Jacques Gruman - Carta Maior
Tutto nel mondo è burla (da ópera Falstaff,
de Verdi)
Paixão gruda feito asfalto
quente. Quem experimentou, sabe como é difícil largar uma. Passa o tempo e
estilhaços grudados, persistentes, teimam em marcar presença. Como disse o
Mário Quintana: Eu, agora – que desfecho !/Já nem penso mais em ti .../Mas será
que nunca deixo/De lembrar que te esqueci ? Boleiros sabem do que estou
falando. Apesar da mercantilização do futebol, é praticamente impossível
ignorar o clube ao qual nos ligamos na infância. A razão mostra um mundo de
cifrões e lógica empresarial, camisa transformada em adereço de aluguel. A
fibra cardíaca, no entanto, é cega e onírica. Prefere evocar tempos que já
passaram. O Menino ia ao Maracanã sem medo, não precisava olhar para os lados,
temer arrastões. Via Almir Pernambuquinho enfiar a cara na lama para marcar um
gol (https://www.youtube.com/watch?v=rDSPizjECuQ), Carlos Alberto esquecer uma
contusão grave na perna e dar um drible da vaca no adversário. A camisa tinha
peso e criava vínculo com a torcida. Alguém apostaria hoje na renovação desta relação
afetiva, que transbordava para a seleção brasileira?
Piso em terreno minado. Falar de
Copa do Mundo, por incrível que pareça, já saturou meio mundo. Já houve época
em que os preparativos da seleção para uma Copa eram acompanhados de perto pela
torcida. Os jogadores se concentravam numa estação de águas em Minas ou em
alguma cidade da região serrana do Rio. Vinham todos de clubes brasileiros, o
que, se por um lado acirrava bairrismos, por outro davam uma cara familiar ao
selecionado. Era comum baterem papo com torcedores, sem pressa ou receio. Vejam
as fotos de então. Todos pareciam descontraídos, sem o peso de contratos
leoninos por baixo do uniforme. Agora, olhem para a Granja Comary. Parece um
bunker com requintados recursos tecnológicos. O esquema de segurança conta com
homens do Exército (!), Polícia Federal, Abin (!) e Polícia Militar, além de
seguranças privados contratados pela CBF. São cem ao todo, apenas um pouco
menos do que o efetivo da UPP do morro Dona Marta, em Botafogo, que tem 60 mil
moradores. Barreiras isolam a granja e tudo que esteja num perímetro de 500
metros da porta de entrada estará sujeito a revista. Nenhum torcedor poderá se
aproximar das nossas celebridades, quero dizer, dos milionários jogadores, que
casualmente falam português. É um mistério, que a paixão explica mas não
justifica, ainda haver gente que se sinta representada por esse exército
blindado contra o povo.
As ruas estão carecas, sem
enfeites. Faltando pouco mais de uma semana para o torneio, material ligado à
Copa encalha nas lojas, pouquíssima gente discute escalações, há um clima de
apatia no ar. Em Teresópolis, uma réplica da Taça Fifa (será que vou ser
processado por quebra de copyright ?) foi queimada. Tudo parece organizado em
outra esfera planetária. A Fifa é a grande beneficiária da farra. Envolvida em
grandes escândalos de corrupção, garante lucros milionários para seus poderosos
patrocinadores. Transformou a Copa no Brasil no que um estudioso classificou
como evento essencialmente corporativo. Nossas autoridades, pateticamente,
gritam que esta será a Copa das Copas (sic), sem indicar o que isso significa.
A qual padrão se referem ? Será ao inchaço do número de sedes, que nos legará
uma coleção dispendiosa de elefantes brancos ? Será à melhoria dos serviços
urbanos, prometida e jamais cumprida ? Lembrai-vos dos Jogos Panamericanos de
2007, que deixou ruínas e instalações abandonadas. Sem luta popular, nossas
autoridades teriam beijado a bainha da calça de dona Fifa e destruído, no Rio,
o Museu do Índio, o Parque Aquático Júlio de Lamare e uma escola municipal,
para construir .... um estacionamento!
A decisão de construir um estádio
municipal no Rio para a Copa de 1950 não foi um édito imperial. Passou por um
amplo debate na imprensa, com destaque para o Jornal dos Sports e o jornalista
Mário Filho, e na Câmara dos Vereadores. A ideia, que se materializou em
seguida, era facilitar o acesso da massa ao futebol, que crescia em
popularidade. Durante décadas, ir ao Maraca não foi privilégio das elites. Até
o Menino, filho da classe média baixa, podia sentar numa arquibancada sem
sangrar o orçamento da família. Depois de duas reformas saudadas por grandes
empreiteiras, em 2007 e agora, o velho estádio teve sua capacidade reduzida em
mais de 60% e os ingressos majorados para valores astronômicos. Falta colocar
um tapete vermelho ao lado da estátua do Belini. Na inauguração do Itaquerão,
em São Paulo, os ingressos populares (sic) custaram R$ 50. A conta é simples:
um pai e um filho assistiram a partida Corinthians e Figueirense pela mixaria
de uns R$ 120 (considerando transporte e um mate per capita). Clássicos do
campeonato nacional têm tido público ridículo. Talvez este seja um dos grandes
legados da Copa: elitização de um esporte que, no Brasil, sempre teve cara de
povão.
O oportunismo político-eleitoral
quer mascarar um dos maiores descalabros da Copa das Copas: a construção de
estádios em cidades sem qualquer tradição futebolística. O exemplo mais
constrangedor é Manaus. Merece o rótulo de “babaquice”, que Lula usou em outras
circunstâncias (para ridicularizar o desejo de mais conforto no transporte
metroviário). A Arena da Amazônia tem mais de 40 mil lugares. O campeonato
amazonense tem média de público inferior a mil torcedores. Juntando todas as
partidas do campeonato de 2013, mal se ultrapassou a capacidade da tal Arena.
Um monumento indecente ao desperdício. O custo de manutenção do estádio
equivale ao do Engenhão, no Rio. Isso num estado pobre, assolado por carências
de todo tipo. O ministro Aldo Rebelo publicou documento consternador,
“justificando” a construção da Arena como meio para dar mais visibilidade à
Amazônia e suas peculiaridades, entre elas a gastronomia. O oficialismo cobra
seu preço em déficit neuronal.
A cereja deste bolo indigesto foi
a exumação de Nelson Rodrigues para enfunar as velas do barco patrioteiro. Com
forte aroma de Brasil Grande e uniforme verde-oliva, o cronista que deu um
banho de loja no ditador Médici e na ditadura, que, entre outros crimes,
massacrou militantes e dirigentes do PCdoB no Araguaia e no bairro paulista da
Lapa, retorna como chefe de torcida. O dramaturgo que inovou o teatro
brasileiro tinha gosto especial pelas hipérboles e por frases de efeito. Faço
um pequeno apanhado de algumas delas, autoexplicativas:
“Foi a vitória do homem
brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo” (sobre a conquista do bicampeonato
mundial, no Chile; O Globo, 18/6/1962).
“O craque brasileiro é muito mais
doce, mais educado, mais cavalheiresco do que o europeu” (18/10/1967)
“Eu acho que, até 2000, o Brasil
será o que são hoje os Estados Unidos e a Rússia” (O Globo, 31/5/1975)
“Sou um dos poucos cronistas que
aceitam a patriotada com a maior satisfação” (O Globo, 23/7/1977)
“Não há ninguém mais bobo do que
um esquerdista sincero. Ele não sabe nada. Apenas aceita o que meia dúzia de
imbecis lhe dão para dizer” (s/d)
É neste clima pré-histérico e
amnésico que os de cima querem que entremos. Que nos transformemos, à moda do
Nelson, em lorpas e pascácios. Sei muito bem que algumas vitórias da seleção e
o vértice da bipolaridade vai p’ra cima. Se for campeã, virão os engenheiros de
obras prontas, apontarão o dedo e gritarão: Xô pessimistas ! Nós é que
estávamos certos. Esta é uma das grandes tragédias nacionais: a memória curta.
O que comentei independe do que vai acontecer durante a Copa. Em nome de um
nacionalismo maroto e em grande parte sem sentido, somos catequizados para
participar de um ritual liderado por ratazanas gulosas e esvaziado. Melhor
dizendo: que só a paixão consegue manter em pé. Quanto tempo durará ?
Créditos da foto: Oswaldo Corneti
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