terça-feira, 1 de abril de 2014

Qual é o lugar do heroísmo numa democracia constitucional?

Crítica Constitucional

A história das instituições numa democracia constitucional pode ser contada de diversas maneiras. Fazer um preciso corte entre as narrativas não é tarefa fácil ou mesmo desejável, mas perceber a distinção entre elas pode ser bastante proveitoso para desconstruir a personalização de alguns mitos.
Algumas delas têm como foco o conjunto de procedimentos, as estatísticas, as grandes decisões e os processos de mudança pelos quais passaram as instituições; outras dirigem maior atenção ao cotidiano, à atuação de seus integrantes e, como seria de se esperar numa sociedade do espetáculo como a nossa, às personalidades daqueles que a compõem.

Atos de coragem e desprendimento pessoal em benefício da comunidade costumam ser valorados como posturas morais positivas, dignas de louvor, especialmente quando o comportamento desafia o senso de perigo, oferecendo risco para quem se arrisca em nome dos valores em que acredita.
Também as avaliações socialmente partilhadas sobre a ideia de justiça são compostas de idealizações do gênero. Um gênero propício à criação da imagem de heróis. Na mitologia grega eles eram capazes de se sobressair pela força física ou pelas qualidades de guerreiro, como Aquiles e Hércules; outros, por atributo de sua inteligência e sagacidade, eram responsáveis por feitos extraordinários, como o de Édipo, que ao decifrar o enigma da esfinge, tornou-se rei de Tebas.
Frei Caneca, Zumbi dos Palmares e Nísia Floresta não teriam avançado em suas lutas por liberdade se tivessem perdido a capacidade de se indignar contra uma ordem injusta e a ousadia de confrontá-la. Da mesma forma, Martin Luther King, Nelson Mandela e, de modo distinto, Mahatma Gandhi, não alcançariam seus objetivos na batalha anti-racista pela igualdade de direitos e por autonomia política se tivessem se conformado com a obediência.
Quanto maior o desafio ou mais poderosa a tirania a ser combatida, mais valorosa torna-se a reputação do herói. Mas como compatibilizar uma noção tal de heroísmo quando o regime político estabelecido se legitima pelo respeito às regras que limitam as possibilidades de escolha e a subjetividade do ato de decidir? Ou seja, como considerar heroico um ato que afronta a ordem? O esforço para fazer prevalecer a ordem é heroísmo ou apenas dever?
Apresentar o problema desse modo é uma outra forma de perguntar: qual o critério para aferir a legitimidade das regras? Uma questão que pode ser feita e refeita indefinidamente, mas que, no plano dos fatos, confronta-se com a necessidade diária de tomar decisões num ambiente progressivamente complexo.
Com essa consideração, a questão sobre o heroísmo se desloca para outro plano, colocando-se nos seguintes termos: que “heroísmo” está presente nas diversas narrativas e qual o papel delas numa democracia constitucional.
Alguns exemplos ajudam a mostrar como a imagem do heroísmo ou da vilania é construída por quem conta a história, razão que justifica uma certa desconfiança, não só em relação aos poderes de heróis e heroínas, mas também quanto aos seus narradores.
É amplamente conhecida a versão de que o ingresso dos Estados Unidos na Segunda Guerra foi decisivo para a derrota alemã, o papel do General Eisenhower na coordenação estratégica do chamado “dia D”, a acusação sustentada pelo promotor Robert Jackson contra os criminosos de guerra em Nuremberg, entre outros elementos que reforçam a visão dos norte-americanos como heróis da história. Porém, os relatos sobre o recrutamento de militares da inteligência nazista (Reinhard Ghelen’s group) para trabalhar em projetos da CIA, além de terem sido mantidos em segredo por anos, não ganharam as telas de Hollywood.
Importa destacar, então, que mesmo após o final da Guerra e declarado encerrado o período de exceção, a seleção dos planos de espionagem norte-americana deixou livres de julgamento e responsabilização vários agentes da SS, inclusive alguns que participaram diretamente da execução da “solução final” (o projeto nazista de extermínio dos judeus). Aqui a ordem vigente dos “heróis” vencedores serviu para abrigar alguns dos “vilões” derrotados, embora a versão histórica predominante assim não tenha revelado.
A imagem de muitas personalidades da política mais recente, sejam de direita ou esquerda, também costuma ser associada ao heroísmo, mas nem sempre em razão da compatibilidade de suas ações com o que chamamos de direitos humanos.
Na América Latina, a imagem de Fidel Castro goza da admiração de um grande número de militantes por seu papel na transformação do país e das condições de vida da população cubana, mas seus admiradores não levantam, por outro lado, como o machismo e a homofobia foram uma constante do processo revolucionário, inclusive com o apoio do partido comunista.
Também o Papa Francisco, novo ídolo religioso e representante político carismático que lidera um movimento de resgate da imagem da Igreja Católica, tem em seu passado uma relação polêmica com a ditadura militar argentina, cujas denúncias de cumplicidade com o regime envolvem o sequestro e a tortura de dois sacerdotes jesuítas.
José Mujica, o admirável presidente uruguaio, é um exemplo de como a dinâmica da política permite a “conversão” do vilão em herói e vice-versa. Mujica tem feito um governo elogiado por medidas como o reconhecimento do casamento homoafetivo, a descriminalização do aborto e, mais recentemente, a legalização do cultivo, distribuição e consumo da maconha, além de promover o crescimento econômico aliado à redução das desigualdades.
Além disso, possui uma perspicaz habilidade em captar elementos que reforçam a sua imagem pública: dispensa o terno e a gravata assim como as formalidades e protocolos, não tem marqueteiros, vive de maneira simples com uma casa e carro modestos, doa 90% do seu salário para projetos beneficentes e não economiza nas críticas ao mercado financeiro e aos círculos de poder nas relações internacionais, que prejudicam o desenvolvimento dos países mais pobres.
Porém, muitas das pessoas e veículos de imprensa que hoje parecem beatificar a imagem do presidente uruguaio, talvez o chamasem de criminoso na década de 1960. Por ter sido um dos líderes do Movimento de Liberação Nacional – Tupamaro, um grupo da guerrilha urbana de esquerda sem vinculacão partidária que congregava trabalhadores sob as bandeiras do nacionalismo e anti-imperialismo, Pepe Mujica foi preso e torturado. Conseguiu fugir, porém foi recapturado e passou 14 anos no cárcere, voltando à cena política com o restabelecimento da democracia em 1985. Então, sobre a trajetória de Mujica é de se perguntar: mudou o personagem, o contexto político ou ambos?
Não é objetivo do texto responder essa pergunta, mas justamente mostrar como se torna complexa a qualificação pública da virtude ou da sordidez numa sociedade plural.
O cenário brasileiro é pródigo em exemplos. Uma lista exemplificativa com casos recentes poderia incluir politicos como Demóstenes Torres que atraiu para si a imagem de defensor da ética contra a corrupção (até ter suas relações com o bicheiro Carlinhos Cachoeira reveladas); Marco Feliciano, cujo discurso é marcado pelo resgate dos valores da família brasileira a partir de sua visão religiosa, mas que não hesita em pedir a senha do cartão de crédito aos seus fiéis durante o culto ou agradece quem presenteia com um carro a sua filha, tudo em nome de Jesus, claro; além do mais obtuso e caricato deles, Jair Bolsonaro, ferrenho defensor do golpe de 1964 e porta-voz de um reacionarismo ofensivo aos direitos humanos, especialmente às demandas das minorias sexuais. Um ponto em comum entre eles: a articulação de discursos falaciosos que tendem a deslocar toda espécie de questão política para o plano da moral, onde o bem e o mal são valores absolutos e “quem não está do meu lado só pode ser meu inimigo”.
Discursos moralizantes como esses se tornam especialmente temerários quando associados ao nacionalismo de apelo militar, demonstrando a importância das regras do jogo numa democracia, cujo guardião não é o quartel nem o fórum.
Por outro lado, de nada adiantaria ter regras se os seus limites não pudessem ser testados justamente quando os conflitos entre as distintas visões de mundo vêm à tona. É da capacidade de manifestação pública desses dissensos que a democracia retira sua vitalidade. Talvez este seja o espaço para o heroísmo numa democracia constitucional.
Afirmar a relevância do respeito às regras do jogo democrático não tem como consequência lógica a eliminação da dimensão subjetiva em que a própria noção de coragem voluntária reside, mas a institucionalização de procedimentos aptos à discussão dos conflitos entre as distintas visões sobre fatos, e não do bem ou mal em si, o que instaura um saudável ceticismo em relação àqueles que se apresentam como salvadores da pátria.

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