Membro da comissão que auditou
parte da dívida pública grega, Maria Lúcia Fattorelli questiona: é 'rídiculo'
culpar Atenas pela crise europeia
Vanessa Martina Silva - Opera
Mundi / www.cartamaior.com.br
A pressão realizada pelos
credores europeus para que a Grécia aceitasse o acordo para um resgate
financeiro foi, na verdade, uma tentativa de impedir que se conheçam as origens
“ilegais e ilegítimas” da dívida, uma vez que isso provocaria “uma revolução no
sistema financeiro mundial”. É o que defende Maria Lucia Fattorelli, auditora
aposentada da Receita Federal, que fez parte, no início do ano, das primeiras
atividades da comissão internacional que realizou a auditoria da dívida grega,
a convite da presidente do Parlamento grego, Zoe Konstantopoulou.
As conclusões iniciais a que o
levantamento, do qual Fattorelli fez parte nas primeiras sete semanas de
investigação, revelam que “os mecanismos inseridos nesses acordos [de resgate
do país] eram para beneficiar os bancos e não a Grécia. (…) A questão é: por
que eles [troika] têm que jogar tão pesado?”. Ela responde: “Porque a Grécia
pode revelar o que está por trás. A tragédia da Grécia esconde o segredo dos
bancos privados. Ela poderia colocar a nu as estratégias utilizadas para salvar
bancos e colocar em risco toda a zona do euro, toda a Europa”, aponta a também
fundadora do movimento “Auditoria Cidadã da Dívida” no Brasil.
Fattorelli explica que no mesmo
dia em que foi criado, em 2010, o plano de suporte à Grécia, a Comissão
Europeia criou uma empresa privada em Luxemburgo e os países europeus se
tornaram sócios da mesma, colocando garantias na ordem de 440 bilhões de euros,
e que um ano depois chegaram à soma de 800 bilhões. A empresa, explica
Fattorelli, serviu para “fazer o repasse de papéis podres dos bancos para os
países, utilizando o sistema da dívida”. Paralelamente, também no mesmo dia, o
Banco Central Europeu anuncia um programa de compra de papéis no mercado para
ajudar bancos privados: “Isso é um escândalo. É ilegal, mas é colocado como se
isso tivesse sido feito para salvar a Grécia”, aponta a economista.
“Eles poderiam vir a público
denunciando o que já foi descoberto, as irregularidades que já foram apuradas.
Todos nós gostaríamos que a Grécia reagisse agora diante dessa camisa de força
do euro, desse poder dado ao Banco Central Europeu, das instituições acima dos países e toda essa
situação financeira de dependência”, comenta a auditora, fazendo referência ao
fato de que o sistema do euro impede que os países-membros exerçam uma política
monetária independente.
Questionada sobre a possibilidade
de os termos do acordo com a Grécia serem uma “punição política” ao premiê
grego e também um recado aos demais países em dificuldades na Europa - como
Portugal, Irlanda, Itália e Espanha -, Fattorelli observa que essa é a
estratégia que vem sendo adotada desde 2010. "A Grécia foi colocada sob os
holofotes da grande mídia no mundo inteiro como se fosse a responsável pela
crise Europeia. Isso é ridículo, porque quando você olha o tamanho da economia
grega, em comparação com a europeia, o PIB da Grécia é em torno de 3% do
europeu. Então, como 3% pode abalar 97%? Isso é uma criação e é absurdo que
ninguém questione isso”, afirma.
Reestruturação da dívida
Apontada por Tsipras como uma
vitória nas negociações com os credores, a reestruturação da dívida é, na
opinião da auditora, contra indicada caso não tenha sido concluída a auditoria
da dívida.
Fattorelli explica que se for
feita neste momento, o país “vai reestruturar grande parte de uma dívida que
deveria ser anulada. Antes de reestruturar, deveria ser concluída a auditoria
para que se analise o que realmente deve ser reestruturado. Agora, como está,
vão empacotar tudo junto: a parte ilegal e a ilegítima”, esclarece.
Entre a dívida ilegal, ela aponta
os quase 50 bilhões de euros usados para salvar os bancos nos últimos anos.
“Isso não é dívida pública, isso é outra coisa. Deveria ser considerado um
empréstimo aos bancos privados, não uma dívida pública do país”, destaca.
Perda da soberania
Após a assinatura do acordo por
Tsipras, analistas e mesmo setores da esquerda grega avaliaram que a adoção das
medidas caracteriza uma perda da soberania do país. Fattorelli discorda. Para
ela, Atenas perdeu a soberania já em maio de 2010, quando foi assinado o
primeiro pacote de resgate e a troika [conjunto de credores gregos formado por
FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia] "passou a mandar lá".
"Inclusive, a lei vigente
sobre esses acordos é a lei inglesa, não é a grega. Além disso, se a Grécia
tiver que ir a algum tribunal, ficará submetida ou ao tribunal de Luxemburgo ou
ao de Londres”, acrescenta Fattorelli, que considera essa situação jurídica
"um abuso".
Ela avalia, no entanto, que a
oportunidade que os gregos tinham agora de retomar as rédeas sobre os rumos do
país foi perdida. “O país está à venda desde que foram criados o fundo de
estabilização para salvar os bancos e o fundo de privatização. Ambos
determinados pelo FMI em 2010”.
‘Sistema é inviável’
A crise grega abre a
possibilidade de que se discuta a fundo a questão do sistema da dívida, defende
Fattorelli. No país helênico, os "bancos privados criaram derivativos em
cima de derivativos. Papéis podres que estavam inundando seus balanços. Ou
seja, eles estavam quebrados, mas foram considerados grandes demais para
quebrar e continuaram com seus patrimônios intocáveis”. Contudo, quem está
assumindo esse ônus são os países, “e é um ônus que não tem fim”, aponta.
“O último dado conhecido do
volume de derivativos tóxicos divulgado pelo BIS (Banco Central dos Bancos
Centrais), em 2011, informava que o montante chegava a 11 PIBs mundiais. Então
eu questiono: esse salvamento vai resolver alguma coisa? Não! Será somente o
adiamento até uma nova crise. E aí o que vai ser feito depois?”, indaga.
Na verdade, esse sistema “além de
não ter lógica está comprometendo o emprego real, está comprometendo a
indústria, o comércio. Ou seja, toda a economia real está comprometida, assim
como a vida das pessoas”. Ela ressalta, no entanto, que isso não ocorre só na
Grécia: “olha no Brasil, o que está acontecendo [com o ajuste fiscal levado a
cabo pelo ministro da Fazenda, Joaquim Levy]. É o mesmo esquema, o mesmo
sistema da dívida atuando”.
Argentina e Equador
Para um melhor entendimento da
crise grega, Fattorelli a comparou à que foi vivenciada pela Argentina em 2000:
“depois de cumprir todas as privatizações que o FMI queria, o fundo deu as
costas ao país e deixou espaço aberto para os bancos privados oferecerem o
acordo. Eles colocaram juros equivalentes ao crescimento do PIB e como
consequência, hoje a dívida argentina já é um problema novamente e não
significou nenhum benefício aquilo [o receituário do FMI]. Além disso, o país
também não fez a auditoria”.
Em 2008, o presidente
equatoriano, Rafael Correa, anunciou que não pagaria parte da dívida externa do
país, após a realização de uma auditoria, da qual Fattorelli participou. A
diferença do pequeno país sul-americano para a Grécia, Argentina ou mesmo o Brasil
é explicada pela economista: “Correa conseguiu enfrentar o sistema porque, como
o Syriza, chegou ao poder sem financiamento privado, não chegou lá atrelado aos
interesses dos financiadores. Se olharmos no site do TSE [Tribunal Superior
Eleitoral] do Brasil, quem financiou as campanha presidenciais e legislativas
foram os bancos privados e as grandes corporações”, aponta.
Ela conta também que o processo
completo no Equador durou um ano e quatro meses. Além disso, o relatório foi
submetido a um crivo jurídico nacional e internacional para garantir sua
legitimidade.
Outro ponto é que o Equador, que
diminuiu em 70% o valor devido aos credores, tinha, segundo Fattorelli,
dinheiro para recomprar a dívida: "Fez a proposta e honrou".
“O problema da Argentina [de
2000] é que não fez auditoria, chegou ao fundo do poço e quebrou. Já a Grécia,
quando o Syriza chegou ao poder, já estava quebrada e dentro da camisa de força
da estrutura da zona do euro, em que não tem moeda própria. Nesse aspecto, a
situação grega é até pior do que a Argentina, que tinha moeda própria”,
acrescenta.
Solução possível
Apesar das conclusões de
Fattorelli, ela não considera que o acordo feito por Tsipras era o único
possível: “Eles poderiam criar uma moeda paralela temporária — solução apontada
por economistas famosos, inclusive — até resolver a situação. Se adotassem
isso, fariam um bem a toda a humanidade. Mas prosseguir com este modelo suicida
não tem futuro”.
Créditos da foto: Nilson Bastian
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