A auto-enganação alardeada por sucessivos governos com
saldos obtidos na Balança Comercial ofuscava a sinalização de desequilíbrio na
conta dos fluxos externos
Jaciara Itaim – Carta Maior
Uma das maneiras mais inadequadas de avaliar o desempenho da
política econômica é misturar os aspectos necessários de racionalidade na
análise com as intenções e os desejos envolvendo apenas elementos de
nacionalismo e de ufanismo. E vejam que não se trata de dizer que a economia
poderia ser utilizada como uma espécie de instrumento neutro ou assemelhado aos
modelos das ciências duras ou exatas. De jeito nenhum! A economia é política.
Mas, mesmo assim, algumas considerações merecem ser feitas.
Já afirmei em outras ocasiões por aqui que o nome completo
do campo do conhecimento que busco discutir neste espaço é “economia política”.
E isso vem da tradução do termo grafado no original em inglês, que sempre foi
usado pelos pensadores considerados clássicos do assunto, como Adam Smith ou
David Ricardo. O problema não é esse. Ocorre que ao longo da história, a
tradição norte-americana acabou comendo o adjetivo “política” e a “political
economy” acabou virando apenas “economics”. Uma sutileza que faz toda a
diferença.
A economia é parte integrante das ciências humanas, compõe o
universo das ciências sociais. No entanto, isso não significa dizer que não
existam leis particulares de funcionamento do fenômeno econômico e mecanismos
de análise específicos aplicados à dinâmica de acumulação de capital.
Reconhecer sua natureza “política” não significa desconsiderar a necessidade da
seriedade, da competência e da responsabilidade na condução da mesma como
política pública. Os responsáveis pela política econômica de um País não podem
se permitir os erros e os equívocos, tal como estamos habituados a assistir,
sob pena de provocarem prejuízos e danos em escala planetária.
Economias abertas e as relações internacionais
Tais considerações preliminares são importantes de se levar
em conta quando analisamos um elemento essencial da política econômica - a questão
cambial. Os modelos mais simples de análise da economia consideram,
inicialmente, os fenômenos apenas em sua escala nacional - a chamada economia
autárquica. Para facilitar a compreensão, imagina-se uma sociedade ou um país
fechado em suas relações comerciais e econômicas. Assim, não há intercâmbio com
o exterior de mercadorias, de capital nem de força de trabalho. Um detalhe
essencial, nesse caso, é a existência de um único padrão monetário - a moeda
nacional.
Em geral, uma das primeiras etapas de “complexificação” dos
modelos explicativos é a introdução da chamada “abertura” da economia para
aquilo que o “economês” conhece como “o resto mundo”. A partir de então, tudo
começa a ficar mais complicado. As economias que se assemelhavam a ilhas
isoladas passam a travar relações com outras nações e as variáveis de política
econômica deixam de estar totalmente sob o controle das decisões adotadas
apenas no interior do espaço nacional.
A abertura dos modelos implica a possibilidade ou a
necessidade de se praticar exportações de bens e serviços. A contrapartida
desse movimento é o ingresso de mercadorias importadas para consumo no espaço
interno. Além disso, pode-se imaginar a abertura do fluxo financeiro, com
liberdade de ingresso ou saída de capital e dos rendimentos dele derivados (a
exemplo de juros e lucros). Ora, quando as transações econômicas e comerciais
passam a ser efetivadas em escala internacional, surge a necessidade de se introduzir
um meio de troca que também seja unanimemente aceito em escala global. No
início da era capitalista, essa função era exercida pelo ouro. As trocas
internacionais eram calculadas e realizadas com base no peso do metal precioso.
As diferentes moedas (e depois as próprias cédulas) nacionais também tinham seu
valor referenciado nesse tipo de métrica.
Globalização e a taxa de câmbio
No entanto, como a economia é política, a hegemonia exercida
pelos países em cada momento histórico acaba tendo também sua influência em
termos monetários. A época de ouro do capitalismo inglês conheceu a supremacia
da libra esterlina nas relações internacionais. A posterior ascensão dos
Estados Unidos possibilitou a substituição da moeda da antiga metrópole pelo
dólar norte-americano. Com o agravante posterior de sua desvinculação formal do
padrão-ouro, tal como ocorreu a partir da decisão do governo Nixon, na década
de 1970. Há mais de 4 décadas, portanto, um dólar vale um dólar porque todo
mundo acredita nessa identidade.
Dessa forma, cada vez mais um elemento que passa a ganhar
importância no meu de política econômica de cada país é a sua taxa de câmbio.
Ou seja, a relação do valor de troca da moeda nacional em relação às demais
moedas do mundo. Desnecessário lembrar que as referências mais importantes são
os padrões monetários dos países com o qual se mantêm maior relação comercial.
Moeda forte ou câmbio valorizado artificialmente?
Assim, existe uma tendência equivocada - de natureza
puramente emocional - a se considerar relevante uma moeda nacional considerada
“forte”. Enfim, é até mesmo compreensível, dada a complexidade de análise do
fenômeno econômico. Imaginem qual não seria o resultado de uma pesquisa
realizada pelo IBOPE junto à população brasileira: “você considera positiva ou
negativa a proposta de um real valorizado frente ao dólar?”. A maioria deve
bater no peito, todo orgulhoso, a favor de uma moeda nacional fortalecida
frente às demais. Ocorre que esse é um dos atalhos perigosos para o
nacionalismo de natureza ufanista e xenofóbica. Moeda forte não depende de
bravata governamental ou de orgulho dos compatriotas. Ela é função da
importância econômica do país no cenário internacional.
A opção de política econômica brasileira, levada a cabo nos
últimos tempos, revela bem os perigos do equívoco no tratamento da questão
cambial. A decisão de manter o famoso “tripé” em vigor desde o Plano Real
manteve a liberdade de fluxo de capitais externos e a livre flutuação da taxa
de câmbio, em função da oferta e da demanda de divisas internacionais. Esse
verdadeiro crime de responsabilidade para com a economia brasileira foi
praticado tendo por base a crença (ingênua?) na suposta existência de um
mercado livre para as trocas de moedas em nosso País. Um absurdo, como se os mega
operadores do mercado financeiro oligopolizado operassem como se fossem agentes
do mercado de batatinha, negociando o preço do tubérculo no final da feira.
Porém, a verdade é que o Brasil se manteve desde sempre como
um grande atrativo para as aplicações do capital especulativo internacional.
Isso porque - lembremo-nos todos! – o outro ponto de apoio do tripé exigia uma
política monetária de juros estratosféricos para controlar a inflação. Com a
SELIC nas estrelas, seguíamos a ocupando o posto de campeão mundial da
ortodoxia, com nossas praias sendo inundadas por recursos nominados em moeda
estrangeira. O resultado era mais do que previsível. Excesso de oferta de
dólares em nosso mercado de câmbio, fazendo com que o “preço” da moeda
norte-americana ficasse baixo frente ao nosso real. Com isso, nossa taxa de
câmbio ficava artificialmente valorizada. Mas nada ver com alguma suposta
pujança de nossa economia ou coisa parecida.
A crença imbecil na virtude da solução neo-liberal
imobilizou as diversas equipes econômicas na adoção de medidas de controle de
capitais ou de intervenção no mercado de câmbio para corrigir tal distorção - a
valorização inconsistente de nossa moeda. As consequências foram múltiplas:
desde a farra da gastança da classe média nas compras em Miami até a invasão
permanente de manufaturados importados de países asiáticos, em especial os
oriundos da China. A desindustrialização por mais de uma década tem apresentado
a sua fatura e as contas externas começam a exibir déficits bilionários mais do
que preocupantes.
A auto-enganação alardeada pelos sucessivos governos com os
saldos positivos obtidos na Balança Comercial ofuscava a sinalização de
desequilíbrio na conta financeira dos fluxos externos. Em 2013, por exemplo, o
déficit em Transações Correntes atingiu o valor acumulado anual de US$ 81 bi.
Um verdadeiro sinal amarelo na performance do setor externo. O que se faz
necessário é a coragem política de reconhecer o equívoco cometido e a urgência
em corrigir tal estado de coisas.
Isso significa promover uma política aulatina de
desvalorização cambial, de forma a recuperar um patamar de taxa de câmbio mais
realista, que impeça a continuidade da desindustrialização e ofereça algum
horizonte de credibilidade para a atividade produtiva a ser realizada em
território nacional. Como os diversos momentos adequados, desde 2003, foram
solenemente perdidos e desprezados, a correção de rumo na conjuntura atual é
bem mais delicada. A elevação da inflação e o represamento da necessária
correção de preços de energia, por exemplo, exigem uma estratégia mais
prudente, de desvalorização gradual.
E a coragem para mudar?
Apesar de não existir nenhuma resposta precisa a respeito de
qual seria a taxa de câmbio adequada à realidade da economia brasileira nos
dias de hoje, o fato inegável é que os atuais R$ 2,20 ainda carregam uma forte
dose de sobrevalorização artificial. Uma taxa próxima a R$ 3,00 com certeza
ofereceria maior competitividade às exportações de manufaturados brasileiros e
reduziria a farra dos importados. Um dos caminhos para tal quadro seria a tão
necessária redução da taxa oficial de juros, que tornaria o Brasil menos
atraente para especulação do financismo internacional.
Com menos dólares entrando, a taxa de câmbio caminharia
sozinha para uma desvalorização. Mas para tanto é necessário um pouco mais de
ousadia política.
Isso implica em causar algum arranhão nos lucros fáceis
obtidos pelo sistema financeiro. Porém, os ganhos para as futuras gerações são
inequívocos. O momento é esse e o caminho está traçado. Ao que tudo indica,
falta a coragem por parte de quem tem o poder e o dever da tomada de decisão.
(*) Economista e
militante por um mundo mais justo em termos sociais e econômicos.
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