Eleonora
de Lucena, via Folha online / http://limpinhoecheiroso.com/
A
Operação Lava-Jato está expondo o coração do capitalismo brasileiro, que é
inteiramente corrupto. Ela fere interesses empresariais e políticos que usam o
Estado em seu benefício. Quem defende o impeachment hoje quer que essa limpeza
acabe. Por isso, o impeachment serve aos corruptores e corruptos.
A
visão é do sociólogo Adalberto Cardoso, 53 anos, diretor do Instituto de
Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Para
ele, é ingenuidade não identificar interesses externos na crise política.
“O
impeachment interessa às forças que querem mudanças na Petrobras: grandes
companhias de petróleo, agentes nacionais que têm a ganhar com a saída da
Petrobras da exploração de petróleo”, diz.
Doutor
pela USP, Cardoso afirma que o projeto sobre terceirização leva as relações de
trabalho para o século 19. Na sua análise, as mobilizações da semana passada
mudaram a qualidade do debate sobre o tema, e votar a favor da mudança na CLT é
suicídio político.
Autor
de dez livros – dentre eles A construção da sociedade do trabalho no
Brasil(FGV, 2010) e Ensaios de sociologia do mercado de trabalho brasileiro
(FGV, 2013) –, ele avalia que o projeto sofrerá mudanças. A seguir, trechos da
entrevista concedida por telefone desde o Rio.
Como o senhor
avalia os desdobramentos da crise política após a prisão do tesoureiro do PT?
O
combate à corrupção é necessário. A corrupção é uma prática empresarial antiga
no Brasil, basta lembrar dos usineiros. O que vivemos hoje é parte de um
processo de limpeza e, espero, de correção dessa herança histórica de conluio
entre o público e o privado. As elites e vários agentes sociais não sabem
separar o púbico e o privado. O Estado sempre funcionou a serviço das elites
econômicas. Quando há um amplo combate à corrupção, o potencial de crise é
muito grande. O que a Lava-Jato está expondo é a forma como o capitalismo se
organiza no Brasil. O capitalismo no Brasil é constituído de forças com
capacidade de corromper os poderes públicos para que a sua atividade possa
caminhar sem problemas. Há uma burocracia infernal, os custos operacionais são
grandes. A cada passo a empresa tromba com uma agência estatal. Aí corrompe
essa agência para que sua atividade possa continuar. É a maneira mais fácil e
rápida. Existe uma simbiose muito grande entre agências estatais e grandes
corporações e grupos econômicos, que usam o Estado como agente seu.
A
Lava-Jato está mexendo com profundos interesses empresariais e políticos.
Aqueles que estão clamando pelo impeachment estão querendo impedir que essa
limpeza continue. O impeachment hoje serve aos corruptores e aos corruptos. A
história recente mostra que há um certo viés na ação anticorrupção,
principalmente no Paraná. Só petista ou próximo ao PT vai para cadeia. Há uma
profunda revisão do que é o nosso capitalismo e o agente desse processo é o
governo. Nenhum outro governo jamais fez isso. Está agindo sobre o coração do
capitalismo brasileiro, que é inteiramente corrupto. É essa imbricação entre o
público e o privado que está sendo desvendada hoje. Infelizmente, pelo viés
antigovernista dos agentes da PF, não se investigou nada da época do FHC. Por
um viés da radicalização política, está se colocando na cadeia membros do PT.
Esse processo vai ter um impacto de longo prazo no partido.
Como o senhor analisa
as posições que apontam interesses externos nesse ambiente, especialmente em
relação à Petrobras e ao pré-sal?
Seria
ingenuidade imaginar que não há interesses internacionais envolvidos nessa
questão. Trata-se da segunda maior jazida do planeta. Existem interesses
geopolíticos de norte-americanos, russos, venezuelanos, árabes. Só haveria
mudança na Petrobras se houvesse nova eleição e o PSDB ganhasse de novo. Nesse
caso, se acabaria o monopólio de exploração, as regras mudariam. O impeachment
interessa às forças que querem mudanças na Petrobras: grandes companhias de
petróleo, agentes nacionais que têm a ganhar com a saída da Petrobras da
exploração de petróleo. Parte desses agentes quer tirar Dilma. Esse tema vai
voltar como o mais importante da eleição de 2018.
Há uma ação
coordenada vinda de fora?
Não
acho. Não acredito em teorias internacionais da conspiração. Mas não há dúvida
que há financiadores desses movimentos de direita que chamam as pessoas para
rua. As faixas têm a mesma tinta, mesmos dizeres, as camisetas são iguais, os
enfeites. Alguém está bancando. Interessa a determinadas forças internacionais
a desestabilização política do Brasil. O petróleo é um ativo num ambiente
altamente explosivo, um recurso importante de poder. O Brasil está se tornando
independente em petróleo. Daqui a pouco, será exportador. É obvio que os EUA
estão olhando para isso. Não tem como não estar.
Como o senhor
analisa a ação do Congresso?
Eduardo
Cunha está agindo como manda Maquiavel: fazendo maldades de uma vez. Em parte
porque não sabe se há sustentabilidade para essa agenda que resolveu abrir:
redução da maioridade penal, terceirização, armas.
Mas os protestos
na semana passada contra o projeto de terceirização não provocaram um recuo,
com o adiamento da votação?
Eduardo
Cunha percebeu que cometeu um erro no caso da terceirização. Uma coisa é tirar
da gaveta temas conservadores da agenda dos costumes – proibição do aborto,
redução da maioridade penal. É diferente de mexer em direito das pessoas,
principalmente no direito do trabalho. A CLT, que tem 72 anos, faz parte do que
o Brasil é. Foi uma conquista dos trabalhadores, fruto de lutas, greves ao
longo de décadas. Os trabalhadores nascem sabendo que terão direito. Cunha
tocou num ponto muito sensível de uma maneira muito atabalhoada e gerou a
reação que gerou.
Por
que houve recuo no amplo apoio recuo ao projeto?
É
um suicídio político para qualquer partido [apoiar o projeto]. No caso do PMDB
é mais grave porque ele foi o patrono da Constituição de 1988. O projeto da
terceirização é um tiro no peito da Constituição de 88, pois destrói direitos
sociais e do trabalho no Brasil. O custo para os partidos será muito alto se
isso passar e isso foi percebido. Paulo Pereira da Silva deu um tiro na cabeça
com esse projeto.
Com
as manifestações da última quarta o projeto tem menos chance de passar?
Não
tenho dúvida. Houve uma mudança na qualidade do debate. A sociedade reagiu ao
projeto. A CUT, os sindicatos e partidos conseguiram botar mais gente na rua no
que nos protestos de 12 de março. Os políticos que não levarem isso em
consideração estão dando um tiro no pé.
Essa
mobilização pode virar o jogo e galvanizar a esquerda?
No
parlamento, essa é uma possibilidade real. Não sei se uma reentrada no debate
das posições de esquerda. Existe a possibilidade de pacificação no parlamento,
principalmente na Câmara. O presidente do Senado disse que a lei como está não
passa na casa. O PMDB não é só o que se diz na mídia. É um partido de alguma
maneira comprometido com as causas sociais. Ele, em parte, herdou a história da
luta contra a ditadura e da construção da democracia. Ainda que dois de seus
líderes estejam sob investigação judicial, não quer dizer que o partido tenha
abdicado inteiramente da sua história de apoio às lutas sociais. Abrir mão
disso é um risco muito alto para esse partido também. Outros movimentos por
parte de Dilma, como chamar Michel Temer e flexibilizar o ajuste fiscal, podem
ajudar na pacificação. Não vai pacificar Cunha, que tem uma agenda conservadora
do lado dos costumes e vai continuar tentando implementá-la.
O
projeto da terceirização vai fracassar?
Metade
da Câmara é composta por empresários, que apoiam o projeto e têm muito a ganhar
com ele, sem exceção. Ele precariza as relações de trabalho e gera redução de
custos. Vai haver uma pressão muito grande por parte do lobby empresarial e
financeiro. Mas haverá também povo na rua fazendo barulho. Político preocupado
com sua sobrevivência ouve a rua. Político preocupado com sua reeleição ouve
quem paga a campanha. Isso vai criar uma tensão séria no Congresso. Suspeito
que vai haver uma amenização do projeto, mas não acho que a questão da
terceirização foi para o brejo. Foi para o brejo tal como está. A
regulamentação da contratação de terceiros vai passar com algum outro formato.
Esse formato do atual projeto leva as relações de trabalho no Brasil para o
século 19, um momento na história do mundo ocidental que não havia proteção
para o trabalhador.
A
presidente deveria ter anunciado que vetará o projeto?
Ela
já deveria ter feito isso.
Por
que não o fez? Faz pare da guinada da presidente?
Não
chamaria de guinada. Muitos se esquecem das maquiagens feitas nos anos
anteriores. A contabilidade criativa foi aceita pelos agentes econômicos porque
eles estavam ganhando com isso. O governo estava emprestando muito dinheiro via
BNDES, injetando muitos recursos na economia para ver se estimulava o
investimento. Desonerou a folha de pagamento e deu subsídio a empresas. O
governo perdeu R$28 bilhões por conta da desoneração da folha. Isso significou
a transferência líquida de R$28 bilhões da mão do Tesouro para as empresas. O
déficit gerado nas contas foi para sustentar a economia e transferir recursos
públicos para o empresariado. Para ver se investiam; nem assim investiram. As
empresas entesouraram o dinheiro, aplicaram no mercado financeiro e ficaram
esperando para ver se ela iria perder a eleição. O que o Joaquim Levy fez foi
acabar com a maquiagem das contas públicas. O ajuste era inevitável.
A
presidente não fala sobre terceirização para não se indispor com o
empresariado?
Não
acho. Ela sabe que, em alguns setores da economia, o trabalho terceirizado dá
mais eficiência e pode ser necessário. O que é inaceitável – e deveria ser
inaceitável para um governo do PT – é a terceirização das atividades fim. Há um
ponto central. Um artigo no fim do projeto anistia os empresários que hoje
estão em situação ilegal. Ficam anistiados todos que hoje contratam ilegalmente
mão de obra terceirizada, inclusive os que têm trabalho escravo. Se o projeto
for aprovado, no dia seguinte esses contratos vão ser rescindidos sem que os
contratados tenham direito a qualquer tipo de recurso. Isso é um descalabro tão
claro que qualquer um diz que o projeto está querendo destruir o Brasil. Dilma
deve ter claro que o projeto como esta é inaceitável. No meu mundo ideal, não
haveria terceirização. Haveria proteção do trabalhador, e os empresários que
busquem redução de custos em outro lugar. Não naqueles que produzem a riqueza,
que são os trabalhadores.
Como
explicar a queda abrupta na aprovação da presidente?
O
ajuste fiscal é profundo, mas ainda não atingiu o cotidiano das pessoas. O que
atingiu foi a inflação e a queda na popularidade tem mais a ver com isso e com
a construção de um ambiente político que diz que o Brasil acabou. Estrangeiros
que chegam aqui não entendem esse clima de fim de mundo. A população não é
imune a esse tipo de propaganda.
Qual
a responsabilidade no governo nesse quadro?
Existe
uma incapacidade de liderança política do governo, que poderia estar tentando
liderar a construção de uma visão alternativa. Mas hoje, nesse ambiente de fim
de mundo, a possibilidade de fazer isso é muito pequena. Tudo a Dilma diz cai
nesse ambiente e é triturado. A voz dela não é ouvida. Se fala em petralhas,
ladrões, esse é o clima. A mídia tem uma importância brutal e central nisso. O
clima pós-eleitoral ainda não acabou e a oposição ainda não aceitou que perdeu
a eleição.
Como
o senhor analisa o futuro do PT?
Tudo
vai depender do que vai acontecer nos próximos meses. Se a questão do
impeachment evoluir – o que não considero o cenário mais provável – o PT vai
sofrer um revés que levará anos para se refazer. Há um outro cenário de
sangramento contínuo de Dilma, com ela ficando totalmente submissa ao
Congresso, um esvaziamento da presidência. O cenário mais provável é de uma
crise este ano, estabilização em 2016, retomada em 2017 e o Brasil chegar
bombando em 2018, como aconteceu em 2010. Isso com o ajuste produzindo os
efeitos que os economistas dizem que ele vai produzir: mudança da expectativa
dos empresários, retomada de investimentos pelo Estado, mais infraestrutura,
retomada do emprego, de melhoria dos salários, inflação mais controlada. Um
governo mais bem avaliado, com possibilidade de fazer sucessor.
Com
Lula?
A
tentativa hoje é destruir o governo, o PT e o Lula. Destruir essa alternativa
eleitoral. O que está em jogo no país é um processo de desconstrução de uma
alternativa eleitoral de esquerda. Querem destruir o PT como alternativa de
poder no Brasil. O PT paga um preço alto por fazer o que os partidos de
esquerda fazem: distribuição de renda, melhoria de vida para os mais pobres,
redução da desigualdade social. Uma parte do Brasil está reagindo de forma
muito pesada contra isso. São empresários, os que votaram na oposição e não
aceitam o resultado eleitoral, a imprensa.
O
PT não agiu contra si próprio?
O
PT tem culpa nisso. Isso decore dos paradoxos do sucesso de qualquer
organização que chega ao poder central. PT foi efetivo ao dar ao capitalismo
condições mais dignas de funcionamento, proporcionando melhores condições de
vida para as pessoas. O PT nunca foi partido revolucionário.
A
liderança de Lula foi abalada?
Ninguém
está imune ao processo de desconstrução. Mas Lula é o Lula. Hoje ele sofre as
consequências do desassoreamento do projeto político do PT em função da crise
econômica e política. Se cenário da retomada se concretizar, Lula pode voltar a
ser o que era. Ele estará no segundo turno de qualquer eleição e tem muito o
que mostrar. Se for candidato, é um dos mais fortes em 2018. A única
alternativa da oposição é continuar batendo no impeachment.
Qual
sua visão sobre Aécio?
Aécio
voltou com a agenda do impeachment, que parte do PSDB estava abandonando, por
duas razões. Primeiro, porque Eduardo Cunha tomou a dianteira da agenda da
oposição e de direita de maneira muito eficiente nos últimos meses. Em segundo
lugar, porque os que foram às ruas no domingo começaram a chamar Aécio de
“cagão”, porque ele não vinha [às ruas]. A única bandeira que ele tem nesse
debate é a do impeachment. No PSDB já foi dito que eles não podem cometer o
mesmo erro de 2005, quando não levaram adiante o processo. Estão escaldados.
Perderam em 2006 e em 2010. Acharam que o Lula iria sangrar até o final, mas o
Brasil voltou a crescer e o Lula saiu com 80% de aprovação. Isso pode acontecer
de novo. Eles olham para traz e dizem que cometeram um erro. Dizem que Dilma
não é o Lula, que o congresso não vai sustentar Dilma como sustentou Lula e
querem levar até o fim esse negócio. A agenda do impeachment, que o Aécio diz
que não é golpista, nesse caso é. É uma agenda de quem ainda não aceitou o
resultado do processo eleitoral.
Como
o senhor define esse momento historicamente. Há paralelos?
O
momento é único. Comparam com Jango, mas é muito diferente. Lá havia paralisia
decisória no Congresso, com uma presidência muito fraca, e com os militares
sendo a força de oposição mais importante. Hoje não há isso. Não temos
conspiração militar. O clima hoje é de fim de mundo em razão da corrupção. Isso
matou Vargas.
É
um momento de muita incerteza. É único também porque nunca tivemos instituições
democráticas tão sólidas. Temos um Judiciário é autônomo como nunca tivemos, um
parlamento que é representativo do que é o Brasil, que é conservador. Temos uma
crise desse tamanho – com perda da capacidade do PT de liderar o centro
político, com pedidos de impeachment – e ela não está desestabilizando o
sistema político. Pelo contrário, a crise reforça os aspectos virtuosos da
nossa democracia. Isso também é uma novidade. Antes, crises assim levavam a
golpismo militar. Agora se tem golpismo, mas institucional.
Nesse
ambiente contaminado, o PT e a esquerda perderam a capacidade de liderar o
centro. Lula conseguiu fazer isso. Dilma o fez até 2013, quando ela perdeu o
centro, capturado pela direita. Cunha puxou o centro para o seu lado.
Como
chegamos até aqui?
Essa
situação de radicalização decorre, em parte, decorre de um processo mais longo
de desgaste, não só eleitoral, mas da capacidade de condução política do PT.
Começou há mais tempo, mas os movimentos de junho de 2013 são emblemáticos e
mudaram a pauta do Brasil. Até ali, o governo tinha uma aprovação acachapante e
o controle da agenda política. O caldeirão continuou fervendo em 2013 e 2014 e
explodiu na eleição. Os temas continuaram se radicalizando nas redes sociais. O
caminho do meio, de conciliação de políticas contrárias, foi perdido.
Por
quê?
As
mídias sociais permitem um certo tipo de radicalização que na esfera política
não tinha como prosperar no Brasil. As mídias sociais e a imprensa abdicaram da
construção de um caminho do meio, tomaram partido, e isso ajudou no processo de
radicalização. O governo foi se sentindo mais acuado; suas forças de apoio
também radicalizaram suas posições, o que levou a uma campanha eleitoral muito
radicalizada. Não esperava que a agressividade de ambos os lados chegasse ao
nível que chegou, de ameaças à própria democracia. Foi exagerada a forma como a
campanha de Dilma destruiu a Marina. Aécio também fez uma campanha radicalizada
para a direita, porque o centro foi ocupado pela Marina. Chegamos a 1º de
janeiro saídos de uma campanha eleitoral muito sangrenta. O Congresso foi
impondo à Dilma seguidas e grandes derrotas. A primeira foi a eleição de
Eduardo Cunha, um inimigo declarado do PT.
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