Estruturado
desde os anos 1950 para viver de renda e títulos públicos, setor desfruta dos
juros, vira cúmplice do desemprego e engorda os lucros em plena crise
por Paulo
Donizetti de Souza, da RBA / http://www.redebrasilatual.com.br/
Em recente entrevista a um jornal, o
dono do Itaú Unibanco, Roberto Setúbal, fez menção à chamada Agenda Brasil, um
conjunto de sugestões de políticas de governo a ser negociadas entre Planalto e
Congresso. A “agenda” é assinada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros
(PMDB-AL), embora digam as más línguas que teria sido escrita por outras mãos.
Setúbal disse que a iniciativa dá alguns “passos”, mas são medidas modestas,
“para ir levando o país a sair um pouco dessa crise”. O banqueiro defende
reformas mais amplas. Não menciona, por exemplo, a tributária, para que
acionistas de grandes empresas, como ele, paguem mais impostos sobre seus lucros
e para que o país arrecade mais. Mas acentua o que seria uma prioridade:
“Reforma trabalhista”.
Segundo Setúbal, o Brasil é um dos
países com mais processos no mundo. “No Japão há 7 mil ações trabalhistas. Nos
Estados Unidos, não chegam a 70 mil. No Brasil, temos alguns milhões. Criou-se
uma indústria de ação trabalhista, que é um negócio que precisa ser repensado.”
Indagado se não seria porque há muito desrespeito a direitos dos trabalhadores,
rebateu que o problema é a legislação: “Nenhuma empresa consegue cumprir”.
No primeiro semestre deste ano, cada um
dos seus 85 mil funcionários proporcionou, em média, um lucro de R$ 140 mil aos
acionistas do Itaú, fazendo com que o banco atingisse resultado líquido recorde
de quase R$ 12 bilhões. Ainda assim, deve ser tarefa árdua cumprir a
legislação, mas o banqueiro garante que se esforça. “O Itaú tem enorme
dedicação a isso, somos superlegalistas, mas simplesmente é impossível cumprir
todos os detalhes.”
Maria José (nome fictício), 30 anos,
sentiu na pele essa “impossibilidade”. Há poucas semanas, foi despedida por
justa causa, sem no entanto saber por quê. Em 11 anos na área administrativa do
Itaú, Maria teve sucessivas boas avaliações. “Fazia horas extras frequentes,
durante a semana, aos sábados, trabalhava direitinho, ia além das expectativas.
Era tida como exemplar. De repente, alegam alguma coisa relacionada a conduta,
sem especificar, e me mandam embora por justa causa”, diz.
A bancária tornou-se, assim, mais uma
das “milhões” de pessoas a acionar na Justiça empresas que não cumprem todos os
“detalhes”. A reportagem pergunta se ela não teme ser identificada pela
singularidade do caso, mesmo não informando o nome verdadeiro. “Não há
singularidade. Tem acontecido com muita gente. São casos de justa causa sem
causa. E muitas demissões de gente próxima de se aposentar. É humilhante, e um
terror para quem fica, porque se ser funcionário exemplar não basta...”
Em 12 meses completados em 30 de junho,
o Itaú Unibanco demitiu 2.392 pessoas. Seu concorrente direto, o Bradesco,
cortou 5.125. Entre os três maiores privados, o Santander foi o único que
apresentou saldo positivo, contratou 1.485 a mais do que os que demitiu. A
conduta, no entanto, não é de tirar o chapéu.
Segundo a subseção do Dieese no
Sindicato dos Bancários de São Paulo, mesmo com as admissões o banco espanhol
apresentou no balanço de junho despesas com pessoal apenas 7,8% maiores do que
no ano anterior – menos, portanto, que os reajustes salariais de 8,5% a 9% (nos
pisos) aplicados. Sinal, segundo o
Dieese, de que o Santander pratica uma alta rotatividade, e que os admitidos chegaram
ganhando muito menos do que os demitidos – prática comum nos grandes bancos.
A analista de operações Noêmia Carvalho,
de 37 anos, foi demitida da área de recuperação de crédito em abril, depois de
16 anos de Santander – vinda do antigo banco Real.
Atuando nos últimos quatro anos em análise
de restrições financeiras e relacionamento com o Banco Central, serviço de
atendimento ao cliente de agências e ouvidoria, Noêmia observou uma
substituição constante de pessoal efetivo por terceirizado. E viu jovens
aprendizes e estagiários assumindo múltiplas tarefas antes a cargo de pessoas
mais experientes.
“Passamos a deparar com uma situação em
que de cada dez funcionários, apenas dois ou três eram contratados diretos,
atuando como prepostos do banco para atuar com os terceiros. Foi um evidente movimento
de corte de custos com funcionários”, diz.
A situação torna a proteção aos empregos
uma das prioridades do Comando Nacional dos Bancários, que está em processo de
negociação com a federação dos bancos, a Fenaban, para renovação da convenção
coletiva nacional de trabalho – a data-base é 1º de setembro. De acordo como o
comando, um estudo feito com base na Relação Anual de Informações Sociais
(Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego, revela que nos últimos quatro anos
os salários dos contratados são 42% inferiores aos dos que saíram.
Além disso, a compra do HSBC pelo
Bradesco causa apreensão na categoria, já que não há caso de processo de
aquisição que não tenha resultado em enxugamento de quadros de pessoal – embora
o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, tenha prometido uma “transição
respeitosa” com os funcionários.
Também preocupa o setor a meta,
recentemente anunciada pelo Itaú em reunião de acionistas, de avançar na
substituição de suas 3.863 agências físicas por agências digitais. O banco de
Roberto Setúbal prevê o fechamento de 15% das “agências de tijolo” em três
anos, e de metade delas em dez anos. Atualmente, 70% dos funcionários da
instituição estão nessas unidades.
“Queremos avançar na questão do respeito
aos empregos e da contratação de mais bancários para melhorar as condições de
trabalho e atendimento. Não há razão para um setor que ganha tanto terceirizar,
usar a rotatividade, a tecnologia para demitir e reduzir custos”, diz a
presidenta do sindicato, Juvandia Moreira.
Nunca antes
Ao alcançar a soma de R$ 24 bilhões de
lucros em seis meses, de janeiro a junho, do três maiores bancos privados do
país ostentam situação incompatível com a realidade econômica brasileira.
Enquanto a previsão para a variação do PIB para os próximos dois anos é
sombria, de menos 2%, o resultado líquido do Itaú Unibanco é 25,7% superior ao
do primeiro semestre do ano passado. Ao passo em que a arrecadação do país – União,
estados e municípios – sofre com a queda da atividade econômica, o ganho do
Bradesco, de R$ 8,8 bilhões, é 20,6% mais gordo. E num período em que as taxas
de desemprego apontam para cima e a renda média do trabalho, para baixo, o
Santander comemora um salto de 15,5% em seu lucro semestral, para R$ 3,3
bilhões.
Parte desse resultado vem da força do
trabalho. Assim como o Itaú aumentou em 29,2% o lucro líquido médio
proporcionado por funcionário, o Bradesco alcançou de R$ 93,4 mil (mais 27,2%)
e o Santander, R$ 66 mil (mais 12,1%). Outra parte vem das tarifas pagas pelos
clientes – foram R$ 32,5 bilhões em receitas “com prestação de serviços” nos
três maiores bancos privados de janeiro a junho – e dos juros dos empréstimos
que tomam – as receitas com operações de crédito somaram R$ 95,6 bilhões.
Há ainda uma outra fonte importante de
renda para os bancos: a dívida pública. Na comparação com o primeiro semestre
de 2014, o resultado do Itaú Unibanco com Títulos e Valores Mobiliários (TVM)
cresceu 95,1%, o do Bradesco 44,8% e o do Santander 64,5%. Os três somados arrecadaram
R$ 62,6 bilhões com TVM, em que têm grande peso os títulos da dívida da União
remunerados com base na taxa básica de juros do Banco Central, a Selic, que
está em 14,25% e proporciona ganhos reais (acima da inflação), próximos de 4%
ao ano.
Para o governo, lançado a um regime de
ajuste fiscal desde o início do segundo mandato de Dilma Rousseff com objetivo
de fazer sobrar dinheiro para fechar as contas, os juros da dívida
representaram apenas no primeiro semestre uma despesa de R$ 225 bilhões. A pretexto
de ajudar a controlar a inflação e ajudar o país a atravessar um momento de
crise, que o governo calcula durar até 2016, a política de juros – além de
engordar os ganhos financeiros de quem aposta neles – esfria a atividade
econômica. E a queda no nível de empregos e de renda faz a máquina dos setores
dinâmicos da economia, como indústria e comércio, parar.
Raciocínio ilógico
O professor José Carlos Braga, do
Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lamenta
que o governo Dilma tenha recuado da batalha contra a financeirização da
economia, que marcou boa parte de seu primeiro mandato. A partir de agosto de
2011, a taxa Selic passou por sucessivas reuniões no Comitê de Política
Monetária, batendo em outubro de 2012 em seu mais baixo patamar histórico,
7,25% ao ano, ante uma inflação de 5,45% (taxa real de 1,7%).
“Naquele movimento, Dilma se configurava
como a primeira presidente, desde Getúlio Vargas em 1952, a buscar uma política
de enfrentamento às chamadas altas finanças, nas quais podemos incluir os
bancos, mas também a tesouraria das grandes empresas, que fazem altos
investimentos no mercado especulativo”, diz. Como não veio a esperada
recuperação da economia mundial desencadeada após a crise de 2008, faltaram ao
país os investimentos internos do setor produtivo privado necessários para
estabelecer uma nova matriz de desenvolvimento.
Braga não descarta uma conspiração do
mundo das altas finanças tenha forçado o governo a retroceder, de modo a
devolver o sistema financeiro ao seu tradicional modus operandi. “O sistema
bancário do país não é partícipe do processo de industrialização como é
tradição dos países em que políticas industriais se desenvolveram e se
internacionalizaram. Desde o Plano de Metas de JK, nos anos 1950, se
constituiu-se um sistema bancário privado inapto a apoiar o desenvolvimento”,
lembra.
O governo chegou a caminhar nessa
direção. Houve acúmulo de conquistas sociais, inclusão, redução de
desigualdades, criação de empregos, elevação da renda, fortes componentes para
abastecer a atividade econômica, como observa o economista. Os bancos públicos
– Banco do Brasil, Caixa Federal, BNDES, Banco do Nordeste –, cada um em seu
nicho, exerceram papel determinante para forçar os bancos privados a adequar
suas políticas de crédito. “Mas faltou continuidade. Não houve uma
reestruturação para dar sequência a isso, com o setor privado sendo
protagonista, e não apenas beneficiário, do processo de desenvolvimento.”
Para Braga, no momento em que esse novo
cenário se desenhava “para valer” – a partir da articulação dos bancos públicos
– veio a reação política das forças atuantes na estrutura econômica do país.
“Por trás dessa reação estão interesses dos que repelem o fato de o país ter
bancos públicos com esse potencial, o único da América Latina. O México já
teve, o Chile, e tiveram seu papel extremamente reduzido. Há economistas por aí
que não escondem que defendem o mesmo aqui, como repassar os recursos do BNDES
para a gestão dos bancos privados”, alerta.
Medidas conectadas
Os bancos públicos brasileiros que atuam
no varejo incomodam, até porque fazem a disputa comercial com o mercado
privado. Banco do Brasil e Caixa tiveram juntos no primeiro semestre lucro
líquido de R$ 6 bilhões e R$ 3,5 bilhões, respectivamente, com crescimento de
11,5% e 2,8% sobre igual período de 2014. Enquanto o BB apresentou pequeno
saldo positivo no número de empregados (crescimento de 0,7%, para 112 mil), a
Caixa perdeu 1.853 postos de trabalho (queda de 1,86%, para 98 mil empregados).
Ambas as instituições, além de pisar no
freio nas concessões de empréstimos com que vinham puxando o mercado de crédito
no primeiro governo, também desfrutaram em seus balanços da política de juros
altos do BC. Seus resultados com Títulos de Valores Mobiliários somaram R$ 47
bilhões de janeiro a junho, com aumento de 58,7% no BB em relação aos primeiros
seis meses do ano passado, e de 30,7% na Caixa.
Ao iniciar o segundo semestre em busca
de atenuar os impactos da crise política e econômica, o governo voltou a lançar
mão de alguns estímulos ao mercado interno por meio dos bancos que controla.
Foram criadas algumas linhas de financiamento voltadas a estimular as vendas de
veículos e ofertas de crédito com juros reduzidos para empresas que não
demitirem. “Que sentido têm essas medidas com uma Selic desse tamanho? Parece
cômico, se não fosse trágico”, critica Braga.
“O país precisa de movimento conjunto de
medidas estruturais e conectadas. Sabemos que é forte a resistência, e hoje
devemos lamentar que quando houve alguma força política para isso ela não foi
utilizada”, observa o professor, referindo-se ao período que vai do final do
segundo mandato de Lula, após o estouro da crise de dimensões globais de 2008,
ao primeiro mandato de Dilma. “Se a trajetória do sistema bancário brasileiro
sempre foi de papel passivo na economia, beneficiário dos títulos da dívida
pública, faltou ousadia ao governo para reverter.”
A política econômica teria de ser a da
“cenoura e do cassetete”, defende o economista referindo-se à expressão de
origem inglesa carrot and stick, que ilustra o gesto do cavaleiro que tanto
pode fazer o animal correr pendurando uma cenoura à sua frente, ou dando-lhe
pauladas no lombo. Ele explica: “Para banco que participa do processo
produtivo, estimulando o desenvolvimento e tudo o que decorre dele – emprego,
renda, arrecadação – dá-se um tratamento leve pelo Fisco, cenoura. Para bancos
que preferem o jogo rentista do mercado, tratamento fiscal mais rigoroso, pau.
Mas isso como política estrutural, e não pontual.”
No Brasil, lembra Braga, a
desindustrialização vem desde os anos 1990 e nada foi feito para detê-la. “País
desenvolvido que se preza não abre mão de construir uma estrutura industrial
vigorosa”, afirma. O economista encara com ceticismo as previsões da equipe
econômica de que o momento crítico seja “passageiro” e se estenda até 2016,
para então se iniciar o “novo ciclo de desenvolvimento” prometido por Dilma em
sua campanha.
“Que raciocínio pode sustentar essa
estimativa? É possível que seja uma crise passageira? É. Mas desde que se
imponha outra forma de enfrentamento, que não seja esse que leva à recessão, ou
à estagnação. Estamos em plena contramão. Se foi ruim para a Grécia, não será
bom para o Brasil.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12