista de consenso para a
modernização conservadora, conduzida pela ditadura dos generais, passou pelo
ataque ao espantalho do autoritarismo de esquerda. A função dos meios de
comunicação, à época, era agigantar esse boneco e a situação de suposto caos
que o cercava, para justificar que as tropas tomassem as ruas e tivessem as
mãos livres para o serviço sujo.
Nesse novo primeiro de abril, depois de cinquenta anos, a
teoria dos dois demônios se presta a mesma finalidade, agora em caráter
retrospectivo. Os sócios do terror e do partido da morte, afinal, precisam
desse álibi para explicar o comportamento que tiveram naquele momento dramático
de nossa história.
Breno Altman é jornalista e diretor editorial do site Opera
Mundi
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