Esse papel que já foi do PT,
resvalou em Morales, persegue Correa, agora pertence ao Syriza. 'Populistas',
diz a direita; 'medrosos', assacam à esquerda...
por: Saul Leblon / www.cartacapital.com.br
O acordo assinado entre a Grécia
e a comissão do euro influenciará a luta pelo desenvolvimento em nosso tempo,
inclusive no Brasil.
Assim deve ser analisado.
Não como um ponto fora da curva,
mas como a expressão da tirania financeira levada às últimas consequências
contra um povo em busca de sua redenção.
Sua singularidade não consiste em
escancarar o antagonismo sabido entre o poder do dinheiro e a democracia.
O que a tragédia evidencia é o
desembaraço devastador de um poder de
coação ilimitado. Exercido com a virulência das tropas de ocupação. Sem
qualquer pejo, escrúpulo ou restrição.
A quantidade muda a qualidade e
enseja lições à luta pelo desenvolvimento sob a suoremacia das finanças
desreguladas no século XXI.
As condicionalidades do socorro,
da ordem de 60 a 80 bilhões de euros, incluem desde minúcias desconcertantes,
como abrir o comércio aos domingos, à redução da economia grega a um protetorado
da troika.
Subtraiu-se de Atenas, inclusive, a soberania na gestão das receitas a serem
obtidas com as privatizações compulsórias, outra exigência do ‘ajuste’.
O radicalismo germânico gostaria
que esses recursos fossem diretamente geridos por uma estatal ‘neutra’, quer dizer, alemã. Não será assim,
mas os credores terão a última palavra na movimentação dos recursos, reduzindo
o poder de Estado grego a um colegiado propositivo.
Conservadores de diferentes
matizes em distintas latitudes, inclusive anfíbios da esquerda brasileira ,
saborearam o massacre de forma desabrida ou velada.
Não poucos evocarão o suplício
grego como uma advertência ao governo e ao PT: é impossível violar a rendição aos mercados financeiros.
Essa, a leitura capciosa da
tragédia.
Os que sibilam a suposta fatalidade
são os mesmos que desdenham dos
avanços na construção do aparato institucional dos Brics, cujo banco de
desenvolvimento começa a funcionar este ano como a primeira dissidência séria ao ferramental do FMI
e assemelhados.
Nada disso importa.
Diante do suplício da nação em
carne viva, adicionalmente açoitada no pelourinho dos mercados globais, o
jogral dos abutres grasna à moda
Thatcher: ‘there is no alternative’.
Possivelmente tenha sido esse um dos
principais objetivos do massacre do último domingo.
Ou seja, renovar a resignação
diante da falta de alternativas aos intermináveis programas de ajuste, causa e
consequência, eles mesmos, de novos desequilíbrios paralisantes.
Não por acaso, o sugestivo título do editorial de O Globo desta 4ª feira
é: ‘Grécia serve de alerta aos
opositores do ajuste fiscal’.
A circularidade do ardil é
eficiente.
A rosca sem fim consiste em
aspergir recessão nos déficits fiscais, impondo cortes sucessivos, crescentes,
em condições cada vez mais adversas e impossíveis de serem cumpridas na
vida dos povos e nações.
A dízima periódica levou a Grécia
ao ponto em que chegamos.
O país perdeu 1/5 de tudo em seis
anos de políticas de arrocho; a atrofia do PIB foi além , recuou 25%.
Saldo: a dívida hoje é superior a
170% do PIB –não por qualquer salto nos gastos , mas pela retração imposta ao
numerador.
O corolário dessa espiral
descendente é a execração dos hereges que inicialmente fustigaram o arrocho com
a democracia para depois se tornarem vítimas dele.
Esse papel que já foi do PT,
resvalou em Morales, persegue Correa, agora
pertence ao Syriza.
‘Populistas’, diz a direita;
‘medrosos’, assacam à esquerda...
As duas críticas guardam pontos
de contato com a longa sucessão dos protagonistas da esperança. Estes que de
forma recorrente ascendem na vida das nações, sendo em seguida mastigados junto
com promessas e compromissos entre os dentes da tríade inconciliável:
democracia social- tirania financeira-governabilidade .
Mutatis mutandis somos todos
gregos.
O que pode haver de mais parecido
com a troika do que as chantagens e concessões impostas pela coalizão
conservadora ao governo Dilma? Obrigado, a exemplo do Syriza, a engolir compromissos
populares em troca da indulgência (ilusória) dos mercados locais e globais, seu
mandato perambula à beira do sumidouro diante do qual se equilibra sua
legitimidade.
Como reagir aos que cavalgarão
essa tragédia acenando como alternativa o estandarte da rendição incondicional?
Essa é a reflexão urgente,
incontornável, atualíssima que o episódio grego impõe.
Em primeiro lugar, não se trata
de medo ou coragem pessoal; de plano B ou Y , se isso significar apenas
depositar tinta em papel.
Nunca é demais insistir, aos que
se se rendem à prostração e aos que a
justificam como fatalidade.
Existe uma correlação de forças
internacional adversa.
Ela explica que um punhado de burocratas representantes
do mercado financeiro mundial possa submeter um jovem líder progressista
como Tsipras ao garrote vil em praça
pública.
E girar a rosca do anel
no seu pescoço durante meses.
Até ele babar clemência e
submissão.
Tudo isso à luz dos holofotes
globais; sem que nenhum contrapoder equivalente interfera para socorre-lo
ou fustigar seus algozes.
Ressente-se a cena recorrente de
um contrapoder não apenas financeiro, a exemplo das instituições internacionais
em fraldas, a engatinhar no interior dos Brics, por exemplo.
Mas também de uma aliança internacional militante.
Utopia?
O Fórum Social Mundial já mostrou o quanto isso é exequível e capaz de levar o calor do
inferno emitido pelos algozes, diretamente ao seu habitat.
Tsipras e o Syriza foram
garroteados até dobrarem os joelhos sem que uma praça do mundo gritasse, exceto
Syntagma, em Atenas. A ressoar só a exultação das bolsas e mercados de câmbio
urbi et orbi, sôfregos a galgar picos de lucratividade diante do novo
deslizamento da esquerda mundial.
Não há como esquivar a inquietação
de uma segunda e mais dura reflexão e de
seus desdobramentos.
O Syriza, a exemplo de muitos nas
fileiras progressistas –Carta Maior se
inclui nessa autocrítica-- supôs que um escrutínio plebiscitário vitorioso,
como o do ‘Não’ ao arrocho, no domingo, obrigaria o poder financeiro global a
negociar e a mitigar seu devastador programa de escalpo e sangria.
Deu-se o oposto.
Teria sido um erro apostar no
plebiscito, como afirmam os cirurgiões da rendição sem anestesia?
Não. Chávez, para citar um
precedente histórico próximo, defendeu e fortaleceu o poder de barganha interno
e externo de seu governo e o da Venezuela dessa forma.
Com uma diferença substantiva.
Havia sob seu abrigo um poder de
Estado determinado a honrar o veredito das urnas. Preparado para isso, para ser
mais exato --sem o que, o aluvião plebiscitário se reduz a espuma ornamental.
Algozes sabem distingui-la da
determinação organizada, capaz de transformar proclamações em correlação de
força política.
A referência serve ao Brasil dos dias que correm.
Os manifestos antigolpistas, as evocações à retomada do desenvolvimento
cumpriram seu papel de sirene.
Chegou a hora da práxis. E não
apenas plebiscitária ou resumida à agenda distante e imponderável de 2018.
É forçoso dar às palavras o seu
peso material na história. Passa da hora. O garrote não vai afrouxar, exceto
pela ação organizada.
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