por Mélanie Bourdaa e Mona Chollet
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É uma prática ilegal, mas amplamente difundida: por que
esperar que um canal de televisão nacional decida passar a nova temporada de
uma série estrangeira (normalmente norte-americana) de que gostamos quando
podemos baixar os episódios na internet imediatamente depois da exibição em seu
país de origem? Mas, para quem não fala fluentemente inglês, ainda existe o
problema da compreensão.
Apesar de a disponibilização de um vídeo em uma plataforma
de downloads se efetuar com facilidade, a legenda – a princípio em diversas
línguas – de milhares de episódios representa um trabalho hercúleo. No entanto,
algumas horas depois da primeira difusão do episódio cobiçado, qualquer um pode
encontrar em um site especializado um pequeno arquivo com legendas em sua
língua materna – francês, húngaro, russo, croata, espanhol, farsi... – para
juntar com seu arquivo de vídeo. Esse prodígio acontece graças à paixão de
amadores zelosos espalhados pelos quatro cantos do mundo. Assim, graças ao
fansubbing (“legendagem pelos fãs”), os espectadores de Game of Thrones, onde
quer que se encontrem no mundo, poderão saborear quase instantaneamente a
quarta temporada, que começa em 6 de abril no canal Home Box Office (HBO). A
série norte-americana de fantasia,1 iniciada em 2011, foi a mais baixada
ilegalmente em 2013, fato que orgulha seus produtores.2
O fansubbingnasceu nos anos 1980, com a legendagem dos
anime(desenhos animados japoneses) e dos mangás. Nessa época, os amadores
gravavam os episódios de anime em fitas de vídeo durante sua difusão. Em
seguida, transcreviam as legendas em folhas A4 e colocavam nas caixas das fitas
que enviavam para outros fãs. Com esse trabalho, eles cumpriam o papel de
descobridores, fazendo que produtos culturais criados para um público japonês
fossem conhecidos para fora das fronteiras do país. Hoje, eles permitem o
acesso a séries e filmes que não são difundidos em seus países.
Ao longo dos anos, os legendistas se organizaram e
desenvolveram competências específicas para melhorar e dividir seu trabalho. Na
França, o site U-sub.net reúne uma grande parte da comunidade de legendistas de
séries norte-americanas, mas também de anime. Nascida há cinco anos sob o
impulso de duas equipes que legendavam Battlestar Galactica (2004-2009) e
Stargate SG-1 (1997-2007), então ausentes dos canais franceses, a nebulosa
aumentou e conta hoje com mais de cem equipes. Já o site Seriessub.com, que
soma mais de 270 mil membros, propõe arquivos para 766 séries, fora do ar ou em
exibição, norte-americanas e outras, em download livre.
Para uma maior eficiência, os fansubbers funcionam em
equipe. Cada membro tem um papel bem determinado no processo. O primeiro
captura o episódio ou o filme e o disponibiliza on-line: é o uploader. Depois,
os outros dividem o trabalho: entre um ou dois tradutores por episódio, um
codificador que garante a boa sincronia das legendas com o diálogo original, um
editor – que verifica a fonte utilizada – e até quatro ou cinco revisores. A
equipe do legendista de anime conhecido como Corentin utiliza softwares
livres,3 como Substation Alpha ou Aegisub. Para a fase de codificação, recorrem
a Virtualdub. Cada equipe trabalha com uma série em particular; em geral seu
nome aparece no início do episódio. Os grupos se constituem diretamente nos
fóruns de legendagem, como confirma Corentin: “Eu nunca encontrei IRL [in real
life: na vida real] os membros da minha team [equipe]. Trabalhamos por e-mail
ou por SMS”. Depois de uma primeira difusão dos arquivos na urgência (tendo no
título a menção “Asap”, que significa as soon as possible, “o mais rápido
possível”), frequentemente novas versões mais elaboradas são propostas.
O papel desses fãs é particularmente importante junto a seus
pares, mas também na esfera pública. Seu trabalho instaura as condições de uma
legitimação das séries televisivas. Eles as oferecem, com efeito, na versão
original legendada, quer dizer, segundo o modelo próprio do cinéfilo. Ao
examinar as apresentações dos membros do fórum Seriessub, constatamos que todos
preferem assistir em versão original legendada em francês (Vostfr) ou legendada
em inglês (Vosta).
Na França, as séries norte-americanas são frequentemente mal
utilizadas pelos canais de televisão. Todos os episódios são mostrados em uma
mesma noite e na maioria das vezes acabam exibidos fora de ordem, o que quebra
a narrativa. The Good Wife (desde 2009) viu sua difusão ser interrompida no
canal M6 em razão dessa maneira de exibição, contrária às regras
norte-americanas. Além disso, algumas séries têm legendas adaptadas, destinadas
a torná-las acessíveis a um “público amplo”. Os diálogos de Xena: Warrior
Princess, série célebre por suas insinuações lésbicas entre Xena e sua
companheira Gabrielle, por exemplo, foram editados na versão francesa a fim de
eliminar qualquer ambiguidade sobre a relação entre as duas personagens
principais.
Os legendistas também possuem um papel de transmissores
culturais, pois devem por vezes fornecer precisões indispensáveis para a
compreensão da intriga. Eles as inserem entre colchetes nas próprias legendas
ou em textos mais longos nas páginas da web que propõem os arquivos para
download. Por exemplo, precisam explicitar alguns termos esportivos para Friday
Night Lights(2006-2011), consagrada ao futebol americano; o jargão da Casa
Branca e, mais amplamente, a cultura política norte-americana para The West
Wing (1999-2006); os meandros e as sutilezas do direito para a série jurídica
The Good Wife; o contexto político do pós-Katrina e as tradições locais – em
particular musicais – em Treme (2010-2013), que se passa em Nova Orleans.
Esse trabalho exigente e longo nem sempre é apreciado pelos
legendistas profissionais, nem mesmo pelos outros membros da comunidade de fãs.
Algumas equipes brigam nas redes sociais e nos fóruns quando legendam as mesmas
séries. Corentin diz ter parado com o fansubbing por causa da falta de respeito
dos outros membros da rede, que apontavam sem parar seu amadorismo.4 Além do
mais, os difusores dos programas não veem com bons olhos essa atividade que
coloca à disposição as séries estrangeiras antes deles. Pouco a pouco, no
entanto, eles acabam por se adaptar a essas novas práticas de recepção:
diversos canais (TF1, Canal Plus, OCS) propõem agora episódios legendados no
dia seguinte de sua difusão nos Estados Unidos. Eles interrompem assim o
trabalho dos fãs ao fornecer episódios em versão original legendados por
profissionais de maneira legal e rápida.
Mesmo sendo a mais visível em função do serviço que presta,
a legendagem é apenas uma das muitas atividades às quais se rendem as
comunidades de fãs. Existe também, por exemplo, o comentário ao vivo dos
episódios da série: por causa do seu final em forma de espetáculo teatral
sanguinolento, o episódio 9 da terceira temporada de Game of Thrones,
transmitido no dia 2 de junho de 2013, foi o mais comentado da história do
Twitter, por meio da hashtag (palavra-chave temática) “#redwedding” (“bodas
vermelhas”). Além disso, os espectadores criam numerosos sites pessoais, na
plataforma Tumblr, para partilhar seus gif5 da série e discutem teorias e
intrigas nos fóruns oficiais (no site do canal produtor) ou não oficiais.
Outros sites repertoriam milhares de fanfictions, textos que
retomam o universo e os personagens de um filme ou uma série para imaginar
novos desenvolvimentos. Encontramos também “Wikis” que reúnem todas as
informações sobre uma série, assim como suas extensões narrativas,6 sob a forma
de artigos escritos, compartilhados e comentados. As mais famosas são
LostPedia, consagrada à série Lost (2004-2010), que totaliza mais de 7 mil
artigos, e a de Battlestar Galactica, que reúne todas as suas extensões. Enfim,
os fãs se transformam por vezes em militantes: os fanáticos por Harry Potter,
por exemplo, criaram a Alliance Harry Potter, na qual defendem causas
diversas.7
Enquanto em outros tempos as práticas de criação e
compartilhamento se limitavam aos fanzines e aos clubes, a internet trouxe uma
amplitude e um alcance novos, a ponto de fazer alguns fãs passar para o outro
lado. Assim, o romance erótico de sucesso de E. L. James, Fifty shades of grey
(Cinquenta tons de cinza), era inicialmente uma fanfiction inspirada na saga
Twilight [Crepúsculo]. E Elio Garcia, fã de Game of Thrones que vive na Suécia,
se tornou tão bom especialista no assunto que foi contratado para aconselhar as
empresas que fabricam produtos derivados. Até mesmo o autor da saga, George R.
R. Martin, recorre a ele: “Eu trabalho na escrita de um trecho e envio uma
mensagem a ele para perguntar: ‘Já falei disso antes?’. E ele me responde
imediatamente: “Sim, na página 17 do quarto volume”.8
Mélanie Bourdaa e Mona Chollet
São mestre de conferências em Estudos Cinematográficos da
Universidade de Bordeaux ; e jornalista
do Le Monde Diplomatique (França)
Ilustração: Adão Iturrusgarai
1 Ler Thibault
Henneton, “Rouge feu, noir d’encre” [Vermelho fogo, preto de tinta], Le Monde
Diplomatique, set. 2013.
2 Grégoire Fleurot,
“HBO fier que ‘Game of Thrones’ soit aussi piraté” [HBO se orgulha que Game of
Thrones seja tão pirateada], Slate.fr, 3 abr. 2013.
3 Ler Bernard Lang,
“Des logiciels libres à la disposition de tous” [Softwares livres à disposição
de todos], Le Monde Diplomatique, jan. 1998.
4 Cf., por exemplo,
As Legendas da Vergonha: .
5 Formato de imagem
animada que permite usos humorísticos.
6 As extensões
narrativas fazem parte do que o universitário Henry Jenkins chamou de
transmedia storytelling (“narrativa transmídia”): o desdobramento de uma
história em diversas plataformas midiáticas, a fim de criar um universo
coerente. Essa estratégia, particularmente desenvolvida acerca das séries
norte-americanas, permite enriquecer a narrativa e fornecer informações
complementares sobre a intriga e os personagens.
7 Ler Henry Jenkins,
“Ces militants qui jouent avec ‘Avatar’” [Esses militantes que brincam com
Avatar], Le Monde Diplomatique, set. 2010.
8 Laura Miller, “Just write it! A fantasy author and his
impatient fans” [Apenas escreva! O autor de fantasia e seus fãs impacientes],
The New Yorker, 11 abr. 2011.
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