A
satisfação que a indústria cultural desperta ao mostrar um mundo onde tudo está
em ordem frustra a própria felicidade que ela ilusioriamente propicia
Ricardo
Musse - Blog da Boitempo / www.cartamaior.com.br
Em
um texto que se tornou clássico, “Résumé über Kulturindustrie” (“A indústria
cultural”, na tradução brasileira), de 1968, Theodor Adorno relembra que,
durante a redação dos esboços de Dialética do esclarecimento, ele e Max
Horkheimer ainda utilizavam a expressão “cultura de massas”. Por ocasião da publicação
do livro (1947), no entanto, optaram pelo termo – ali utilizado pela primeira
vez– “indústria cultural”, “a fim de excluir de antemão a interpretação que
agrada aos advogados da coisa; estes pretendem que se trata de algo como uma
cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, de uma forma
contemporânea de arte popular”.[1]
O
conceito indústria cultural percorre a obra de Adorno desde “Sobre a situação
social da música”,[2] primeiro artigo que publicou na revista do Instituto de Pesquisa
Social em 1932. Desenvolveu-se, no final dos anos 1930, como ele próprio
relata, como uma espécie de “resposta crítica ao trabalho recém-publicado de
Walter Benjamin, “A obra-de-arte na era de sua reprodutibilidade técnica”.[3]
Como forma de mediar, aqui, esta tentativa de esboçar a posição de Adorno sobre
o tema, retomo esse artigo de Benjamin.
“A obra-de-arte na era de sua
reprodutibilidade técnica” propõe-se a estabelecer a um só tempo uma análise e
um prognóstico sobre as tendências evolutivas da arte, nas condições do
capitalismo de então. Mais precisamente, dedica-se tanto a examinar o estatuto
e o significado da prática cinematográfica em sua busca de conquistar um lugar
próprio em meio às outras artes, como também indicar de que modo o aperfeiçoamento
da reprodução técnica afetaria “a totalidade das obras de arte tradicionais,
submetendo-as a transformações profundas”.[4]
Em
sua tese sobre a especificidade fílmica, Benjamim propõe que o cinema só
alcançaria estatuto de arte legítima se incorporasse as técnicas das
vanguardas, pouco importa se construtivistas, dadaístas ou surrealistas. Num
momento em que elas vivenciavam o ocaso, Benjamim entende que só assim, por
meio do cinema, elas ganhariam sobrevida artística (e um público de massas).
Essa
tese, salientada ao longo do texto por meio de uma exaustiva descrição da
convergência e paralelismo entre os procedimentos das vanguardas e as do
cinema, no entanto, pouco, prosperou. O mesmo não se pode dizer sobre as
observações de Benjamin acerca do modo com que a reprodução técnica afeta a
tradição e o sistema artístico.
Suas
meditações sobre o impacto da reprodução técnica nas demais artes inauguram,
por assim dizer, uma nova forma de abordar o significado, os vínculos
sistêmicos e o estatuto da arte no mundo contemporâneo. Nessas reflexões
interessam-me particularmente alguns conceitos construídos ao longo de “A
obra-de-arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, essenciais aos
desdobramentos da questão acerca da indústria cultural.
Segundo
Benjamin, o que se perde na reprodução, aquilo que escapa à reprodutibilidade
é, de antemão, seu selo de autenticidade, “a quintessência de tudo o que foi
transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material
até o seu testemunho histórico”.[5] Nesse descolamento do objeto reproduzido do
domínio da tradição, as técnicas modernas, assentadas na transitoriedade e na
repetição, alteram radicalmente a forma de percepção. Esse conjunto de
alterações foi relatado por Benjamin como destruição da “aura” dos objetos
artísticos, ou melhor, como perda daquela figura singular, composta por meio de
elementos espaciais e temporais precisos, “a aparição única de uma coisa
distante, por mais perto que ela esteja”.[6]
Benjamin extraiu daí a tese de que “no momento em que
o critério da autenticidade deixa de se aplicar à produção artística, toda a
função social da arte se transforma; em vez de fundar-se no ritual, ela passa a
fundar-se em outra práxis: a política”[7] (1985:170-171). Esse resultado foi
retomado quase literalmente por Adorno. Mas, enquanto Benjamin, com os olhos
fixos no que acontecia no continente europeu nos anos 1930, previa uma
polarização entre a “estetização da política”, posta em prática pelo fascismo,
e a “politização” da arte, por ele receitada aos comunistas, Adorno, exilado
nos Estados Unidos concentrava sua atenção em outra figura, mencionada apenas
de passagem por Benjamin: no camundongo Mickey.
A
politização da arte, prevista por Benjamin, desdobrou-se, na avaliação de
Adorno, em outro registro, isto é, como uma forma deliberada de despolitização
da sociedade. No mundo da indústria cultural, as massas não configuram o
elemento ativo, como Benjamin desejava (não sem um ponta de desconfiança), mas
pura passividade. Nas palavras de Adorno:
A
indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus
consumidores. Na medida em que nesse processo a indústria cultural
inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões
de pessoas, às quais ela se dirige, as massas não são então, o fator primeiro,
mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; um acessório da maquinaria.
O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele
não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto. […] As massas não são a
medida, mas a ideologia da indústria cultural.[8]
Não
se trata apenas do fato, já detectado há algum tempo, de que as mercadorias
culturais produzidas nessa situação se orientam segundo as leis de valorização
do capital, não segundo seu “próprio conteúdo e figuração adequada”:
[…]
o que é novo na indústria cultural é o primado imediato e confesso do efeito,
que por sua vez é calculado em seus produtos mais típicos. A autonomia da
obra-de-arte –que, é verdade, quase nunca existiu de forma pura e que sempre
foi marcada por conexões de efeito, vê-se, no limite, abolida pela indústria
cultural. […] As produções do espírito no estilo da indústria cultural não são
mais também mercadorias, mas o são integralmente. Esse deslocamento é tão
grande que suscita fenômenos inteiramente novos. A indústria cultural
transforma-se em publicrelations, procura o cliente para lhe vender um
consentimento total (e nunca crítico). Faz propaganda do mundo existente, assim
como cada produto da indústria cultural traz em si seu próprio marketing.[9]
Cabe
ainda observar que, na perspectiva de Adorno, a indústria cultural não pode ser
justificada nem objetivamente, nem subjetivamente. Uma defesa objetiva dessa
forma de produção cultural não resiste ao confronto com aquilo sob cujo
disfarce se apresenta– a obra-de-arte. Num âmbito mais geral, pode-se mesmo
dizer que a indústria cultural deturpa o próprio conceito de cultura:
[…]
tudo que em geral e sem mais se poderia chamar de cultura, queria, enquanto
expressão do sofrimento e da contradição, fixar a ideia de uma vida verdadeira,
mas não queria representar como sendo a vida verdadeira a simples existência e
as categorias convencionais e superadas da ordem, com as quais a indústria
cultural veste a vida verdadeira, como se essas categorias fossem sua
medida.[10]
Subjetivamente,
a indústria cultural tampouco se sustenta, uma vez que o consentimento que ela
alardeia reforça nos indivíduos apenas a autoridade e o conformismo:
A
satisfação compensatória que a indústria cultural oferece às pessoas ao
despertar nelas a sensação confortável de que o mundo está em ordem, frustra-as
na própria felicidade que ela ilusoriamente lhe propicia. O efeito de conjunto
da indústria cultural é o de uma antidesmistificação, a de um
antiesclarecimento; nela, como Horkheimer e eu dissemos, a desmistificação, a
Aufklärung, a saber, a dominação técnica progressiva, se transforma em engodo
de massas, em meio de tolher sua consciência. Ela impede a formação de
indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir
conscientemente. Mas estes constituem, contudo, a condição prévia de uma
sociedade democrática que não se poderia salvaguardar e desabrochar senão por
meio de homens não tutelados.[11]
Referências
bibliográficas
ADORNO,
Theodor. “A indústria cultural”. In: COHN, Gabriel (org.). Comunicação e
indústria cultural. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1977.
ADORNO,
Theodor. “Experiências científicas nos Estados Unidos”. In: Palavras e sinais.
Modelos críticos 2. Petrópolis, Vozes, 1995.
BENJAMIN,
Walter. “A obra-de-arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política. Obras
escolhidas, vol. 1. São Paulo, Brasiliense, 1985.
CUNHA
RODRIGUES, Maysa Ciarlariello. “Indústria cultural em Theodor Adorno: das
primeiras análises sobre a mercantilização da cultura nos anos 1930 à
formulação do conceito em 1947”. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH-USP,
2015.
ADORNO,
Theodor & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro,
Zahar, 1985.
—-
Referências
[1]
ADORNO, Theodor. “A indústria cultural”, p. 287.
[2]
Cf. CUNHA RODRIGUES, Maysa Ciarlariello. “Indústria cultural em Theodor Adorno:
das primeiras análises sobre a mercantilização da cultura nos anos 1930 à
formulação do conceito em 1947”.
[3]
ADORNO, Theodor. “Experiências científicas nos Estados Unidos”.
[4]
BENJAMIN, Walter. “A obra-de-arte na era
de sua reprodutibilidade técnica”, p. 167.
[5]
Idem, ibidem, p. 168.
[6]
Idem, ibidem, p. 170.
[7]
BENJAMIN, Walter. “A obra-de-arte na era
de sua reprodutibilidade técnica”, p. 170-171.
[8]
ADORNO, Theodor. “A indústria cultural”, p. 288.
[9]
Idem, ibidem, p. 288-289.
[10]
Idem, ibidem, p. 292.
[11]
Idem, ibidem, p.295.
Créditos
da foto: reprodução
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