A Panair dominou a navegação aérea brasileira até
1965, quando teve a licença cassada pelo primeiro governo militar, por
inspirações duvidosas
por Vitor Nuzzi // http://www.redebrasilatual.com.br/
Em novembro de 1973, os últimos lotes de bens da
massa falida da Panair do Brasil foram vendidos em leilão, no Aeroporto do
Galeão, no Rio de Janeiro. “Panair acaba em leilão arrematada como sucata”,
noticiou o Jornal do Brasil. Não foi o fim em termos formais, porque os
representantes da companhia aérea ainda levariam adiante uma briga judicial de
certa forma vitoriosa ao seu final, pelo reconhecimento de uma injustiça
histórica.

O tempo demonstraria que o precário seria
definitivo. Todas as tentativas para retomar o controle da companhia foram
inúteis, muitas vezes com comportamentos pouco comuns no Judiciário.
Representantes da companhia não têm dúvida de que se tratou de um caso de
perseguição. Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade destacou o
caso Panair como “exemplar”, no sentido de perseguição a empresários que “não
compactuaram com a conspiração e o golpe, defenderam a Constituição e foram
perseguidos e punidos pelo regime
ditatorial”.
Violência
Autor do livro Pouso Forçado – que acaba de ser
relançado, dez anos depois da primeira edição –, o jornalista Daniel Leb Sasaki
considera o episódio da Panair “o maior e mais emblemático” exemplo de
violência econômica e jurídica. “A Panair do Brasil era uma empresa nacional de
grande porte. Funcionava em quatro continentes e possuía um patrimônio material
e técnico que nenhuma concorrente brasileira jamais acumulou. Era tão
importante para o funcionamento da aviação, comercial e civil, que os militares
chegaram ao ponto de criar leis específicas para desapropriar parcelas inteiras
do ativo e para garantir que a companhia ficasse no chão para sempre, mesmo
após pagar todos os seus credores”, afirma, lembrando que parte do ativo ainda
existe. Caso da oficina de revisão de motores Celma (Companhia Eletromecânica),
em Petrópolis (RJ), desnacionalizada em 1991 e hoje pertencente à GE. Pouco
tempo depois do anúncio da suspensão das concessões, a Celma foi ocupada por
soldados.
O motivo alegado para cassar as suspensões foi uma
suposta dificuldade financeira da Panair. Havia acusações de má gestão, que
apontavam para um quadro sem recuperação. Daniel Sasaki contesta. O livro traz
em detalhes as arbitrariedades cometidas na Justiça, desde o primeiro momento,
quando a Panair tentou pedir concordata e não conseguiu, passando por um
decreto-lei da ditadura feito justamente para impedir o levantamento da
falência da Panair, que não tinha mais dívidas.
“Nenhuma acusação levantada por civis ou militares
contra os acionistas, diretores e a própria Panair se comprovou”, diz o
jornalista. “Ao longo do processo, os réus provaram sua inocência em sentenças
finais e irrecorridas – em plena Justiça da ditadura. Conseguiram provar também
que documentos e informações falsos foram utilizados para subsidiar as
denúncias, com o objetivo definido de desmoralizar a companhia e seus
representantes perante o mercado e a opinião pública. Não há dúvida, no
Judiciário, de que houve ali distorções graves. Note que em 1978, 13 anos após
o fechamento da empresa, a própria assessoria jurídica da Aeronáutica
recomendou o arquivamento dos processos criminais, por basearem-se em ‘vagas
alegações’ versus a vastidão de esclarecimentos técnicos apresentados pela
defesa. Assim foi feito.”
Ataque
A Panair tinha dois acionistas majoritários, Celso
Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen. O primeiro, dono da Ajax, maior
seguradora da América Latina, e amigo íntimo do ex-presidente Juscelino
Kubitschek, provável candidato às eleições presidenciais de 1965, que não
aconteceram – os brasileiros só voltariam a escolher um presidente em 1989.
Simonsen tinha participação em mais de 30 empresas. Era dono de uma exportadora
de café (Comal), carro-chefe do grupo Simonsen, uma das maiores multinacionais
brasileiras, com subsidiárias operando em 53 países, conforme anota Sasaki.
Também foi acionista da TV Excelsior e criador do Sirva-se, o primeiro
supermercado brasileiro.
“É importante destacar que Mario Wallace Simonsen
já estava sob ataque midiático alimentado por inimigos políticos e concorrentes
poderosos desde 1963, portanto, antes mesmo do golpe”, ressalta Daniel. “Os
testemunhos deixados pelos seus advogados em uma série de documentos enviados
ao antigo Tribunal Federal de Recursos apontam que esses adversários, daqui e
lá de fora, aproveitaram-se da tomada de poder pelos militares e da patologia
do Judiciário para destruí-lo, associando-o, principalmente, ao governo
deposto, de João Goulart. Conseguiram relativamente rápido.” Uma CPI com vários
documentos falsos ajudou a derrubar o empresário, que teve todos os bens
sequestrados apenas um mês depois do fechamento da companhia. Simonsen teve um
colapso cardíaco e morreu em março de 1965, na França, onde morava, dois meses
depois da suspensão das linhas de voo da Panair.
Outro fato que pôs Simonsen na mira foi o auxílio
para o então vice-presidente João Goulart retornar ao Brasil em 1961, depois da
renúncia de Jânio Quadros. “Isso foi muito explorado contra ele”, diz Daniel.
“De fato, Simonsen se colocou a favor da legalidade. Na viagem de volta da
China, Jango foi hospedado em Paris por Max Rechulsky, diretor do Grupo
Simonsen na Europa, que também ofereceu a estrutura de comunicações da Wasim
(subsidiária do setor de café) para que o presidente pudesse se comunicar com o
Brasil. Depois, Rechulsky acionou diversas empresas áereas para facilitar a
viagem de retorno – que foi feita via Estados Unidos, por companhias
estrangeiras, e não em rota direta, da Panair.”
A Varig acabou sendo a única beneficiada pelo
fechamento da Panair, constata Daniel. A empresa ficou com as linhas mais
rentáveis, as da Europa, com os aviões de maior porte, hangares no Galeão e
parte das agências instaladas no exterior. O fatiamento da Panair e a
transferência de bens da companhia é um dos vários trechos que chamam a atenção
no livro. No caso da Varig, o representante da massa falida agradeceu, nos
autos do processo, à diretoria da empresa pelas acomodações em que ficou na
Europa e até pela consultoria jurídica prestada pela interessada no patrimônio
do rival. Quarenta anos depois, a Varig quebraria.
Perdas
Para o autor, o Brasil perdeu, à medida que o
Estado – “cujos agentes fabricaram dados para acusar a Panair de drenar
recursos públicos” – teve de gastar mais por causa da falência que impôs à
companhia. Também teve de assumir encargos previdenciários, pagamento de
salários e custos com investimentos e manutenção. “A União abriu, ainda, as
portas para que a empresa entrasse com ações judiciais, exigindo o pagamento de
indenizações espetaculares: por perdas e danos, pela expropriação da Celma e
das Comunicações (outra área da Panair) a preços irrisórios, pela ocupação
irregular de patrimônio em aeroportos e instalações, entre outras. Algumas já
foram ganhas. Falta pagar. A conta é alta.”
Perderam, sobretudo, os 5 mil funcionários da
Panair, que trabalhavam em uma companhia prestigiada e de uma hora para outra
ficaram sem nada. Durante muito tempo, muitos deles fizeram campanhas pela
reabertura da companhia e tiveram apoio popular. Ainda hoje, remanescentes se reúnem
todos os anos para lembrar daqueles tempos.
Que ficaram marcados também na memória de dois
garotos, Milton Nascimento e Fernando Brant, autores de Saudades dos Aviões da
Panair, gravada nos anos 1970 por Elis Regina originalmente como Conversando no
Bar, por receio da censura. “A gente estava com um grilo (em relação ao
título)... Porque a gente não podia ter saudade de nada que fosse bom”, contou
Milton no documentário Panair do Brasil, dirigido por Marco Altberg, de 2007.
No mesmo filme, Brant conta que foi relembrando
“minhas viagens de pequeno” e pensando na realidade de todos os brasileiros,
“que víamos em pleno voo, em plena maravilha, um projeto e uma empresa como a
Panair ser desmontada”. “O Fernando mandou a letra para Nova York, eu aí li aquilo
tudo, cantei, gravei e mandei para a Elis”, lembra Milton. Um verso embutia um
pequeno e marcante protesto simbólico: “Descobri que minha arma é o que a
memória guarda/Dos tempos da Panair”.
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